MetafísicaGêneroHumano - História do Brasil (2025)

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<p>Metafísica do gênero humano:</p><p>natureza e história na obra de</p><p>Fabrizio Lomonaco</p><p>Humberto Guido</p><p>Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Organizadores</p><p>GIAMBATTISTA VICO</p><p>F</p><p>ab</p><p>rizio</p><p>L</p><p>o</p><p>m</p><p>o</p><p>n</p><p>aco</p><p>H</p><p>u</p><p>m</p><p>b</p><p>erto</p><p>G</p><p>u</p><p>id</p><p>o</p><p>S</p><p>ertó</p><p>rio</p><p>d</p><p>e A</p><p>m</p><p>o</p><p>rim</p><p>e S</p><p>ilva N</p><p>eto</p><p>O</p><p>rg</p><p>an</p><p>izad</p><p>o</p><p>res</p><p>M</p><p>etafísica do gênero hum</p><p>ano:</p><p>natureza e história na obra de G</p><p>IA</p><p>M</p><p>B</p><p>A</p><p>TTIS</p><p>TA</p><p>V</p><p>IC</p><p>O</p><p>Esta coletânea foi concebida a par tir do encontro de duas sor tes de aspirações:</p><p>de um lado, de internacionalização dos estudos viquianos e incremento de uma</p><p>comunidade de estudiosos vinculados pela natureza do seu objeto e pelo</p><p>método de estudos mais do que por uma língua e nacionalidade; do outro lado,</p><p>de divulgação da filosofia de Giambattista Vico no Brasil. Resultou daí um</p><p>volume de doze estudos inéditos em Língua Por tuguesa de autoria de</p><p>estudiosos italianos, franceses, argentinos e brasileiros. Tema de grande</p><p>for tuna crítica, o binômio natureza-história, com suas tensões e afinidades,</p><p>imprime unidade temática aos capítulos deste livro, que focam ou diretamente o</p><p>tema ou seus aspectos auxiliares. A par tir daquele binômio, páginas</p><p>impor tantes da obra de Vico foram revisitadas, seja incrementando a atual</p><p>perspectiva historiográfica da filosofia italiana (e napolitana) no Brasil, seja</p><p>ajudando uma tradição ainda bem jovem nesses estudos, como a brasileira, a</p><p>melhor avaliar a fecundidade dos conceitos e teorias viquianas para a</p><p>investigação de fenômenos culturais relevantes no contexto sul-americano.</p><p>Alberto Mario Damiani</p><p>Andrey Ivanov</p><p>Claudia Megale</p><p>Enrico Nuzzo</p><p>Fabrizio Lomonaco</p><p>Humberto Guido</p><p>Manuela Sanna</p><p>Marco Vanzulli</p><p>Pierre Girard</p><p>Rosario Diana</p><p>Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Vladimir Chaves dos Santos</p><p>Autores</p><p>Neste livro o filósofo italiano Giambattista</p><p>Vico comparece como crítico da</p><p>modernidade. Os dezesseis capítulos desta</p><p>coletânea trarão para o presente um</p><p>pensador obstinado na tarefa de aperfeiçoar</p><p>o homem moderno, o que demandava a</p><p>reabilitação das humanidades e a defesa da</p><p>autonomia das artes em prol de uma ordem</p><p>social justa e plural, capaz de respeitar a</p><p>diversidade cultural. Essas poucas palavras</p><p>são suficientes para sugerir a atualidade do</p><p>filósofo, cujas idéias ainda ocupam lugar no</p><p>debate social contemporâneo.</p><p>Conheça outra obra sobre Vico</p><p>publicada pela Edufu:</p><p>Embates da razão: mito e filosofia</p><p>na obra de Giambattista Vico</p><p>Humberto Guido</p><p>José M. Sevilla</p><p>Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Organizadores</p><p>ISBN 978-85-7078-469-8</p><p>9 788570 784698</p><p>Metafísica do gênero humano:</p><p>natureza e história na obra de</p><p>GIAMBATTISTA VICO</p><p>Equipe de Realização</p><p>Editora de publicações Maria Amália Rocha</p><p>Assistente editorial Leonardo Marcondes Alves</p><p>Revisão Português Cláudia de Fátima Costa</p><p>Revisão referências Alessandra Leles Rocha</p><p>Projeto gráfico, capa e diagramação Ivan da Silva Lima</p><p>Imagem capa Representação da Metafísica</p><p>assentada sobre o globo mundano e</p><p>apoiada no altar.</p><p>Gravada na primeira página da</p><p>terceira edição, de 1744, da Scienza</p><p>nuova d’intorno alla comune natura</p><p>delle nazioni.</p><p>Reitor</p><p>Valder Steffen Jr.</p><p>Vice-reitor</p><p>Orlando César Mantese</p><p>Diretor da Edufu</p><p>Guilherme Fromm</p><p>Conselho Editorial</p><p>Cristina Ribas Fürstenau</p><p>Décio Gatti Júnior</p><p>Emerson Luiz Gelamo</p><p>Fábio Figueiredo Camargo</p><p>Hamilton Kikuti</p><p>Frederico de Sousa Silva</p><p>Reginaldo dos Santos Pedroso</p><p>Rodrigo Gustavo Delalíbera</p><p>Sônia Maria dos Santos</p><p>Av. João Naves de Ávila, 2121</p><p>Campus Santa Mônica - Bloco 1S</p><p>Cep 38408-100 | Uberlândia - MG</p><p>Tel: (34) 3239-4293</p><p>Universidade</p><p>Federal de</p><p>Uberlândia</p><p>www.edufu.ufu.br</p><p>Fabrizio Lomonaco</p><p>Humberto Guido</p><p>Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Organizadores</p><p>Metafísica do gênero humano:</p><p>natureza e história na obra de</p><p>GIAMBATTISTA VICO</p><p>Av. João Naves de Ávila, 2121</p><p>Campus Santa Mônica - Bloco 1S</p><p>Cep 38408-100 | Uberlândia - MG</p><p>Tel: (34) 3239-4293</p><p>Universidade</p><p>Federal de</p><p>Uberlândia</p><p>www.edufu.ufu.br</p><p>Copyright 2018 © Edufu</p><p>Editora da Universidade Federal de Uberlândia/MG</p><p>Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução parcial ou total por</p><p>qualquer meio sem permissão da editora.</p><p>Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)</p><p>Sistema de Bibliotecas da UFU - MG, Brasil</p><p>M587g</p><p>Metafísica do gênero humano : natureza e história na obra de</p><p>Giambattista Vico. / Fabrizio Lomonaco, Humberto Guido, Sertório</p><p>de Amorim e Silva Neto (organizadores) – Uberlândia: EDUFU, 2018.</p><p>307 p.</p><p>Inclui bibliografia.</p><p>ISBN: 978-85-7078-469-8</p><p>1. Filosofia moderna - Séc. XVIII. 2. Filosofia italiana - Séc. XVIII.</p><p>3. Metafísica. 4. Vico, Giambattista, 1668-1744 - Crítica e interpretação.</p><p>I. Lomonaco, Fabrizio. II. Guido, Humberto, 1963-. III. Silva Neto,</p><p>Sertório de Amorim e. IV. Universidade Federal de Uberlândia. V. Título.</p><p>CDU: 1(4/9)</p><p>http://dx.doi.org/10.14393/EDUFU-978-85-7078-469-8</p><p>Sumário</p><p>7 Prefácio</p><p>17 Primeira parte – Natureza e História</p><p>19 A noção de sociabilidade natural em Vico</p><p>Alberto Mario Damiani</p><p>41 Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau</p><p>Marco Vanzulli</p><p>61 As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico</p><p>Vladimir Chaves dos Santos</p><p>79 Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico: entre</p><p>causalidade sacra, histórica e natural</p><p>Enrico Nuzzo</p><p>137 A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico</p><p>Humberto Guido</p><p>157 Vico e a natureza poética primitiva</p><p>Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Segunda parte – Metafísica e Modernidade</p><p>183 Vico e a metafísica de 1710</p><p>Fabrizio Lomonaco</p><p>213 Com Vico nos “subterrâneos da alma”</p><p>Claudia Megale</p><p>227 Vico moderno além da modernidade</p><p>Rosario Diana</p><p>245 O critério do verum-factum de Vico e seus antecedentes</p><p>escolásticos e medievais</p><p>Andrey Ivanov</p><p>255 Vico e a tradição cartesiana</p><p>Pierre Girard</p><p>285 Manifestações da aparência e engano da presença no conceito</p><p>moderno de imaginação</p><p>Manuela Sanna</p><p>305 Posfácio</p><p>Prefácio • 7</p><p>Prefácio</p><p>A presente coletânea de estudos viquianos foi concebida</p><p>pelos seus idealizadores a partir do encontro de duas sortes de</p><p>aspirações, de um lado, de internacionalização dos estudos viquianos</p><p>e incremento de uma comunidade de estudiosos vinculados pela</p><p>natureza do seu objeto e pelo método de estudos mais do que por</p><p>uma língua e nacionalidade, do outro lado, de divulgação da filosofia</p><p>de Giambattista Vico no Brasil. Resultou daí um volume de doze</p><p>estudos inéditos em Língua Portuguesa de autoria de estudiosos</p><p>de Vico europeus, da Itália e da França, e sul-americanos, do Brasil</p><p>e da Argentina. Desses estudos, sete compuseram originalmente</p><p>as conferências e palestras da XV Semana de Filosofia “Natureza e</p><p>História” da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), primeiro</p><p>congresso internacional realizado no Brasil (entre 12 e 15 de junho</p><p>de 2012) em homenagem ao filósofo napolitano.</p><p>Tema de grande fortuna crítica, o binômio natureza-história</p><p>com suas tensões e afinidades ofereceu o eixo norteador dos trabalhos</p><p>do Congresso uberlandense e imprime também unidade temática</p><p>aos capítulos do livro, que focam ou diretamente o tema ou seus</p><p>aspectos auxiliares e, por causa disso, encontram-se arranjados em</p><p>duas diferentes seções ou partes. A partir daquele binômio, páginas</p><p>importantes da obra de Vico foram revisitadas, seja incrementando a</p><p>atual perspectiva historiográfica da filosofia italiana (e napolitana) no</p><p>Brasil, seja ajudando uma tradição ainda bem jovem nesses estudos,</p><p>como a brasileira, a melhor avaliar a fecundidade dos conceitos e teorias</p><p>viquianas para a investigação de fenômenos culturais relevantes no</p><p>contexto sul-americano.</p><p>8 • Humberto Guido | Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Buscamos nesta coletânea satisfazer</p><p>a natureza humana</p><p>ao subordinar os monarcas familiares a uma pessoa civil soberana e</p><p>governar por meio das primeiras leis. Por último, a república popular</p><p>desenvolve plenamente a natureza humana sob as leis que igualam</p><p>todos os membros da comunidade política. Sob as repúblicas populares</p><p>e as monarquias, o direito assenta-se sobre a ideia de igualdade natural</p><p>de todos os membros da comunidade política. O reconhecimento</p><p>racional dessa ideia produz mudanças tão profundas nas instituições</p><p>do mundo civil que, quando os filósofos pretendem justificar o direito</p><p>sobre a noção de natureza humana, imaginam que as condições</p><p>vigentes na república popular e na monarquia são próprias à natureza</p><p>humana em geral. Vico pretende ter descoberto as condições sociais</p><p>e políticas sob as quais se desenvolve a natureza humana desde suas</p><p>origens selvagens. Essas condições são as instituições vigentes nas</p><p>diversas formas de governo econômico e civil.</p><p>Uma vez completado o curso histórico que percorrem as</p><p>nações, a natureza humana encontra-se desenvolvida em todas as suas</p><p>faculdades. Os seres humanos reconhecem-se como autores do mundo</p><p>civil, em vez de atribuir aos deuses o estabelecimento das instituições.</p><p>Esses autores advertem que a autoridade das leis depende do</p><p>reconhecimento que se lhes observa e que suas vontades são o único</p><p>fundamento sobre o qual se assentam as instituições. Das modificações</p><p>ulteriores pode-se somente esperar, então, um processo regressivo, que</p><p>imerja novamente o ser humano na barbárie. Vico denomina “barbárie</p><p>da reflexão” como uma instância na qual o egoísmo dos cidadãos impede</p><p>a confiança mínima indispensável para que a sociedade propriamente</p><p>38 • Alberto Mario Damiani</p><p>humana possa se conservar.28 A derrocada das instituições racionais da</p><p>idade humana voltaria a instalar a natureza humana nas condições da</p><p>barbárie primitiva, no começo de um novo ciclo histórico. A sociedade</p><p>feudal do medievo repete as condições anteriores ao estabelecimento</p><p>dos estados antigos e contém o germe da natureza humana que logra</p><p>desenvolver-se plenamente na modernidade. A doutrina do ricorso</p><p>histórico, que Vico formula no capítulo quinto das últimas edições de</p><p>sua Scienza nuova, parece conter uma advertência acerca dos perigos</p><p>que rodeiam as instituições racionais de sua época. A sociabilidade</p><p>humana é natural, porém, isso não significa que se encontre garantida</p><p>independente do conhecimento e da vontade de seus autores.</p><p>Tradução do espanhol:</p><p>Enoque M. Portes</p><p>Referências</p><p>Obras de Vico</p><p>VICO, G. De universi iuris uno principio et fine uno liber unus (De uno). In: ______.</p><p>G. Il Diritto Universale. Organização de Fausto Nicolini. Bari: Laterza, 1936, vol.I.</p><p>VICO, G. Lettera a Monsignor Filippo María Monti. In: ______. Opere. Organização de</p><p>Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990, p.305-307.</p><p>VICO, G. Princìpj di una Scienza nuova d’intorno alla natura delle nazione (Sn25).</p><p>In: ______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990,</p><p>p.975-1166.</p><p>VICO, G. Princìpj di Scienza nuova d’intorno alla comune natura delle nazione</p><p>(Sn44). In: ______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori,</p><p>1990, p.411-971.</p><p>Outras obras</p><p>BOBBIO, N. Vico e la teoria delle forme di governo. Bollettino del Centro di Studi</p><p>Vichiani, Napoli, vol. VIII, p.5-27, 1978.</p><p>28 Sn44, §1.106; Cf. PONS, Alain. Vico and Barbarism of Refletion. New Vico</p><p>Studies, Atlanta, v.16, p.1-24, 1998; HOLMES, S. T. The Barbarism of Reflection.</p><p>In: TAGLIACOZZO, G. (org.). Vico Past and Present. Atlantic Highlands: Humanities</p><p>Press, 1981, p.213-22; GARCÍA, M. G. De la racionalidad a la barbarie de la reflexión</p><p>en Giambattista Vico. In: HIDALGO-SERNA, E. et al. (orgs.). Pensar para el nuevo</p><p>siglo. Giambattista Vico y la cultura europea. Napoli: La Città del Sole, 2001,</p><p>p.1.041-1.060.</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 39</p><p>BOBBIO, N. Vico. In: ______. La teoría de las formas de gobiero en la historia del pen-</p><p>samiento político. Tradução espanhola de J. F. Santillán. México: FCE, 1992, p.108-</p><p>121.</p><p>BOSCHETTO, L. Vico e i figliuoli di Dio. Ricerche sui giganti nel “Diritto Universale”</p><p>e nella “Scienza Nuova Prima”. Bollettino del Centro di Studi Vichiani, Napoli, v.XXIV-</p><p>-XXV, p.79-95, 1994-1995.</p><p>DAMIANI, A. M. Domesticar a los gigantes. Sentido y praxis en Vico. Rosario: UNR</p><p>Editora, 2005.</p><p>DAMIANI, A. M. La idea de animus en las primeras obras de Giambattista Vico. Re-</p><p>vista Latinoamericana de Filosofía, Buenos Aires, v.XXVI, n.1, p.85-109, 2000.</p><p>DAMIANI, A. M. Orden civil y orden metafísico en la “Scienza Nuova”. Cuadernos</p><p>sobre Vico, Sevilla, v.11-12, p.97-105, 1999/2000.</p><p>DAMIANI, A. M. Nosce te ipsum. Reflexión y política en Vico. Cuadernos sobre Vico,</p><p>Sevilla, n.23-24, p.133-150, 2009/2010.</p><p>DAMIANI, A. M. La secolarizzazione politica nella “Scienza Nuova”. Bolletino del</p><p>centro di studi vichiani, Napoli, v.XXX, p.213-229, 2000.</p><p>FASSÒ, G. Vico e Grozio. Napoli: Guida, 1971.</p><p>GARCÍA, M. G. De la racionalidad a la barbarie de la reflexión en Giambattista Vico.</p><p>In: HIDALGO-SERNA, E. et al. (orgs.). Pensar para el nuevo siglo. Giambattista Vico</p><p>y la cultura europea. Napoli: La Città del Sole, 2001, p.1.041-1.060.</p><p>GROCIO, H. Prolegomena. In: ______. Del derecho de presa. Del derecho de la guerra y</p><p>de la paz. Edição bilíngue com tradução espanhola de P. M. Gómez. Madrid: Centro</p><p>de Estudios Constitucionales, 1987.</p><p>HART, A. C. La teoria vichiana sulla successione delle forme di stato e le sue impli-</p><p>cazione politiche. Bollettino del Centro di Studi Vichiani, Napoli, v.XVII-XVIII, p.153-</p><p>162, 1987-1988.</p><p>HOLMES, S. T. The Barbarism of Reflection. In: TAGLIACOZZO, G. (org.). Vico Past</p><p>and Present. Atlantic Highlands: Humanities Press, 1981, p.213-222.</p><p>PONS, Alain. Vico and Barbarism of Refletion. New Vico Studies, Atlanta, v.16, p.1-</p><p>24, 1998.</p><p>MAZZOLA, R. I giganti in Vico. Bollettino del Centro di Studi Vichiani, Napoli, v.XXIV-</p><p>-XXV, p.29-78, 1994-1995.</p><p>RICHARD, T. Grotius, Carneades and Hobbes. Grotiana, Leida, n.4, p.43-62, 1983.</p><p>ROBERT, S. Grotius on Scepticism and Self-Interest. Archiv für Geschichte der Philo-</p><p>sophie, Berlin, n.78, p.27-47, 1996.</p><p>ROSSI, P. I segni del tempo. Storia della terra e storia delle nazioni da Hooke a Vico.</p><p>Milano: Feltrinelli, 1979, p.100-109.</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 41</p><p>Sentimentos humanos naturais e</p><p>histórico-políticos: Vico e Rousseau</p><p>Marco Vanzulli*</p><p>Não espero estabelecer com este estudo alguma filiação entre</p><p>Vico e Rousseau, mas só conduzir uma leitura, em paralelo, de alguns</p><p>temas que permitem a consideração geral dos seus pensamentos civis:</p><p>um confronto que tenta fazer emergir, em negativo, certas escolhas e</p><p>peculiaridades das posições de ambos os autores, particularmente do</p><p>genebrino, em relação ao qual o pensamento de Vico desempenha, de</p><p>certo modo, a função de papel tornassol.</p><p>A relação com Hobbes é bem complexa, seja em Vico, seja</p><p>em Rousseau, com traços de assimilação e oposição. Todavia, para</p><p>os fins a que me proponho neste texto, pode-se dizer, em uma</p><p>primeira aproximação, que o Vico da Scienza nuova1 e o Rousseau</p><p>do Discurso sobre a desigualdade2 são, os dois, anti-hobbesianos no</p><p>modo de caracterizar a humanidade no estado de natureza e, para</p><p>sê-lo radicalmente, necessitam desenvolver seriamente a hipótese</p><p>hobbesiana, historicizando-a,3 devem ser, em suma, mais hobbesianos</p><p>* Professor do Dipartimento di scienze umane per la formazione “Riccardo Massa”</p><p>da Università degli Studi di Milano-Bicocca.</p><p>1 VICO, G. Princìpj di Scienza nuova d’intorno alla comune natura delle nazione</p><p>(1744). In: ______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori,</p><p>1990, p.411-971 (de agora em diante Sn44).</p><p>2 ROUSSEAU, J. J. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les</p><p>hommes. In: ______. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les</p><p>hommes e Discours sur les sciences et les arts. Paris: Flammarion,</p><p>1992, p.150-280;</p><p>ROUSSEAU, J. J. Sull’origine dell’ineguaglianza. Tradução italiana de V. Gerratana.</p><p>Roma: Editori Riuniti, 1988 (edição indicada, nas nossas citações subsequentes,</p><p>após a paginação da edição francesa).</p><p>3 Como nos faz ver a história da origem e do desenvolvimento da linguagem,</p><p>esboçada por Rousseau na primeira parte do Discurso sobre a desigualdade e no</p><p>Ensaio sobre a origem das línguas, e aquela esboçada por Vico na “Lógica poetica”,</p><p>42 • Marco Vanzulli</p><p>do que o próprio Hobbes.4 Para tanto, procuram então entender que</p><p>coisa realmente significa o isolamento dos homens naquele estado</p><p>de natureza postulado por Hobbes, a sua amoralidade, apelando</p><p>precisamente às paixões que derivam da corporeidade e do instinto de</p><p>autoconservação.</p><p>Recordamos que a primeira versão da Scienza nuova, in forma</p><p>negativa, de 1724, que não chegou até nós, era um volume de grande</p><p>vulto, propriamente, porque desenvolvia um outro sistema de direito</p><p>natural com a refutação das doutrinas jusnaturalistas. Sobre ela, Vico</p><p>escreve na Autobiografia que</p><p>buscava encontrar os princípios do direito natural das gentes dentro</p><p>daqueles da humanidade das nações, pela via das inverossimilhanças,</p><p>inconveniências e impossibilidades de tudo isso que os outros tinham</p><p>antes mais imaginado do que raciocinado.5</p><p>E o subtítulo da primeira Scienza nuova, rápida reconstrução</p><p>por via positiva da obra de 1724, enuncia que, nela, se encontram os</p><p>princípios de outro sistema do direito natural das gentes.</p><p>Há uma posição que se poderia chamar historicista do Discurso</p><p>de Rousseau, isto é, sobre o desenvolvimento e a transformação das</p><p>mentes, dos costumes e das línguas, em suma, sobre a diacronia como</p><p>dimensão do discurso filosófico. Existem passos que lembram a teori-</p><p>zação viquiana da união entre filologia e filosofia,6 e também o tema</p><p>que apresentam muitos pontos de contato, a começar pela origem da linguagem a</p><p>partir do urro e dos gestos.</p><p>4 Hobbes, segundo Rousseau, “viu muito bem o defeito de todas as definições</p><p>modernas do direito natural, mas as conseqüências que resultam da sua</p><p>própria definição mostram que ele a toma em um sentido que não é menos falso</p><p>(ROUSSEAU, 1992, p.211; trad. it., p.121).</p><p>5 VICO, G. Vita di Giambattista Vico scritta da se medesimo (1725-1728). In: ______.</p><p>Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990, p.54.</p><p>6 Por exemplo: “[...] sobre a razão por que, sendo dois fatos considerados reais</p><p>e devendo ser ligados por uma série de fatos intermediários, desconhecidos ou</p><p>vistos como tais, cabe à história, quando a temos, fornecer os fatos que os liguem;</p><p>cabe à filosofia, em sua falta, determinar os fatos semelhantes que os podem</p><p>ligar; enfim, sobre a razão por que, em matéria de acontecimentos, a similitude</p><p>reduz os fatos a um número muito menor de classes diferentes do que se imagina”</p><p>(ROUSSEAU, 1992, p.221; trad. it., p.131).</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 43</p><p>– caro a Vico – do estudo do processo sociocultural como aquele que</p><p>dá as respostas às questões que os filósofos se põem abstratamente.7</p><p>O contexto historicista do Discurso sobre a desigualdade é já</p><p>logo evidenciado nas primeiras páginas do Prefácio, onde Rousseau</p><p>põe o problema de distinguir o homem “tal como a natureza o</p><p>formou” e “todas as mudanças que a sucessão dos tempos e das coisas</p><p>necessariamente produziu em sua constituição originária”,8 isto</p><p>é, de distinguir “isso que nele deriva de sua essência [de son propre</p><p>fonds] disso que as circunstâncias e os seus progressos ajuntaram ou</p><p>mudaram em seu estado primitivo”. A alma humana é parecida com a</p><p>estátua de Glauco desfigurada pelo tempo, pelo mar e as tempestades,</p><p>e, por isso, deformada a ponto de não parecer um Deus, mas uma</p><p>besta feroz; uma passagem que Rousseau caracteriza como aquela que</p><p>procede de “um ser guiado por princípios seguros e imutáveis”, por</p><p>“uma celeste e majestosa simplicidade”, a “um informe contraste entre</p><p>a paixão raciocinante e o entendimento em delírio”;9 uma passagem</p><p>que leva Rousseau a lamentar, ao mesmo tempo, o estado obsoleto das</p><p>ciências do homem10 e a sua vaidade11 – com a retomada da temática,</p><p>do primeiro Discurso,12 da desvalorização do saber que não é tanto</p><p>uma desvalorização da ciência enquanto tal, mas da ciência enquanto</p><p>7 “É nessa lenta sucessão das coisas que virá a solução de uma infinidade de</p><p>problemas de moral e de política que os filósofos não podem resolver” (ROUSSEAU,</p><p>1992, p.255; trad. it., p.161).</p><p>8 Cf. também a repetição da expressão “mudanças sucessivas à constituição</p><p>humana” (ROUSSEAU, 1992, p.158; trad. it., p.88).</p><p>9 Para a passagem do Discurso em sua integralidade, ver: ROUSSEAU, 1992, p.158;</p><p>trad. it., p.88.</p><p>10 Na primeira linha do Prefácio lê-se “O mais útil e o menos avançado de todos os</p><p>conhecimentos humanos parece-me ser o do homem” (ROUSSEAU, 1992, p.157;</p><p>trad. it., p.87).</p><p>11 E acrescenta: “quanto mais acumulamos novos conhecimentos, tanto mais nos</p><p>privamos dos meios de adquirir o mais importante de todos, e que, num certo</p><p>sentido, é por força de estudar o homem que nos tornamos incapazes de conhecê-</p><p>lo” (ROUSSEAU, 1992, p.157; trad. it., p.87).</p><p>12 De fato, ainda próximo do espirito do Discurso sobre as ciências e as artes, Rousseau</p><p>lamenta principalmente a ambiguidade do progresso, a sua inconsistência, como</p><p>no conhecido exemplo da inutilidade da medicina na primeira parte do Discurso</p><p>sobre a desigualdade. Ainda que a condenação não seja, pois, tanto da ciência</p><p>médica em si quanto do luxo, da moleza, da complicação e artificialidade dos</p><p>costumes que levam aos homens civis mais doenças do que os remédios que a</p><p>medicina pode fornecer (Cf. ROUSSEAU, 1992, p.179; trad. it., p.105-106).</p><p>44 • Marco Vanzulli</p><p>funcional a uma sociedade que Rousseau condena. Há, já nessas</p><p>primeiras linhas, todo o programa do escrito rousseauniano, antes</p><p>mesmo da solução em prol da liberdade civil que proporá o Contrato</p><p>Social. Aqui no Discurso Rousseau fala de um “fonds” do homem, que</p><p>coincide com a condição natural. E pode-se dizer que o escopo da</p><p>obra é descrever e deplorar esta transformação antropológica, que</p><p>é transformação da alma humana, o esforço de uma natureza sobre</p><p>outra e a constituição de um segundo gênero de humanidade na qual</p><p>Rousseau enxerga uma piora: a transformação da bondade espontânea</p><p>em perversidade reflexiva.13 A “faculdade de aperfeiçoar-se”, que é</p><p>distintiva do homem e quase ilimitada, é configurada como “a origem de</p><p>todas as desventuras do homem”, que o arranca da condição originária</p><p>e inocente para torná-lo “o tirano de si mesmo e da natureza”.14</p><p>Rousseau considera a condição humana natural muito</p><p>seriamente, valendo-se dos estudos das ciências naturais, dos</p><p>relatos de viagem e do conhecimento do comportamento animal. Ele</p><p>permanece uma hipótese: o estado de natureza pode não ter nunca</p><p>existido, mas, de qualquer modo, o homem em tal estado não pode</p><p>ser aquele descrito por Hobbes e por Locke, que projetam sobre ele</p><p>categorias, modos de ser, comportamentos e sentimentos do estado</p><p>civil, como as noções de justo e injusto, de propriedade, ou por outros</p><p>autores que, inclusive, pressupuseram a existência da autoridade (do</p><p>mais forte sobre o mais débil) e do governo.15 É claro, para Rousseau,</p><p>13 “Os homens são maus, uma triste contínua experiência dispensa a prova;</p><p>entretanto, o homem é naturalmente bom, creio havê-lo demonstrado. Que será,</p><p>pois, que o pode ter depravado a esse ponto, senão as mudanças sobrevindas na sua</p><p>constituição, os progressos que fez e os conhecimentos que adquiriu? Que se admire</p><p>quanto se queira a sociedade humana, não será menos verdade que ela conduz</p><p>necessariamente os homens a se odiar entre si à proporção do crescimento dos seus</p><p>interesses, a se retribuir mutuamente serviços aparentes, e a se fazer efetivamente</p><p>todos os males imagináveis. Que se pode pensar de um comércio em que a razão de</p><p>cada particular lhe dita máximas diretamente contrárias àquelas</p><p>que a razão pública</p><p>prega ao corpo da sociedade, e em que cada um tire os seus lucros da desgraça do</p><p>outro?” (ROUSSEAU, 1992, nota IX, p.184; trad. it., p.180-181).</p><p>14 Para a passagem do Discurso em sua integralidade, ver: ROUSSEAU, 1992, p.184;</p><p>trad. it., p.110.</p><p>15 O parecer de Rousseau no Discurso é de que “Os filósofos que examinaram os</p><p>fundamentos da sociedade sentiram a necessidade de remontar até ao estado</p><p>de natureza, mas nenhum deles chegou até lá. Uns não vacilaram em supor no</p><p>homem nesse estado a noção do justo e do injusto, sem se inquietar em mostrar</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 45</p><p>que o objetivo comum dos filósofos com a investigação do estado</p><p>de natureza, isto é, a compreensão da sociedade moderna (objetivo</p><p>partilhado, inclusive, pelo próprio Rousseau), constitui uma pesada</p><p>hipoteca. No curso do escrito, Rousseau critica insistentemente os</p><p>pesados modernismos presentes nas caracterizações do estado natural</p><p>de Hobbes em diante,16 e também nas observações sobre os outros</p><p>povos registradas nos relatos de viagens dos europeus,17 mostrando</p><p>uma notável sensibilidade de tipo antropológico ao desembaraçar-se</p><p>do nexo-oposição entre natureza e cultura18 (a partir dessa cópula ele</p><p>empreende também a sua crítica à modernidade). Para o conhecimento</p><p>das leis naturais são necessárias pesquisas empíricas aprofundadas,</p><p>que se substituem às especulações metafísicas abstratas sobre a lei</p><p>natural, e nos afastamos da solução quando atribuímos a razão aos</p><p>homens naturais e às fundações da sociedade.19 Certamente, para</p><p>que ele deviera ter essa noção, nem sequer que ela lhe fosse útil. Outros falaram do</p><p>direito natural que cada qual tem de conservar o que lhe pertence, sem explicar o</p><p>que entendiam por pertencer. Outros, dando, primeiro, ao mais forte a autoridade</p><p>sobre o mais fraco, fizeram logo nascer o governo, sem pensar no tempo que deve</p><p>ter passado antes que o sentido das palavras autoridade e governo pudesse existir</p><p>entre os homens. Enfim, todos, falando sem cessar de necessidade, de avidez, de</p><p>opressão, de desejos e de orgulho, transportaram ao estado de natureza ideias que</p><p>tomaram na sociedade: falavam do homem selvagem e pintavam o homem civil”</p><p>(ROUSSEAU, 1992, p.168; trad. it., p.98).</p><p>16 Isto é, “além do defeito de não serem uniformes, têm ainda o de serem tiradas</p><p>de muitos conhecimentos que os homens naturalmente não possuem, e vantagens</p><p>das quais só poderiam fazer alguma ideia depois de terem saído do estado natural”</p><p>(ROUSSEAU, 1992, p.161; trad. it., p.90).</p><p>17 “Há trezentos ou quatrocentos anos que os habitantes da Europa inundam as</p><p>outras partes do mundo, e publicam sem cessar novas narrativas de viagens e</p><p>relatos, e estou persuadido de que só conhecemos homens europeus; ainda parece,</p><p>diante dos ridículos preconceitos que não desapareceram mesmo entre os homens</p><p>letrados, que cada qual, sob o nome pomposo de estudo do homem, apenas estuda</p><p>os homens do seu país” (ROUSSEAU, 1992, p.161; trad. it., p.90).</p><p>18 Segundo ele, “não é empresa de pouca monta discernir o que há de originário</p><p>e artificial na natureza atual do homem, e conhecer bem um estado que já não</p><p>existe, que talvez não tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e do qual</p><p>é, contudo, necessário ter noções exatas, para bem julgar o nosso estado presente”</p><p>(ROUSSEAU, 1992, p.159; trad. it., p.88). Vale recordar o débito que Lévi-Strauss</p><p>reconhece ter com Rousseau em Tristes trópicos.</p><p>19 “Os modernos, só reconhecendo sob o nome de lei uma norma prescrita a um ser</p><p>moral, isto é, inteligente, livre e considerado em suas relações com outros seres,</p><p>limitam consequentemente ao único animal dotado de razão, isto é, ao homem, a</p><p>competência da lei natural [...]. De sorte que todas as definições desses homens</p><p>46 • Marco Vanzulli</p><p>conhecer a lei natural não basta só pesquisa empírica, é necessário</p><p>mais filosofia do que se pensa,20 e aquilo que Rousseau apresenta como</p><p>propriamente hipótese e conjecturas – “des raisonnements hypothétiques</p><p>et conditionnels”21 – propõem como escopo o “conhecimento dos reais</p><p>fundamentos da sociedade humana”.22 Além do erro que consiste na</p><p>projeção de características do homem contemporâneo sobre o estado</p><p>de natureza, segundo o Discurso de Rousseau, esse último também foi</p><p>erroneamente identificado com as primeiras formações sociais em</p><p>que ainda se encontravam os povos selvagens descritos nos relatos de</p><p>viagem: tratar-se-ia, porém, de um primeiro nível do desenvolvimento</p><p>social em que já se fizeram manifestos sentimentos e disposições</p><p>morais desconhecidos ao isolado homem primitivo, como o amor, a</p><p>inveja, a honra, a vingança, a crueldade.23 Se Rousseau define a sua</p><p>própria abordagem do estado de natureza como uma “descrição</p><p>hipotética”, seu objetivo com ela, todavia, é destruir preconceitos</p><p>mediante uma escavação radical histórica e filosófica. Portanto, é</p><p>necessário reformular a tarefa de “conhecer o homem natural” e a lei</p><p>natural deve falar “diretamente com a voz da natureza”.24</p><p>Em relação ao jusnaturalismo, o estado de natureza de</p><p>Rousseau é anterioridade em relação à razão. Pré-racionalidade são</p><p>o instinto de conservação25 (o instinto fundamental para Hobbes)</p><p>sábios, definições, aliás, em perpétua contradição entre si, concordam somente</p><p>em que é impossível entender a lei da natureza e, por conseguinte, obedecer-lhe,</p><p>sem ser um grande pensador e profundo metafísico: isso significa precisamente</p><p>que os homens tiveram de empregar, para o estabelecimento da sociedade, luzes</p><p>que só se desenvolvem com muita dificuldade e para muito pouca gente no seio da</p><p>própria sociedade” (ROUSSEAU, 1992, p.160-161; trad. it., p.90).</p><p>20 ROUSSEAU, 1992, p.159; trad. it., p.88.</p><p>21 ROUSSEAU, 1992, p.169; trad. it., p.98-99.</p><p>22 ROUSSEAU, 1992, p.160; trad. it., p.89.</p><p>23 Segundo ele, “foi por não terem distinguido suficientemente as ideias e notado</p><p>como esses povos já estavam longe do primeiro estado de natureza, que muitos se</p><p>apressaram em concluir que o homem é naturalmente cruel e tem necessidade de</p><p>polícia para abrandá-lo, quando não há nada tão manso como ele em seu estado</p><p>primitivo, quando, colocado pela natureza em distância igual da estupidez dos</p><p>brutos e das luzes funestas do homem civil, e limitado tanto pelo instinto quanto</p><p>pela razão a se preservar do mal que o ameaça, é impedido pela piedade natural de</p><p>fazer mal a quem quer que seja, não sendo por nada levado a isso, mesmo depois</p><p>de tê-lo recebido” (ROUSSEAU, 1992, p.228-229; trad. it., p.139).</p><p>24 ROUSSEAU, 1992, p.161; trad. it., p.90-91.</p><p>25 Rousseau distingue amor de si e amor próprio: “O amor de si mesmo é um</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 47</p><p>e a piedade. O direito natural resulta da combinação desses dois</p><p>princípios, e Rousseau exclui a existência de um autônomo “princípio</p><p>de sociabilidade”, com o claro intento de opor-se, também ele, e como</p><p>Hobbes, à naturalidade da sociedade proposta por Aristóteles no início da</p><p>Política.26 A sociedade possui então caráter artificial e não necessário. O</p><p>impulso à piedade cede somente, e legitimamente, àquele de conservação,27</p><p>que é testemunho do utilitarismo fundamental próprio do homem.28</p><p>A piedade, instinto proto-social, “inspira-nos uma repugnância</p><p>instintiva a ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível, sobretudo os</p><p>nossos semelhantes”;29 é um princípio que Hobbes não intuiu jamais,</p><p>dado ao homem para atenuar, em algumas circunstâncias, a ferocidade</p><p>de seu amor próprio, o instinto de conservação, antes que esse amor</p><p>nascesse (Nota XV): tal princípio modera o ardor pelo benefício próprio</p><p>com uma inata repugnância em ver sofrer o próprio semelhante [...]</p><p>precede nele o uso de qualquer reflexão e é tão natural que também as</p><p>bestas dão frequentemente provas tangíveis disso.30</p><p>Rousseau elogia Mandeville por ter compreendido que a</p><p>piedade é complementar à razão, de outro modo os homens seriam</p><p>monstros, mas o critica por não ter compreendido</p><p>que “dessa única</p><p>sentimento natural que leva todo animal a velar por sua própria conservação, e que,</p><p>dirigido no homem pela razão e modificado pela piedade, produz a humanidade</p><p>e a virtude. O amor-próprio é apenas um sentimento relativo, factício e nascido</p><p>na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de qualquer</p><p>outro, que inspira nos homens todos os males que se impingem mutuamente,</p><p>e que é a verdadeira fonte da honra. Bem entendido isso, repito que, no nosso</p><p>estado primitivo, no verdadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe”</p><p>(ROUSSEAU, 1992, nota XV, p.212; trad. it., p.208).</p><p>26 ROUSSEAU, 1992, p.162; trad. it., p.91.</p><p>27 Ele “jamais fará mal a outro homem, nem mesmo a nenhum ser sensível, exceto</p><p>no caso legítimo em que, estando em jogo a sua conservação, é obrigado a dar</p><p>preferência a si mesmo” (ROUSSEAU, 1992, p.162; trad. it., p.91).</p><p>28 O homem selvagem, em seus primeiros desenvolvimentos socioculturais, descobre</p><p>esta verdade geral sobre os homens: “Instruído pela experiência de que o amor pelo</p><p>bem-estar é o único móvel das ações humanas, achou-se em condição de distinguir</p><p>as raras ocasiões em que o interesse comum lhe devia fazer contar com a assistência</p><p>dos seus semelhantes, e aquelas mais raras ainda em que a concorrência lhe devia</p><p>fazer desconfiar deles” (ROUSSEAU, 1992, p.224; trad. it., p. 135).</p><p>29 ROUSSEAU, 1992, p.162; trad. it., p.91.</p><p>30 ROUSSEAU, 1992, p.211-212; trad. it., p.122.</p><p>48 • Marco Vanzulli</p><p>qualidade derivam todas as virtudes sociais que ele contesta aos</p><p>homens”.31 E paradoxalmente a piedade, sentimento do selvagem</p><p>isolado, é o mais social dos sentimentos humanos, base de todos os</p><p>sentimentos altruísticos, enquanto o homem em sociedade – e imagem</p><p>paradigmática dessa condição é o filósofo que refreia a inclinação à</p><p>piedade, que prova quando um semelhante seu vem massacrado sob</p><p>a sua janela, com a ajuda de argumentos racionais, garantindo-lhe</p><p>um sono tranquilo – curva-se sobre si mesmo, o amor próprio o torna</p><p>indivíduo, o separa dos outros a reflexão, isto é, o cálculo das próprias</p><p>utilidades: cinismo, egoísmo, racionalidade separada das paixões</p><p>generosas do impulso. É a “barbárie da reflexão” que, com Vico,</p><p>Rousseau condena quando condena o próprio tempo. Para Rousseau,</p><p>desenvolvimento do indivíduo e melhoramento da humanidade não</p><p>caminham par e passo.32 Prova disso é a adesão de Rousseau (não</p><p>incondicionada, todavia) à primeira etapa da vida associada, aquela da</p><p>comunidade aldeã. Ainda que “a bondade conveniente ao puro estado</p><p>de natureza não fosse mais oportuna à sociedade nascente”, o estado</p><p>de vida aldeã parece a Rousseau como, de qualquer modo, desejável,</p><p>assim como a juventude do gênero humano se contrapõe à decrepitude</p><p>do mundo contemporâneo.33 Rousseau se coloca aqui – junto de Vico</p><p>– entre os primeiros a refletir sobre a ambiguidade da relação entre o</p><p>problema do individualismo e o desenvolvimento da civilização.34</p><p>A piedade no estado de natureza de Rousseau assume uma</p><p>certa consistência e de espontâneo “sentimento natural” torna-se um</p><p>31 ROUSSEAU, 1992, p.213-214; trad. it., p.123-124.</p><p>32 Como ele escreve: “todos os progressos ulteriores [após o estado comunitário</p><p>selvagem que segue ao estado de natureza] foram, aparentemente, outros tantos</p><p>passos para a perfeição do indivíduo, mas, de fato, passos em direção à decrepitude</p><p>da espécie” (ROUSSEAU, 1992, p.213; trad. it., p.140).</p><p>33 “Assim, embora os homens se tivessem tornado menos tolerantes, e a piedade</p><p>natural já tivesse sofrido certa alteração, esse período do desenvolvimento das</p><p>faculdades humanas, guardando um justo meio entre a intolerância do estado de</p><p>natureza e a petulante atividade de nosso amor-próprio, devia ser a época mais</p><p>feliz e mais durável. [...] O exemplo dos selvagens, que estiveram quase todos nesse</p><p>estado, parece confirmar que o gênero humano fora feito para nele ficar sempre;</p><p>e que foi essa a verdadeira juventude do mundo” (ROUSSEAU, 1992, p.230-231;</p><p>trad. it., p.140).</p><p>34 Dentre os numerosos exemplos que se seguiram, podemos recordar Marx,</p><p>sobretudo aquele dos Grundrisse, e Durkheim.</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 49</p><p>preceito da natureza: “Faça o teu bem com o menor dano possível aos</p><p>outros”, em substituição à “sublime máxima de justiça racional”, “Faça</p><p>aos outros aquilo que gostaria que fosse feito a você”. A piedade torna-</p><p>se o sentimento das boas ações, ou da abstenção das más, no estado</p><p>natural, sentimento que</p><p>concorre para a conservação mútua da toda a espécie [...] Não obstante</p><p>possa ser próprio de Sócrates e dos espíritos de mesmo temperamento</p><p>alcançar a virtude pela razão, o gênero humano não existiria mais,</p><p>há muito tempo, se a sua conservação dependesse só dos raciocínios</p><p>daqueles que dele fazem parte.35</p><p>Esse sentimento humano-animal-natural da piedade transfor-</p><p>ma-se no sentimento que Rousseau descreve após o nascimento da</p><p>propriedade, quando as relações entre os homens são marcadas por</p><p>um estado, agora, de desigualdade relacional, ao qual se opõe a igual-</p><p>dade relativa do estado de natureza, e por laços sociais de dominação</p><p>e poder. A transformação antropológica é o separar-se e a supremacia</p><p>do aparecer sobre o ser,36 consequência da dependência e da coação</p><p>dos homens uns pelos outros, da hipocrisia, da prepotência, da ambi-</p><p>ção: do cinismo da sociedade desenvolvida.</p><p>Com algumas significativas diferenças – que anuncio a seguir –</p><p>é este o ponto em que se manifesta um tema condutor do ataque anti-</p><p>jusnaturalista viquiano. Também Vico leva a sério a figura do bestione,</p><p>mas o encontra privado de sentimentos e de humanidade: “estúpidos,</p><p>insensatos e horríveis bestas”, escreve.37 No estado de natureza “não havia</p><p>nenhuma espécie de humanidade”,38 e os bestioni são por ele chamados</p><p>de “ímpios vagabundos”, “que possuíam aspecto de homens e costumes</p><p>de bestas nefandas”:39 inútil, portanto, buscar ali qualquer traço de</p><p>humanidade. Como veremos, não são preocupações de tipo teológico que</p><p>levam Vico a descrever, desse modo, o homem que é pura natureza.</p><p>35 ROUSSEAU, 1992, p.214-215; trad. it., p.124.</p><p>36 ROUSSEAU, 1992, p.235; trad. it., p.143.</p><p>37 Sn44, §374, p.569.</p><p>38 Sn44, §688, p.761.</p><p>39 Sn44, §688, p.762.</p><p>livrar</p><p>Realce</p><p>50 • Marco Vanzulli</p><p>O amor como sentimento moral é, para Rousseau, inexistente no</p><p>estado de natureza.40 O amor era só impulso físico, sem sentimento, e</p><p>inclusive o amor para com os filhos era desconhecido pelas mães.41 O</p><p>amor é fruto dos primeiros passos da civilização, efeito da formação da</p><p>família, com funções que vão se diversificando na vida de uma mesma</p><p>casa, é efeito, portanto, de uma condição social e não se pode encontrar</p><p>no vagar ferino do solitário na floresta.42 Em Vico, por outro lado, o afeto</p><p>em relação aos filhos é ausente não só no estado de natureza, onde nem</p><p>sequer existe a noção de filho, mas nos próprios costumes arcaicos. Como</p><p>nota Riccardo Caporali, “a ternura e o amor são um desdobramento da</p><p>humanitas, uma conquista da idade dos homens”, que se vincula a razões</p><p>utilitárias, embora seja ausente na época do domínio nobiliário sobre</p><p>os plebeus.43 Para Rousseau, em vez disso, é nessa época arcaica que</p><p>surgem os amores e a ternura familiares.44</p><p>O interesse viquiano é pela constituição das primeiras</p><p>comunidades humanas. Também Vico, alinhado com a corrente</p><p>40 “Ora, é fácil ver que a moral do amor é um sentimento factício, nascido dos</p><p>costumes da sociedade e celebrado pelas mulheres com muita habilidade e</p><p>cuidado para estabelecerem o seu império e tornar dominante o sexo que deveria</p><p>obedecer. Fundado sobre certas noções do mérito ou da beleza que um selvagem</p><p>é incapaz de ter, e sobre comparações que não está em condição de fazer, esse</p><p>sentimento deve ser quase nulo para ele” (ROUSSEAU, 1992, p.216; trad. it., p.126).</p><p>41 “Como a fome e outros apetites o faziam experimentar alternativamente diversas</p><p>maneiras de existir, houve uma que o convidou a perpetuar a sua espécie;</p><p>e esse</p><p>pendor cego, desprovido de todo sentimento de coração, não produzia senão</p><p>um ato puramente animal: satisfeita a necessidade, os dois sexos nunca mais se</p><p>reconheciam e o próprio filho nada mais representava para a mãe logo que podia</p><p>passar sem ela” (ROUSSEAU, 1992, p.222; trad. it., p.134).</p><p>42 “Os primeiros desenvolvimentos do coração foram o efeito de uma situação nova</p><p>que reunia em uma habitação comum os maridos e as mulheres, os pais e os filhos.</p><p>O hábito de viver coletivamente fez nascer os mais doces sentimentos conhecidos</p><p>pelos homens: o amor conjugal e o amor paternal” (ROUSSEAU, 1992, p.226; trad.</p><p>it., p.137).</p><p>43 Deixamos de lado o sentimento de pudor de que fala Vico, já que ele aparece,</p><p>mais do que outro, como expediente para passar da situação do bestione àquela</p><p>das primeiras comunidades, um deus ex machina para refletir aquele outro deus</p><p>ex machina, o temor divino, que, em certo ponto, surgiria para civilizá-lo. Não há</p><p>dúvidas de que o homem tenha se tornado civilizado no interior e através das</p><p>religiões, mas sempre comunitariamente.</p><p>44 CAPORALI, R. La “tenerezza” e la “barbarie”. In: ______. La tenerezza e la barbarie.</p><p>Studi su Vico. Napoli: Liguori, 2006, p.103-104. Caporali fala justamente das</p><p>“origens materiais dos sentimentos” em Vico (Ibid., p.106).</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 51</p><p>principal da modernidade, não pôde contentar-se com a franca</p><p>naturalidade da sociedade civil formulada no início da Política de</p><p>Aristóteles. A “voz da natureza” neste sentido pré-civil interessa a</p><p>Vico relativamente, porque é uma condição limítrofe, às margens da</p><p>história; interessa-lhe, por outro lado, a humanidade das comunidades,</p><p>segundo um discurso, porém, que não aceita mais tratar a história e</p><p>a pré-história como modelo abstrato dirigido ao político em termos</p><p>modernos (e nem mesmo é verdadeiro o contrário, isto é, que a Vico</p><p>interessa o homem poético, arcaico e não a modernidade). É evidente</p><p>também para Vico – que segue camuflando, o quanto pode, a tese</p><p>dos pré-adâmitas de La Peyrère – que a passagem para a sociedade</p><p>é um êxito não garantido, mas a principal diferença aqui em relação a</p><p>Hobbes e a Rousseau é que a natureza humana não é um dado natural</p><p>originário, o “fonds” de que fala Rousseau, e sim um processo: essa</p><p>se constitui num fazer-se histórico e, por isso, em todos os aspectos,</p><p>coincide com o processo de humanização.45 Pensa-se na expressão</p><p>“as gentes recém-chegadas à humanidade”.46 Certamente, também</p><p>Rousseau demonstra não conceber a natureza humana como um dado</p><p>fixo, visto que aquilo que chamei historicismo do Discurso consiste</p><p>precisamente em descrever a passagem da igualdade à desigualdade</p><p>como uma transformação antropológica, como uma desnaturação da</p><p>natureza humana, mas se trata principalmente de uma desnaturação,</p><p>isto é, de qualquer coisa que vem deformada, porque a forma animal-</p><p>natural permanece como modelo daquelas qualidades e disposições</p><p>de vida que é preciso recuperar (e não como uma condição à qual</p><p>retornar, coisa que, para o próprio Rousseau, não tem sentido). Em</p><p>Vico, por sua vez, não é o dado natural do homem isolado, que vaga</p><p>pela floresta, a referência positiva, mas sim a primeira constituição da</p><p>humanidade, com a qual ocorre a constituição da história: é a primeira</p><p>natureza humana histórica, é um fato histórico, o ato de vir a ser das</p><p>comunidades em torno ou sobre os costumes e princípios fundadores</p><p>da humanidade, que vale como modelo de boa natureza humana, isto</p><p>é, que oferece aqueles parâmetros de humanidade dentro dos quais</p><p>45 Indico aqui o meu: VANZULLI, M. La natura umana nella “Scienza Nuova”.</p><p>Quaderni Materialisti, Milano, n.9, p.197-207, 2010.</p><p>46 Sn44, §629, p.728.</p><p>52 • Marco Vanzulli</p><p>todas as sociedades devem permanecer para não corromperem-se. Não</p><p>nos esqueçamos que, para Vico, o estado inocente animal do homem</p><p>é estigmatizado como barbárie, barbárie do sentido, que corresponde,</p><p>no cume da civilização, a outro tipo de barbárie, no limite coincidente</p><p>com aquela originária: a barbárie da reflexão.</p><p>É preciso então, tanto para Vico quanto para Rousseau, superar</p><p>o abstrato racionalismo hobbesiano que acredita ser cruamente</p><p>realístico em sua definição dos impulsos humanos fundamentais,</p><p>mas, pelo contrário, pinta um homem primitivo já cartesiano e</p><p>racionalisticamente orientado em suas escolhas, diferentes são,</p><p>contudo, as determinações do estado de natureza hobbesiano que os</p><p>nossos dois autores não aceitam. O homem hobbesiano no estado de</p><p>natureza se acha marcado por uma prepotência e uma violência que</p><p>são, para Rousseau, sociais, e que Vico, ao contrário, mantém também</p><p>no bestione, violento porque não pio, mas com o objetivo de se reportar,</p><p>também ele, à violência como fator fundamental das primeiras</p><p>contendas sociais, que são contendas agrárias, imediatamente</p><p>assinaladas pelo conflito, pelo domínio e pela exploração do trabalho.</p><p>Vico não exclui, diversamente de Rousseau, a crua violência das</p><p>primeiras relações inter-humanas (certamente não é uma violência</p><p>gratuita, já que essa somente pode ser uma violência cínica, disposição</p><p>sentimental desconhecida ao homem primitivo e arcaico), que é uma</p><p>violência pelo domínio sobre o homem, pela terra e os bens. Para</p><p>Rousseau, entretanto, ela está excluída do estado de natureza como</p><p>estado animal e selvagem ou, em todo caso, confinada nos limites de uma</p><p>animalidade ingênua da qual estão excluídos os aspectos da crueldade</p><p>e da brutalidade, e, no que diz respeito às sociedades dominadas</p><p>pela potência da propriedade, também das primeiras comunidades</p><p>simples e harmônicas da segunda parte do Discurso. Em suma, Vico</p><p>não concede docilidades à animalidade originária do homem, é um</p><p>estado pré-civil e, portanto, um estado de obtusidade, não só sem</p><p>luzes, mas sem adequação a um modelo (a não ser a modelo negativo</p><p>de carência do liame social, como ocorre na barbárie da reflexão).</p><p>No bestione tudo está ainda em potência, e todos os sentimentos,</p><p>inclusive a piedade, são sociais. Vico chama a piedade – entendendo-a</p><p>não tanto a compaixão de que fala Rousseau, quanto o conjunto das</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 53</p><p>disposições que concernem a esfera da religiosidade – “a mãe de todas</p><p>as morais, econômicas e civis virtudes”, em todas as nações, o início</p><p>da “moral poética”, isto é, da moral tout-court. Mas a piedade não é um</p><p>sentimento pertencente ao homem-animal do estado de natureza, ao</p><p>invés, “a piedade começou pela religião, que propriamente é temor da</p><p>divindade”.47 Vico não pensa em enfatizar uma inocência dos bestioni,</p><p>a não ser precisamente em oposição à outra barbárie, aquela da</p><p>reflexão, em que a humanidade é individualista, cínica e egoísta no seu</p><p>refinamento e estéril agudeza – e aqui o tom é semelhante àquele da</p><p>contraposição rousseauniana entre o ingênuo selvagem e o homem</p><p>corrompido. Fica claro então, em ambos os casos, o objetivo de indicar</p><p>a boa vida civil, que concede ao homem todas as suas boas faculdades</p><p>– no que tange a Rousseau, esse tema está presente sobretudo no</p><p>Contrato social, já porque no Discurso não há qualquer pars costruens</p><p>substancialmente desenvolvida ou, se desejamos encontrar elementos</p><p>sócio-políticos positivos, no máximo estão ali in nuce. Na dignidade VII</p><p>da Scienza nuova Vico diz que os homens associais vivem todos para</p><p>suas utilidades privadas e que só a legislação, ou os homens vivendo</p><p>sob leis civis, transforma a “ferocidade, a avareza, a ambição, que</p><p>são os três vícios que atravessam todo o gênero humano”, em artes</p><p>socialmente uteis: “a milícia, o comércio e a corte”. Mas quando pensa</p><p>nessas “paixões” humanas – “esses três grandes vícios que certamente</p><p>destruiriam a geração humana sobre a terra [...] pelos quais viveriam</p><p>como bestas feras em solidão”, que socialmente transformadas fazem</p><p>“a fortaleza, a opulência, e a sabedoria das repúblicas [...] a felicidade</p><p>civil” – Vico pensa mais na</p><p>vida social dominada pelo individualismo</p><p>do que no estado de natureza.48</p><p>Vico, por outro lado, não teria nunca subscrito a famosa frase do</p><p>incipit da segunda parte do Discurso, em que Rousseau diz que quem</p><p>tivesse arrancado as cercas da propriedade privada ou superado o fosso</p><p>gritando que os frutos são de todos e a terra de ninguém teria sido um</p><p>benfeitor da humanidade. Para além da função que esse expediente</p><p>retórico desempenha no Discurso, para Vico, a emancipação se concebe</p><p>47 Sn44, §503, p.644.</p><p>48 Cf. Sn44, §132 e §133, p.497.</p><p>54 • Marco Vanzulli</p><p>como um processo que se dá por meio da exploração e da desigualdade</p><p>da propriedade e dos homens. A ideia de propriedade certamente nasce,</p><p>para Rousseau, de um processo histórico, e, todavia, nele não é de todo</p><p>ausente a crítica moral à origem da propriedade enquanto impostura,</p><p>que remete a uma posição subjetivista e voluntarista de todo estranha à</p><p>mentalidade viquiana, para a qual a questão se coloca, em vez disto, no</p><p>domínio das duras relações materiais entre grupos sociais. O individuo</p><p>e a consciência não desempenham função autônoma alguma no</p><p>processo sociocultural viquiano. Quando Rousseau, no início do Livro</p><p>II do Discurso, esboça o desenvolvimento das ideias dos homens como</p><p>fontes das práticas que vão desenvolvendo, encara essas primeiras</p><p>aquisições do gênero humano, na caça, na pesca, nas vestimentas e</p><p>nas primeiras habitações rudimentares, pelo ponto de vista de uma</p><p>psicologia individual, ponto de vista que Vico abandona inicialmente</p><p>(e que jamais segue efetivamente), pois nem mesmo se empenha em</p><p>entrar na psique e nos movimentos do Robinson isolado, somente</p><p>na mentalidade coletiva. Rousseau descreve um processo entre a</p><p>metalurgia e a agricultura que se vale das qualidades psicológicas dos</p><p>indivíduos, em que “as qualidades pessoais estão na origem de todas</p><p>as outras”,49 e cita assim “o mais hábil”, “o mais engenhoso” etc.,50 que</p><p>lembram, de certo modo, os “débeis”, “miseráveis” e os “pios, castos,</p><p>fortes e também potentes”, que Vico põe no início da constituição da</p><p>propriedade agrícola,51 no mundo, diríamos, proto-social arcaico, o</p><p>mundo dos recintos e dos altares originários, mas, observando bem,</p><p>essas qualidades primigênias postuladas por Vico não pertencem aos</p><p>indivíduos, mas são os traços distintivos dos homens em sociedade,</p><p>que tomam da sociedade as qualidades de religiosos, fortes, castos</p><p>etc., e dos bestioni no estado de natureza, que se distinguem entre</p><p>si somente por meio da força.52 Com esse propósito vale notar que a</p><p>religião, fenômeno coletivo por excelência, não aparece nomeada no</p><p>49 ROUSSEAU, 1992, p.252; trad. it., p.158.</p><p>50 ROUSSEAU, 1992, p.234; trad. it., p.143.</p><p>51 Cf. Sn44, §17, p.426.</p><p>52 Uma força natural, diversa da força dos “pios e castos”, temperada pelo trabalho:</p><p>“Os ímpios-vagabundos-débeis, perseguidos pelos mais robustos, a estes altares</p><p>recorrendo, os mais fortes mataram os violentos e ali receberam em proteção os</p><p>débeis” (Sn44, §17, p.426).</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 55</p><p>Discurso, deixando assim de lado o dado antropológico fundamental</p><p>da religiosidade coletiva dos selvagens. Certamente, se na ficção do</p><p>estado de natureza o bestione isolado é a-religioso ou pré-religioso,</p><p>todavia, a religiosidade pervasiva é o aspecto constitutivo das</p><p>comunidades arcaicas; é a religião do trovão que interrompe o vagar</p><p>ferino e introduz os sentimentos e a humanidade, gerando, a partir do</p><p>bestione, o homem.</p><p>Seja como for, Vico está interessado em alcançar o momento</p><p>capital em que a exploração se torna, com a união dos patres em</p><p>reação aos famoli, um conflito entre ordens.53 Em um certo sentido,</p><p>Vico começa ali onde Rousseau termina, isto é, nas formas sociais</p><p>do conflito acerca da propriedade e das honrarias: na economia e na</p><p>política. A intenção do Discurso de Rousseau é outra e, nesse ponto,</p><p>aquilo que chamei o seu historicismo mostra os próprios limites. Com a</p><p>propriedade, segundo o genebrino, os desenvolvimentos socioculturais</p><p>seguem rapidamente, e surpreende ler, de um ponto de vista viquiano,</p><p>Rousseau considerar que tais desenvolvimentos possam ser, nesse</p><p>ponto, facilmente reconstruídos por cada um: “chacun peut aisément</p><p>suppléer”.54 Enquanto discute a relação dinâmica de pobreza e riqueza</p><p>e os costumes gerados por ela, Rousseau insere a situação de guerra</p><p>de todos contra todos e retoma ao pé da letra o discurso racionalista</p><p>hobbesiano e a instauração do pacto.55 O pacto é compreendido,</p><p>porém, como impostura do rico, que atribui ao Estado a função dada</p><p>por Hobbes: dotado de uma racionalidade específica e conduzido</p><p>em nome da utilidade comum, que Rousseau não nega, ajuntando-</p><p>lhes, porém, a razão de ser da defesa do rico e da propriedade e a</p><p>desigualdade da exploração: o Estado é criado em certo sentido só</p><p>para esse escopo.56 O subjetivismo de Rousseau fica patente na sua</p><p>53 Rousseau considera a teoria do nascimento do Estado como “união dos débeis”,</p><p>mas rejeitou-a, preferindo a “forte / débil”, expressão que ele julga equivocada, a</p><p>cópula “rico / pobre” (ROUSSEAU, 1992, p.252; trad. it., p.158).</p><p>54 ROUSSEAU, 1992, p.235; trad. it., p.143.</p><p>55 ROUSSEAU, 1992, p.237-238; trad. it., p.145-146.</p><p>56 Ou como escreve Rousseau: “é mais razoável acreditar ter sido uma coisa</p><p>inventada por aqueles a quem é útil do que por aqueles a quem prejudica”</p><p>(ROUSSEAU, 1992, p.237-238; trad. it., p.145-146).</p><p>56 • Marco Vanzulli</p><p>teoria do contrato.57 Apesar da teoria do pacto como impostura,</p><p>Rousseau demonstra interessar-se por ela e estabelece, ao final da</p><p>segunda parte do Discurso, o problema da inalienabilidade, além da</p><p>vida, da liberdade que será resolvido no Contrato social.58 Agindo</p><p>assim Rousseau acaba ocultando o tema do conflito entre grupos</p><p>(ainda que fossem apenas esboçados na dicotomia de ricos e pobres),</p><p>e isso segundo uma certa lógica, pois o modo como havia concebido o</p><p>pacto não permitia nenhuma solução em termos de desenvolvimento</p><p>imanente da civilização. Abre-se aqui a questão da relação entre este</p><p>quadro de desenvolvimento da humanidade, que vai da natureza à</p><p>sociedade, e o modelo contratualista, questão que se repropõe também</p><p>para o Contrato social,59 ainda que se pudesse discutir se o interesse</p><p>em determinar o processo sociocultural fosse aspecto fundamental</p><p>do texto de Rousseau, considerando o deus ex machina das catástrofes</p><p>naturais que intervêm causando a passagem ao desenvolvimento da</p><p>linguagem e das nações, e cujo aspecto fundamental é o da difusão</p><p>cultural por parte dos mais evoluídos.60</p><p>57 É provável que haja neste ponto alguma retomada da literatura libertina.</p><p>58 O Discurso já faz uso da noção de contrato, ainda que remeta sua abordagem a</p><p>outro texto: “Sem entrar agora nas pesquisas que ainda estão por fazer sobre a</p><p>natureza do pacto fundamental de todo governo, limito-me, seguindo a opinião</p><p>comum, a considerar o estabelecimento do corpo político como um verdadeiro</p><p>contrato entre o povo e os chefes que ele escolhe; contrato pelo qual as duas</p><p>partes se obrigam à observância das leis nele estipuladas e que formam os laços</p><p>da sua união” (ROUSSEAU, 1992, p.237-238; trad. it., p.145-146).</p><p>59 No próprio Contrato social, a noção de contrato foi considerada como sendo</p><p>somente formal, como comenta Sabine: “dada a sua crítica ao homem natural,</p><p>ele deveria ter evitado absolutamente o conceito de contrato, como privado de</p><p>significado e enganador. Ele conservou, contudo, a expressão, pois lhe agradava o</p><p>seu reclame popular e, para não tornar muito manifesta a contradição, suprimiu</p><p>a crítica ao estado de natureza que havia escrito contra Diderot”. Mas o seu</p><p>contrato era destituído de um significado definido: antes de tudo, nada tem a ver</p><p>com os direitos e os poderes do governo, pois o governo outra coisa não é que</p><p>o representante do povo, e é de tal forma destituído de poderes independentes</p><p>que não pode se constituir numa parte independente; em segundo lugar, já que</p><p>a comunidade não é feita de cidadãos, mas é a eles contemporânea, a palavra</p><p>contrato era, por isso, mais enganadora que qualquer outro termo que Rousseau</p><p>teria podido escolher (SABINE, G. H. Storia delle dottrine politiche. Tradução</p><p>italiana de L. de Col. Milano: Etas, 2003, p.449-450). Todavia, aqui não se trata</p><p>tanto da instituição da comunidade, mas do modo de governo em que se exprime</p><p>efetivamente a vontade geral, e não a vontade de todos ou a vontade de poucos.</p><p>60 “Grandes inundações ou terremotos cercaram de águas ou de precipícios</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 57</p><p>Aquele de Vico é um historicismo que não podemos dizer</p><p>plenamente progressista: há uma ambiguidade e um risco profundo</p><p>no abrir-se da razão em sua primeira manifestação sensível-</p><p>fantástica. A idade da razão viquiana se encontra, porém, em uma</p><p>tensão com a idade arcaica, que pode ser também fecunda, se bem</p><p>que nunca fixa e garantida (também aqui nenhum iluminismo é</p><p>fácil), enquanto nos dois Discursos há um corte, uma nítida cisão.</p><p>As duas posições encontram, entretanto, pontos interessantes</p><p>de coincidência, especialmente ali onde Vico trata da barbárie</p><p>da reflexão. O que identifica os dois autores à luz das teorias do</p><p>progresso e do historicismo clássico, foi ter insistido fortemente</p><p>sobre a ambiguidade da civilização – advertindo não tanto</p><p>sua negatividade, mas principalmente seu caráter ambíguo,</p><p>contraditório, suas vantagens e suas perdas, em uma perspectiva</p><p>que, em ambos os autores, não se deixa fascinar pela solução fácil</p><p>do relativismo dos valores e dos caracteres das épocas autônomas.61</p><p>A humanidade da barbárie da reflexão, com sua vazia civilização</p><p>e seu cinismo se assemelha muito à civilidade refinada criticada por</p><p>Rousseau nos dois Discursos, e uma das soluções que Vico propõe para</p><p>ela é que estes homens refinados e maldosos sejam submetidos por</p><p>um povo mais jovem, mais virtuoso:</p><p>tais povos, de tão corrompidos, haviam já, antes de tudo, se tornado es-</p><p>cravos pela natureza de suas paixões desenfreadas (pelo luxo, pela de-</p><p>licadeza, pela avareza, pela inveja, pela soberba e a pompa) e, pelo pra-</p><p>zer da sua vida dissoluta, revolviam-se em todos os vícios próprios de</p><p>escravos vilíssimos (de serem mentirosos, espertalhões, caluniadores,</p><p>ladrões, covardes e fingidos), tornam-se escravos por direito natural</p><p>cantões habitados; revoluções do globo desarticularam e cortaram em ilhas</p><p>porções do continente. Concebe-se que, entre homens assim aproximados e</p><p>forçados a viverem juntos, deve ter se formado um idioma comum, mais depressa</p><p>do que entre aqueles que erravam livremente pelas florestas da terra firme. Assim,</p><p>é muito possível que, após seus primeiros ensaios de navegação, alguns insulares</p><p>nos tenham trazido o uso da palavra” (ROUSSEAU, 1992, p.227; trad. it., p.138).</p><p>61 É esta a interpretação de Vico feita por Isaiah Berlin (BERLIN, I. Vico and Herder.</p><p>Two studies in the history of the ideas. London: The Hogarth Press, 1976) e</p><p>que, a meu ver, é um total mal-entendido em relação ao pensamento do filósofo</p><p>napolitano.</p><p>58 • Marco Vanzulli</p><p>das gentes, que emana de tal natureza das nações, e vão ser sujeitados</p><p>por nações melhores, que tenham-lhes conquistado com as armas, e</p><p>por estas conservam-se reduzidas a províncias.62</p><p>A mesma juventude e virtude proposta também por Rousseau à</p><p>civilidade corrompida a ele contemporânea.</p><p>Todavia não pode ser este o ponto conclusivo de um confronto –</p><p>ainda que certamente parcial – entre Vico e Rousseau. Enquanto para o</p><p>Rousseau do Discurso sobre a desigualdade o desenvolvimento histórico</p><p>traz consigo uma perda e o moderno apresenta uma aporia política</p><p>que depois O contrato social se encarregará de resolver, elogiando sim</p><p>a maior liberdade civil em comparação àquela natural, mas excluindo</p><p>a confiança no processo histórico (ao aderir assim ao modelo do</p><p>racionalismo jusnaturalista), para Vico o processo, embora carregado</p><p>finalmente dos riscos que apontamos antes, revela-se emancipatório,</p><p>e libera o homem da dominação arcaica, nas suas formas principais,</p><p>aquela sacerdotal dos “deuses” e aquela feudal dos “heróis”.63</p><p>Tradução do italiano:</p><p>Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Referências</p><p>Obras de Vico</p><p>VICO, G. Vita di Giambattista Vico scritta da se medesimo (Vita). In: ______. Opere.</p><p>Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990, p.5-85.</p><p>VICO, G. Princìpj di Scienza nuova d’intorno alla comune natura delle nazione</p><p>(Sn44). In: ______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori,</p><p>1990, p.411-971.</p><p>Outras obras</p><p>BERLIN, I. Vico and Herder. Two studies in the history of the ideas. London: The</p><p>Hogarth Press, 1976.</p><p>62 Sn44, §1.105, p.966-967.</p><p>63 É o que sobressalta justamente Trabant: “Vico é na realidade um anti-Rousseau:</p><p>para ele, seu mundo é sem dúvida um mundo melhor, civilizado, liberado do obscuro</p><p>caráter selvagem da pré-história, da idade média, dos antigos germanos, dos povos</p><p>americanos” (TRABANT, J. La scienza nuova dei segni antichi. La sematologia di</p><p>Vico. Tradução italiana de D. Di Cesare. Bari: Laterza, 1996, p.127).</p><p>Sentimentos humanos naturais e histórico-políticos: Vico e Rousseau • 59</p><p>CAPORALI, R. La “tenerezza” e la “barbarie”. In: ______. La tenerezza e la barbarie.</p><p>Studi su Vico. Napoli: Liguori, 2006, p.99-108.</p><p>ROUSSEAU, J. J. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les</p><p>hommes. In: ______. Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les</p><p>hommes e Discours sur les sciences et les arts. Paris: Flammarion, 1992, p.150-280.</p><p>ROUSSEAU, J. J. Sull’origine dell’ineguaglianza. Tradução italiana de V. Gerratana.</p><p>Roma: Editori Riuniti, 1988.</p><p>SABINE, G. H. Storia delle dottrine politiche. Tradução italiana de L. de Col. Milano:</p><p>Etas, 2003.</p><p>TRABANT, J. La scienza nuova dei segni antichi. La sematologia di Vico. Tradução</p><p>italiana de D. Di Cesare. Bari: Laterza, 1996.</p><p>VANZULLI, M. La natura umana nella “Scienza Nuova”. Quaderni Materialisti, Mila-</p><p>no, n.9, p.197-207, 2010.</p><p>As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico • 61</p><p>As ambiguidades do estado</p><p>de natureza em Platão e Vico</p><p>Vladimir Chaves dos Santos*</p><p>Para alguns filósofos, como Platão e Vico, a história é sempre</p><p>dramática e, por isso, ambígua. Dramática no sentido de que a história</p><p>é aberta à escolha humana e, parafraseando Aristóteles, tanto mais</p><p>trágica quanto mais as escolhas lhe determinam. A ambiguidade, do</p><p>ponto de vista epistemológico, é sempre uma tensão entre aspectos</p><p>opostos, que dificulta a avaliação dos fatos. A constatação das</p><p>ambiguidades da história resulta em uma atitude, em certo sentido,</p><p>cética, à maneira da Nova Academia, aquela que pesquisa as teses</p><p>contrárias, isto é, procura mostrar sempre os dois lados da moeda, de</p><p>modo que a descrição prevalece sobre o juízo de valor.</p><p>Platão, na República,1 ao conceber a gênese da sociabilidade</p><p>humana, contrapõe duas cidades: uma que se organiza em função do</p><p>necessário e da autossuficiência, que é feliz e pacífica (369b-372d),</p><p>e outra, que, em função do conforto e do luxo desnecessário, torna-</p><p>se doentia, desequilibrada e imperialista (372d-374e). Mais adiante,</p><p>dá-se a gênese de uma terceira cidade, a polis perfeitamente</p><p>boa (420b-434d), que nasce da adequada educação do guardião,</p><p>incumbido do governo e que espelha na polis a justiça que tem em</p><p>seu caráter. Aparentemente, tem-se aí um problema não resolvido que</p><p>pode causar estranhamento. É o fato da polis perfeita nascer, não da</p><p>primeira cidade, mas da segunda, do governo do guerreiro, daquele</p><p>que exerce uma atividade originalmente inerente à cidade doentia,</p><p>* Professor adjunto do Departamento de Filosofia e do Progama de Pós-graduação</p><p>em Filosofia da Universidade Estadual de Maringá.</p><p>1 PLATÃO. A República. Tradução portuguesa de Maria Helena da Costa Pereira.</p><p>Lisboa: Calouste, 1990.</p><p>62 • Vladimir Chaves dos Santos</p><p>a guerra, oriunda de uma necessidade que decorre de uma cultura</p><p>do excesso e</p><p>do supérfluo. Entretanto, talvez o problema possa ser</p><p>resolvido mediante a reconstrução do processo histórico aí implícito.</p><p>Do ponto de vista histórico, a primeira cidade, aquela que</p><p>demonstra que o homem é um ser social (369b-c),2 é um entre tantos</p><p>retratos platônicos do estado original da humanidade. Os homens, aí,</p><p>vivem de modo frugal, saudável e em paz, cultuando seus deuses por</p><p>ocasião de festas regulares (372b-d). Tal descrição evoca o quadro</p><p>da idade de ouro em Hesíodo.3 Essa cidade primitiva que realiza a</p><p>autossuficiência não é, entretanto, a cidade ideal, tal como se tornou</p><p>notória. A ambiguidade manifesta-se, no contexto da polifonia do</p><p>diálogo platônico, por conta de um comentário do interlocutor de</p><p>Sócrates, Glauco. Ele chama a atenção para um aspecto que mais tarde</p><p>no mito do Político pode caracterizar a ambiguidade intrínseca à vida</p><p>da idade de ouro: talvez não haja aí dignidade maior do que a vida</p><p>animal. Glauco refere-se a ela como uma “cidade de porcos”. Seja como</p><p>for, essa cidade não é aquela perfeitamente justa que se procura. A vida</p><p>da cidade primitiva é comunitária e feliz e sua felicidade é baseada na</p><p>autossuficiência da comunidade, ao passo que a felicidade da cidade</p><p>ideal está ancorada na sabedoria.</p><p>Já no mito de Kronos do diálogo Político, a história é inserida</p><p>no âmbito de uma dimensão cosmológica, na qual se alternam ciclos</p><p>regidos por um deus em que prevalecem a inteligência (nous) e a</p><p>ordem, e ciclos em que o universo é abandonado a si mesmo, de tal</p><p>modo que prevalecem o elemento corpóreo e o caos. Três ciclos são</p><p>descritos, os dois regidos por deus, intercalados por um outro ciclo de</p><p>desordem.4 Os regidos por deus são os ciclos de Kronos e o de Zeus.</p><p>2 Platão parte do princípio de que o homem “não é autossuficiente, mas precisa de</p><p>muitas coisas”, o que o torna dependente de outros homens com os quais obtém</p><p>aquilo que precisa. Por meio de um cálculo, dá-se então uma divisão do trabalho,</p><p>pois é melhor e mais produtivo que cada um exerça apenas uma atividade para</p><p>que o conjunto das atividades necessárias à sobrevivência seja bem executado. A</p><p>descrição desse sistema simbiótico aparece num contexto em que Platão se lança</p><p>a refutar a tese de Trasímaco de que fazer o bem alheio envolve sacrifício e é</p><p>incompatível com o bem de si mesmo (343c).</p><p>3 HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Tradução portuguesa de Mary de Camargo</p><p>Neves Lafer. São Paulo: Iluminuras, 2006, v.106-126.</p><p>4 Sigo aqui a interpretação de Brisson (BRISSON, L. Leituras de Platão. Tradução</p><p>As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico • 63</p><p>As diferenças entre ambos evocam as duas etapas da história humana</p><p>no mito de Prometeu de Hesíodo5: o antes e o depois do roubo do</p><p>fogo: uma condição de felicidade e abundância natural sucedida por</p><p>uma situação em que o homem está condenado a obter sua felicidade</p><p>apenas mediante o trabalho.</p><p>O mito do Político relata que no reinado de Kronos, na idade de</p><p>ouro, os viventes são criados e nutridos por daimones como se fossem</p><p>pastoreados por essas divindades, de modo que nenhum dos seres</p><p>vivos tem qualquer espécie de carência; a alimentação e o sustento</p><p>são espontaneamente produzidos pela terra; não existe nenhuma</p><p>preocupação com a subsistência material; essa autossuficiência faz</p><p>com que não haja necessidade do trabalho, tampouco das técnicas; até</p><p>o clima é ideal e dispensa o uso do fogo (271d-272a). Os seres humanos,</p><p>por não terem qualquer tipo de preocupação com alimentação nem</p><p>com segurança, simplesmente não precisam viver em cidades. O</p><p>reinado de Kronos caracteriza-se pela plenitude e pela intervenção</p><p>direta das divindades nos seres vivos. Em contrapartida, no reinado de</p><p>Zeus, o deus ocupa-se do conjunto do universo, mas os daimones não se</p><p>ocupam mais dos seres individualmente, de modo que esse período é</p><p>marcado, por um lado, pela presença da necessidade, e, por outro lado,</p><p>pela maior independência dos seres, deixados mais por conta própria,</p><p>mas não abandonados, e sim orientados e instruídos a serem mais</p><p>autônomos (274a-e).6 Instaura-se uma nova ordem, embora tenha lá</p><p>portuguesa de Sonia Maria Maciel. Porto Alegre: EDIPURCS, 2003, p.218-234) e</p><p>Carone (CARONE, G. R. A Cosmologia de Platão e suas dimensões éticas. Tradução</p><p>portuguesa de Edson Bini. São Paulo: Loyola, 2008, p.199-216), segundo a qual a</p><p>era de Zeus é obviamente um ciclo regido por deus, o qual particularmente concede</p><p>certa autonomia às partes do universo, ao contrário de seu antecessor, Kronos,</p><p>que exercia um controle maior. Tradicionalmente o mito foi interpretado como um</p><p>relato de apenas dois ciclos: um em que o universo é regido por deus, no caso</p><p>Kronos, e outro em que ele é abandonado a si mesmo, no ciclo de Zeus (VIDAL-</p><p>NAQUET, P. Il cacciatore nero: forme di pensiero e forme di articulazione sociale</p><p>nel mondo greco antico. Tradução italiana de Francesco Sircana. Roma: Editori</p><p>Riuniti, 1988, p.265-266; CASTORIADIS, C. Sobre O Político de Platão. Tradução</p><p>portuguesa de Luciana Moreira Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p.152-</p><p>153). A controvérsia na interpretação do mito do Político deriva do seu inegável</p><p>caráter enigmático.</p><p>5 HESÍODO. Teogonia. Tradução portuguesa de J. Torrano. São Paulo: Iluminuras,</p><p>1992, p.507-616; HESÍODO, 2006, p.42-105.</p><p>6 CARONE, 2008, p.208-210.</p><p>64 • Vladimir Chaves dos Santos</p><p>sua dose de ambiguidade. Em Hesíodo a tirania que Kronos exerce</p><p>sobre o mundo dos deuses resulta de algum modo numa contrapartida</p><p>feliz para os homens que foram criados por eles na idade de ouro. Zeus,</p><p>ao contrário, em substituição ao governo absoluto de Kronos, partilha</p><p>o poder e institui um governo em que os outros deuses têm relativa</p><p>autonomia, mas, ao mesmo tempo, no mundo humano isso acaba</p><p>por corresponder à decadência, a castigos, sendo o principal deles o</p><p>trabalho. No mito do Político, as coisas parecem muito mais ambíguas.</p><p>No mundo dos mortais, a principal consequência da autonomia das</p><p>partes do universo é a de que os seres vivos não são mais criados e</p><p>nutridos diretamente pelos deuses, nada mais surge espontaneamente</p><p>do solo. Pela necessidade de alimentação, alguns animais tornam-se</p><p>selvagens. Surgem guerras e revoltas entre os seres vivos. Em meio a</p><p>isso, os homens têm de procurar alimento e se proteger. São, então,</p><p>presenteados pelos deuses com dons que são meios de compensar a</p><p>sua situação, meios que, não obstante, exigem trabalho: as técnicas,</p><p>o uso do fogo, a agricultura. Resta, enfim, a sugestão de que nessas</p><p>condições os homens precisam viver e aprender a viver em cidades.7</p><p>A ambiguidade da idade de ouro no mito do Político manifesta-</p><p>se num comentário evasivo, que parece recuar diante do estatuto da</p><p>felicidade tradicionalmente associada a ela (272b-d). De que adiantam</p><p>condições de sobrevivência ideais, se não se pratica a filosofia, a busca</p><p>do conhecimento, e não se realiza a natureza racional do homem? Se</p><p>esse é o caso – Platão não o afirma –, se os homens daquele paraíso</p><p>idílico passavam seu tempo apenas se empanturrando como animais,</p><p>sem sair do nível das necessidades materiais, exercitando tão somente</p><p>a parte irracional da alma, o desejo (a epithymia), então, certamente</p><p>não eram mais felizes do que podem ser os homens da era de Zeus,8</p><p>na qual se nota o progresso da civilização e das condições de vida, ao</p><p>mesmo tempo em que a razão e a filosofia fazem suas aparições e dão</p><p>esperanças de que se possa alcançar um elevado grau de felicidade</p><p>em alguns casos. A vida na idade de ouro parece estar no registro da</p><p>estabilidade absoluta, qualquer que ela seja, enquanto na era de Zeus,</p><p>7 VIDAL-NAQUET, 1988, p.266-267; BRISSON, 2003, p.230, 235; CASTORIADIS,</p><p>2004, p.155; CARONE, 2008, p.210-212.</p><p>8 Essa é a opinião de Brisson (2003, p.227-228).</p><p>As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico • 65</p><p>a nossa, a perspectiva parece ser a do progresso, o que não elimina a</p><p>ambiguidade intrínseca desses nossos tempos. Como a raça de ferro de</p><p>Hesíodo, que convive com justiça</p><p>e excesso, o reinado de Zeus é definido</p><p>pela coexistência dos contrários: macho/fêmea, nascimento/morte,</p><p>juventude/velhice, abundância/penúria, política/guerra, felicidade/</p><p>infelicidade; aí todo bem encontra em contrapartida um mal.9 A era de</p><p>Kronos e a de Zeus diferenciam-se em relação às condições materiais,</p><p>mas não em relação às exigências para a realização plena do homem. A</p><p>felicidade nunca é um dado. A mera existência de condições externas</p><p>favoráveis não basta para os filhos de Kronos se qualificarem como</p><p>mais felizes do que os de nossos tempos.10 É o exercício da filosofia e a</p><p>busca da sabedoria por meio do diálogo que os torna mais felizes, mas</p><p>isso é uma possibilidade e não depende da providência divina, está</p><p>na esfera irredutível da escolha humana da qual não se pode esquivar</p><p>mesmo na mais idealizada era da humanidade.</p><p>O valor moral da idade de ouro aparece, por fim, absolutamente</p><p>fundido à figura do selvagem homem primitivo, tal como esse é</p><p>retratado no Livro III das Leis. Desde Platão, pelo menos, a figura</p><p>do ciclope chamado Polifemo, que aparece na Odisséia de Homero11</p><p>devorando os companheiros de Odisseu, transpôs o território do</p><p>mito e passou a frequentar o da história. Tornou-se, inclusive pela</p><p>referência à antropofagia, uma imagem da vida primitiva, que desde</p><p>o início contrastava com o mito de Hesíodo de uma primeira idade</p><p>áurea de felicidade e bonança, quando o homem era justo e não</p><p>tinha necessidade do trabalho, situação a partir da qual se deriva</p><p>uma concepção da decadência da condição humana. No episódio dos</p><p>ciclopes de Homero, pode-se encontrar um retrato bem definido da</p><p>sociedade primitiva no que ela tem de rude, bárbara e selvagem. Essa</p><p>concepção dos princípios grosseiros da história da humanidade é um</p><p>ingrediente importante da noção de progresso, que será muito caro</p><p>depois aos sofistas, como bem mostrou Guthrie.12</p><p>9 BRISSON, 2003, p.231-232.</p><p>10 CARONE, 2008, p.213.</p><p>11 HOMERO. Odisséia. Tradução portuguesa de Donaldo Schüler. Porto Alegre:</p><p>L&PM Pocket, 2007, IX.</p><p>12 GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. Tradução portuguesa de João Rezende Costa. São</p><p>Paulo: Paulus, 1995, p.62-82.</p><p>66 • Vladimir Chaves dos Santos</p><p>No contexto da Odisséia, os ciclopes representam a vida rude de</p><p>povos não civilizados. Platão,13 seguido por Aristóteles,14 faz um uso</p><p>histórico da imagem homérica: vê aí o retrato de uma vida primitiva,</p><p>quando os homens se organizam em sociedades patriarcais, nas quais</p><p>não há leis supra familiares. Os ciclopes de Homero vivem do que a</p><p>natureza lhes fornece – e ela é generosa com esses gigantescos seres</p><p>de força descomunal. Habitam grutas nas montanhas, isolados com</p><p>suas famílias, não constituem intercâmbios nem leis em comum, não</p><p>há tampouco um espaço onde possam discutir problemas que aflijam</p><p>a todos. Exercem algumas atividades muito primitivas, que requerem</p><p>nenhuma ou quase nenhuma sofisticação: coletam os alimentos que</p><p>brotam em abundância, trabalham com o pastoreio, preparam queijos</p><p>e vinhos, mas não plantam nada com o arado nem com as mãos – a</p><p>agricultura denotando um traço de civilização que eles não têm. São</p><p>violentos e rudes, e não cultivam as duas virtudes fundamentais do</p><p>mundo civilizado da Odisséia: a piedade e a hospitalidade. Isto é, não</p><p>se organizam em torno de uma religião, nem estão abertos a qualquer</p><p>tipo de intercâmbio cultural, comercial ou de cooperação.</p><p>Platão não acentua os aspectos negativos da imagem homérica;</p><p>pelo contrário, apesar da ignorância e da inteligência tíbia, a dignidade</p><p>do selvagem reside justamente na inocência diante da mentira. Mas</p><p>para Homero isso não é uma virtude. Odisseu, o homem civilizado, é</p><p>superior ao ciclope precisamente porque o enganou. O que interessa</p><p>é que o mais fraco vence o mais forte com a força do pensamento.</p><p>Odisseu é o homem dos mil expedientes, e o seu truque nesse episódio</p><p>é um jogo de palavras muito simples, que ele considera suficiente para</p><p>confundir a mente obtusa de Polifemo. O herói da esperteza aposta</p><p>na incapacidade daquele ser grosseiro de separar a palavra da coisa,</p><p>condição para se detectar uma mentira. Odisseu diz que seu nome é</p><p>Ninguém, e Polifemo não percebe a ambiguidade, ele simplesmente</p><p>não é capaz de abstração, não separa o termo da sua referência a</p><p>Odisseu. Todo episódio é marcado pela figura da ironia, de tal modo</p><p>que, no momento em que Odisseu se compraz com sua ironia maior,</p><p>13 PLATO. Laws. Tradução inglesa de R.G. Bury. Cambridge: Harvard University</p><p>Press, 1988, 680a-c.</p><p>14 ARISTÓTELES. Política. Lisboa: Vega, 1998, p.1.252 b21. Edição bilíngue.</p><p>As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico • 67</p><p>o poema homérico exacerba a dimensão linguística da diferença de</p><p>mentalidade entre o homem civilizado e o gigante selvagem por meio</p><p>do trocadilho mé tis, que significa “ninguém”, e métis, que significa</p><p>“astúcia” – ambos referidos a Odisseu.</p><p>Platão traz a idade de ouro para o reinado de Zeus, ao mesmo</p><p>tempo em que introduz aí um Polifemo investido de um nobre</p><p>caráter, forjando, assim, uma unidade sintética de pura ambiguidade.</p><p>Na hipótese de devastação causada por um dilúvio, supõe-se que</p><p>restariam poucos homens das montanhas, provavelmente pastores,</p><p>que teriam que se contentar com poucos rebanhos remanescentes</p><p>para sua subsistência (677b-e). O mundo seria um imenso e aterrador</p><p>deserto. Dessa situação de escassez e precariedade tudo progrediu</p><p>para o que existe hoje. Certamente houve progresso técnico e político,</p><p>mas não necessariamente moral. Ao baixarem das montanhas, esses</p><p>homens encontram mais pastagens, e seus rebanhos aumentam; com</p><p>o andar do tempo, a alimentação já não é mais fonte de preocupação;</p><p>a caça e os rebanhos fornecem alimento abundante, de modo que não</p><p>precisam lutar por ele. Isso, somado a tudo o que aquelas técnicas</p><p>primitivas podem produzir, resulta numa condição em que não existe</p><p>pobreza, tampouco riqueza. Não havendo nem pobreza nem riqueza,</p><p>não circulam entre os primeiros homens, dissensões, nem guerras,</p><p>nem o violento excesso (hybris), nem a injustiça, nem a inveja (zelos),</p><p>nem o ciúme (phthonos). Os primeiros homens são muito amistosos,</p><p>gostam de se encontrar, devido ao seu isolamento; são também</p><p>muito simples e ingênuos. Sua ignorância também tem um estatuto</p><p>ambíguo: não conhecem a mentira, nem a vileza e a maledicência;</p><p>entretanto, ignoram as artes em geral, a legislação e a escrita (679d-</p><p>e). A virtude que os caracteriza, a simplicidade (euétheia), tem um</p><p>uso absolutamente ambíguo, pode significar inocência ou estupidez.15</p><p>Enfim, são incapazes dos maiores vícios, mas também das maiores</p><p>virtudes da civilização. Não precisam da cidade nem da política.</p><p>Para caracterizar a organização patriarcal sob a qual vivem, que</p><p>dispensa o uso das leis, Platão recorre justamente à imagem homérica</p><p>15 OLIVEIRA, R. R. Demiurgia Política: as relações entre a razão e a cidade nas Leis</p><p>de Platão. São Paulo: Loyola, 2011, p.208-212.</p><p>68 • Vladimir Chaves dos Santos</p><p>do Polifemo (680a-c). Nesse mundo primitivo de vida ciclópica, a</p><p>contrapartida da inexistência de sabedoria, uma das quatro virtudes</p><p>cardeais da polis perfeita da República, é a presença, até mesmo mais</p><p>eficaz do que nos homens de hoje, das outras três virtudes cardeais: a</p><p>temperança (sóphrósyné), a coragem (andreia) e a justiça (dikaiosyné)</p><p>(679e).16 Posteriormente, com o aumento da população, juntam-se em</p><p>grupos maiores e aplicam-se à agricultura nos sopés das montanhas;</p><p>constroem abrigos e cercas para se protegerem das feras.</p><p>Com esse retrato do estado original do homem, Platão oferece</p><p>conscientemente sua contribuição ao debate sobre a crise da vida</p><p>cívica em seus tempos. Mas ele não idealiza a idade ouro como ponto</p><p>de fuga da cidade. Nisso, diferencia-se dos cínicos: ele não parece</p><p>defender um retorno à vida primitiva em busca da autossuficiência</p><p>perdida. No Livro VIII da República, Platão realça o quanto a cidade</p><p>pode se tornar a selva mais selvagem, mas isso não resulta na adesão</p><p>a um primitivismo</p><p>ingênuo, pois a verdadeira felicidade só é possível</p><p>na cidade. A autossuficiência e tranquilidade da vida na idade de ouro</p><p>não bastam: é preciso ter sabedoria, da qual a sabedoria política é uma</p><p>das partes mais importantes.</p><p>Em Vico encontra-se um novo capítulo da história deste topos</p><p>do gigante Polifemo. A vida primitiva, para Vico,17 espécie de castigo</p><p>divino, tem início após o Dilúvio Universal, com o estado bestial,18 cujas</p><p>características parecem ser inspiradas na descrição lucreciana da vida</p><p>dos primeiros homens, errante e semelhante à dos animais: “E no</p><p>16 A ambiguidade é tanto maior porquanto à imagem do “bom selvagem” que se</p><p>desenha nessas páginas de Platão vem associada a figura do violento Polifemo,</p><p>comedor de gente. A contrapartida da inocência, ou melhor, da ignorância dos</p><p>primeiros homens seria a violência e a selvageria.</p><p>17 VICO, G. Princìpi di scienza nuova. Organização de Fausto Nicolini. Milano:</p><p>Mondadori, 1992, §369 (de agora em diante Sn44).</p><p>18 Landucci refere-se a uma inextrincável ambiguidade do estatuto que assume</p><p>o estado bestial em relação à natureza humana na filosofia da história de Vico. É</p><p>para ser entendido como situação de queda da condição humana, mas facilmente</p><p>pode ser tomado como um estado originário (LANDUCCI, S. I filosofi e i selvaggi:</p><p>1580-1780. Bari: Editori Laterza, 1972, p.292). Na mesma linha de pensamento,</p><p>encontra-se em Rossi a constatação da irredutível ambigüidade de Vico quanto à</p><p>ortodoxia do seu pensamento, que é inseparável da sua heterodoxia (ROSSI, P. Os</p><p>sinais do tempo: história da Terra e história das nações de Hooke a Vico. Tradução</p><p>portuguesa de Julia Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.309).</p><p>As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico • 69</p><p>curso de muitas voltas do sol pelo céu, levavam (os primeiros homens)</p><p>uma vida errante à maneira dos animais selvagens”.19 Esses primeiros</p><p>homens bestiais, segundo Lucrécio, não mantinham vínculos conjugais</p><p>e sociais, tampouco relações de assistência mútua:</p><p>Nem puderam observar o bem comum, nem conheciam quaisquer</p><p>costumes entre si, tampouco tinham leis. A presa que a sorte</p><p>oferecesse, cada um tomava naturalmente a sua, tendo aprendido a</p><p>viver e a se valer por si só. E Venus nas florestas juntava os corpos dos</p><p>amantes; ou qualquer atração mútua os reunia, ou a violenta força e a</p><p>custosa libido do homem, ou a recompensa: bolotas e medronheiros</p><p>ou peras colhidas.20</p><p>Essas condições são as de uma vida reduzida à animalidade, sem</p><p>quaisquer traços de cultura humana.</p><p>O sentimento que define a psicologia desses homens bestiais é o</p><p>medo, especialmente o de serem assaltados pelas feras. E, no entanto,</p><p>eles saem desse estado, e não o fariam se não estivessem ali latentes</p><p>sentimentos e disposições propriamente humanos. Alguma potência</p><p>da mente humana lhes permitiria conceber um ser superior por trás</p><p>do surpreendente e poderoso raio e do trovão, e também alguma</p><p>disposição humana (ou seria um deus ex machina?) transformaria o</p><p>medo do mundo no pudor que eles começam a sentir em relação a</p><p>esse primeiro deus do raio e do trovão. Em parte, é a imponência</p><p>das forças naturais que lhes chama a atenção e produz neles um</p><p>terror jamais sentido, mas, no fundo, é um trauma psicológico que dá</p><p>origem ao sentimento e à imaginação de uma certa divindade. A saída</p><p>do estado bestial só pode ser explicada por esse trauma, uma vez que</p><p>tais homens não eram capazes de calcular ou deliberar sobre isso. E</p><p>são esse sentimento e essa imaginação primordiais que mobilizam</p><p>esses homens primitivos a criar a cultura e o mundo humano, ou</p><p>melhor, seus primeiros modos de ser. A mudança que dá lugar à vida</p><p>familiar é explicada por um conflito psicológico, enquanto as outras</p><p>19 LUCRÈCE. De la nature. Paris: Flammarion, 1997, V, v.931.</p><p>20 LUCRÈCE, 1997, V, v.958-965.</p><p>70 • Vladimir Chaves dos Santos</p><p>passagens (do estado das famílias para as sociedades civis heroicas,</p><p>e dessas para as formas mais acabadas de civilização) são explicadas</p><p>por conflitos sociais. É dessa primeira percepção da divindade que</p><p>surge a necessidade de exprimi-la e de fixar-se junto a ela, originando</p><p>a linguagem e a vida sedentária. Passam a coexistir, junto aos</p><p>sentimentos mais animalescos, outros propriamente humanos: do</p><p>impulso mais animal do medo nasce o sentimento humano do pudor,</p><p>nasce o que Vico entende por conatus,21 o controle da libido, base</p><p>psicológica das relações conjugais e das relações sociais juntamente</p><p>com o medo. Segundo Vico (Sn44, § 340), esses primeiros homens</p><p>deviam pensar como os animais, sob fortes impulsos de violentíssimas</p><p>paixões. Então, o pensamento pavoroso de uma certa divindade</p><p>“deu norma e medida às paixões animais desses homens perdidos e</p><p>as tornou paixões humanas”. De tal pensamento deve ter nascido o</p><p>conatus, que é próprio da vontade humana, e que refreia os impulsos</p><p>do instinto animal. Vico sugere uma reação em cadeia: do pudor,</p><p>nasce o controle da libido; daí os homens arrastam as mulheres para</p><p>perto da morada dos deuses, que são os montes, encerrando a sua</p><p>vida errante e encobrindo o ato sexual dentro das grutas. Esse novo</p><p>estágio é, por isso, caracterizado pelo aparecimento das primeiras</p><p>famílias. E nesse mundo humano incipiente, convivem o medo e o</p><p>pudor, a violência e a reverência.</p><p>Todos esses homens primitivos são agigantados, tal como</p><p>sugerem, além de Lucrécio, o Polifemo de Homero e os germanos de</p><p>Tácito. Cito Lucrécio:</p><p>21 Sn44, §504. “Começou, como deve, a virtude moral pelo conato, com o que os</p><p>gigantes foram acorrentados por debaixo dos montes pela pavorosa religião dos</p><p>raios, e puseram freio ao vício bestial de andar errando como feras pela grande</p><p>selva da terra, e criaram um costume, totalmente contrário, de permanecer</p><p>naquelas terras escondidos e estabelecidos; donde, depois, se converteram</p><p>nos autores das nações e senhores das primeiras repúblicas [...]. Com o conato</p><p>começou a despontar nesses a virtude do ânimo, contendo-se de exercitar a sua</p><p>libido bestial em frente ao céu, de que tinham um enorme pavor; e cada um deles</p><p>se pôs a arrastar para si uma mulher para o interior das suas grutas e aí mantê-la,</p><p>em uma perpétua companhia até o fim de sua vida; e, assim, praticaram com elas</p><p>o ato carnal humano de modo encoberto, ocultamente, quer dizer, com pudicícia; e</p><p>começaram a sentir pudor [...], o qual depois daquele da religião, é o outro vínculo</p><p>que conserva unidas as nações, tal como a audácia e a impiedade são aqueles que</p><p>as arruínam”.</p><p>As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico • 71</p><p>O gênero humano fora bem mais duro nos campos, como convinha ao</p><p>que a dura terra tivesse criado, e fora firmado por dentro com maiores</p><p>e mais sólidos ossos, equipado por entre as vísceras com fortes nervos,</p><p>de modo que não fosse vencido facilmente nem pelo calor, nem pelo</p><p>frio, nem pela singularidade do alimento nem por flagelo do corpo.22</p><p>Vico reformula essa teoria e considera providencial o agiganta-</p><p>mento dos homens no estado bestial. Com a sua vigorosa compleição,</p><p>puderam eles suportar as adversidades dessa dura vida, penetrando</p><p>na selva, fugindo das feras e perseguindo as mulheres esquivas, e as-</p><p>sim dispersar o gênero humano pela terra.23</p><p>O estado das famílias é, portanto, constituído por rudes,</p><p>vigorosos e agigantados homens, dos quais Vico distingue os gigantes</p><p>pios e os ímpios. Os primeiros, reverentes àquela primitiva divindade, a</p><p>qual, suscitando neles o pudor, os leva a se reunirem em famílias e a se</p><p>fixarem em cavernas no alto das montanhas, onde poderiam estar mais</p><p>próximos dos seus deuses. Os segundos, ainda errando pelas florestas</p><p>como animais, sem nenhuma motivação a não ser a sobrevivência,</p><p>procuravam os primeiros para encontrar abrigo a salvo das feras. Em</p><p>troca de segurança, submetiam-se ao império dos primeiros. O estado</p><p>das famílias, para Vico, é marcado, então, por essa relação fundamental</p><p>entre os pais de família, os gigantes pios, detentores do poder</p><p>familiar, e os</p><p>o mister de documentação</p><p>e, em certo sentido, perpetuar o legado do Congresso viquiano de</p><p>Uberlândia, decerto memorável no panorama dos estudos filosóficos</p><p>brasileiros. Ela é, em parte, um Livro de Atas do Congresso e dá</p><p>ao leitor acesso às conferências e palestras que o animaram: é</p><p>precisamente esse o caso dos capítulos de autoria de Alberto Mario</p><p>Damiani, Claudia Megale, Fabrizio Lomonaco, Humberto Guido, Marco</p><p>Vanzulli, Sertório de Amorim e Silva Neto e Vladimir Chaves dos</p><p>Santos. Os demais capítulos seriam acrescidos depois com o intuito de</p><p>expandir o tecido das colaborações teóricas e também, de certo modo,</p><p>estreitar as interlocuções dos estudos brasileiros com a cultura dos</p><p>estudos viquianos na Europa. Uniram-se ao projeto editorial Enrico</p><p>Nuzzo, grande intérprete da obra de Vico e notável incentivador dos</p><p>estudos viquianos brasileiros, Manuela Sanna e Rosário Diana, atuais</p><p>curadores do inestimável legado do Centro di Studi Vichiani de Nápoles,</p><p>e Pierre Girard, um expoente dos estudos viquianos na França. Juntou-</p><p>se a eles também Andrey Ivanov, experto brasileiro na filosofia tomista,</p><p>interessado pelo estudo dos antecedentes medievais do verum-factum</p><p>viquiano. Com este livro, portanto, damos prosseguimento ao pioneiro</p><p>trabalho de divulgação do filósofo napolitano em língua portuguesa</p><p>iniciado em 2012 com a publicação da coletânea Embates da Razão:</p><p>mito e filosofia na obra de Giambattista Vico, também pela EDUFU.</p><p>O capítulo de Alberto Damiani inaugura a primeira parte do</p><p>livro, Natureza e História, não por um acaso. Uma particularidade dos</p><p>seus estudos tem sido o comentário da obra de Vico a partir dos temas</p><p>e problemas da filosofia política, orientação inclusive do estudo aqui</p><p>publicado. Damiani apresenta a tese de Vico sobre o direito natural</p><p>como meio-termo entre a tese da sociabilidade natural do homem,</p><p>típica dos “antigos”, e a tese dos “modernos” acerca da artificialidade</p><p>das instituições civis, reeditando aquele ideal de complementaridade</p><p>que nortearia (desde a Oração de 1709) a atitude do napolitano perante</p><p>a querelle clássica. Em vez de opor ao ceticismo político-jurídico a</p><p>prioridade de um desejo gregário conforme à razão, ao modo de Grócio,</p><p>a opção de Vico foi conceder aos céticos suas premissas para rechaçar</p><p>as conclusões. Quer dizer, admite a utilidade como o motor do agir</p><p>humano e por causa disso concebe a barbárie, o estado selvagem, como</p><p>Prefácio • 9</p><p>enredo do mundo das nações. Também, por isso precisou encarar as</p><p>instituições civis como criações, factum dos povos – teria sido preciso</p><p>criá-las voluntariamente e instituir os direitos por convenção, pois não</p><p>se pode estimá-los espontâneos e naturais. Todavia, o ceticismo por</p><p>si só não se sustenta, já que não se poderia imaginar a preservação</p><p>daquelas instituições, criadas historicamente, sem que existisse uma</p><p>natureza sociável que se fizesse valer sobre o horizonte dos interesses</p><p>privados. Nesse ponto se harmonizam natureza e história. Os homens,</p><p>ao darem forma às instituições, se apropriam ao mesmo tempo de algo</p><p>que antes não estava dado: um mundo interior, uma mente capaz de</p><p>pensar e uma vontade forte o suficiente para se contrapor às paixões</p><p>e dirigir os movimentos corporais. Damiani chama a atenção para</p><p>o fato de que a natureza sociável não é para Vico jamais um dado</p><p>independente, que precede as instituições humanas, mas lhes é ao</p><p>menos simultânea. Ele busca demonstrar que o homem de Vico só é</p><p>naturalmente sociável enquanto sobrevive e se determina em função</p><p>das instituições sociais, artificiais, criadas historicamente – sem elas</p><p>nada diferiria o homem do bruto.</p><p>É também este o pano de fundo do capítulo de Marco Vanzulli.</p><p>A hipótese de uma sociabilidade que não se expressa “de fora” e nem</p><p>antes das instituições civis, mas só a partir da história das nações,</p><p>ofereceu-lhe os argumentos para contrapor o autor da Scienza nuova</p><p>e o Rousseau do Discurso sobre a desigualdade. O aspecto de que ele</p><p>se vale para o confronto dos dois filósofos modernos é o tema dos</p><p>“sentimentos sociais”. Ainda que se deva admitir, nos dois casos, críticas</p><p>muito semelhantes a Hobbes, como se radicalizassem o seu “estado de</p><p>natureza” e admitissem o homem isolado e imoral de Hobbes, também,</p><p>pré-racional, consequência que o filósofo inglês não poderia extrair,</p><p>por outro lado, Vanzulli distinguirá Vico e Rousseau ao acentuar a</p><p>suposição do Discurso de sentimentos sociais naturais, anteriores às</p><p>primeiras aglomerações humanas. O “estado de natureza” de Rousseau,</p><p>assim como a viquiana “barbárie dos sentidos”, é uma situação de</p><p>anterioridade em relação à razão, o que Hobbes não teria visto, só que</p><p>pré-racionalidade para o genebrino é sobretudo o instinto proto-social</p><p>da piedade: sentimento humano-animal-natural do selvagem isolado e</p><p>base de todos os demais sentimentos altruísticos, ao qual ele contrasta</p><p>10 • Humberto Guido | Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>com o desnaturado homem em sociedade (calculista, cínico e egoísta).</p><p>Vanzulli encontra assim em Rousseau um valioso contraponto para</p><p>o pensamento de Vico, pois, como ele nota, não é o dado natural do</p><p>homem isolado, que vaga pela floresta, a referência positiva em Vico,</p><p>mas é a primeira natureza humana histórica que vale como modelo</p><p>de boa natureza humana e parâmetro de humanidade dentro do quel</p><p>todas as sociedades devem permanecer para não se corromperem. Ao</p><p>contrário de Rousseau, Vico não concederá docilidades à animalidade</p><p>originária do homem, é um estado pré-civil e, portanto, de obtusidade.</p><p>No bestione – alerta Vanzulli – tudo está ainda em potência e todos</p><p>os sentimentos, inclusive a piedade, só surgirão com a sociedade. O</p><p>seu capítulo coloca novamente o problema do nexo natureza-história</p><p>na obra viquiana, mas por um viés comparatista particular, muito</p><p>pouco testado pela tradição dos estudos de Vico: do confronto com o</p><p>pensamento de Rousseau.</p><p>Vladimir Chaves, em seu capítulo, incitado por um grande</p><p>interesse pela cultura e a filosofia helênicas manifestado também</p><p>em outras publicações suas, engendra uma minuciosa reconstrução</p><p>(filosófico-filológica) do “Polifemo de Homero”, figura mitológica</p><p>a partir da qual Vico caracteriza a humanidade em sua primeira</p><p>barbárie. Chaves nota, com originalidade, que o uso feito por Vico do</p><p>personagem homérico, na verdade, reeditaria, com acréscimos, um</p><p>uso anterior e bem mais antigo, de Platão, o responsável de fato pela</p><p>migração da figura do Polifemo do território do mito para aquele da</p><p>história e por transformá-lo na própria imagem da vida primitiva. O</p><p>autor comprova que Platão e depois Vico, por meio dessa historicização</p><p>do Polifemo (ou secularização do mito), promoveriam uma espécie de</p><p>“desencantamento” dos tempos primitivos, iniciais, da humanidade.</p><p>Vico, contudo, aparentemente radicalizaria o expediente conseguindo</p><p>ser mais fiel que Platão à imagem homérica dos ciclopes. O Polifemo</p><p>platônico contrastava com o mito de Hesíodo de uma primeira idade</p><p>áurea de felicidade e bonança, porém, investido de um nobre caráter, o</p><p>primitivo Polifemo mantinha intacto ainda uma visão positiva da idade</p><p>de ouro. Gravitando a mesma problemática enfrentada por Damiani</p><p>e por Vanzulli acerca do status do estado selvagem em Vico, Chaves</p><p>mostra que a idade de ouro viquiana nada teria a ver com o idílico</p><p>Prefácio • 11</p><p>paraíso dos poetas hedonistas: o Polifemo é rude, simplório, e também,</p><p>principalmente, violento e de crueldade extrema. O seu tempo havia</p><p>sido o do trabalho penoso nos campos, do despotismo patriarcal</p><p>e das terríveis religiões, de modo que o “ouro”, nesse contexto, foi</p><p>simplesmente o trigo, base econômica e, portanto, o ouro daquelas</p><p>sociedades ciclópicas.</p><p>Enrico Nuzzo, dando-nos uma mostra de sua vasta leitura da</p><p>obra viquiana e de sua enorme originalidade interpretativa, oferece</p><p>ao leitor um extenso e bastante profundo estudo sobre as causas dos</p><p>“caracteres das nações” na Scienza nuova, causas essas que justificam</p><p>os aspectos contingentes</p><p>fâmulos, os gigantes ímpios, que, apesar de perceberem</p><p>as conveniências da sua entrada nas famílias, viam-se submetidos</p><p>ao poder de vida e de morte que os pais impunham sobre eles e os</p><p>próprios filhos. Os fâmulos não eram capturados, mas acabavam como</p><p>propriedade, o que os tornava, ao mesmo tempo, clientes e escravos.</p><p>Trata-se, portanto, de uma estrutura social complexa e</p><p>dinâmica, cuja tensão fundamental pode explicar a saída desse estado,</p><p>22 LUCRÈCE, 1997, V, p.925.</p><p>23 Sn44, §524. Para Vico, foi a providência que fez com que “os homens perdidos</p><p>se tornassem gigantes, a fim de que, na sua divagação ferina, pudessem suportar</p><p>as suas robustas compleições a inclemência do céu e das estações, e com as forças</p><p>desmesuradas penetrar na grande selva da terra (que devido ao dilúvio devia ser</p><p>densíssima), pela qual (a fim de que a seu tempo se encontrasse completamente</p><p>povoada), fugindo das feras e perseguindo as mulheres esquivas e, assim, perdidos,</p><p>buscando alimento e água, se dispersassem”.</p><p>72 • Vladimir Chaves dos Santos</p><p>pela sublevação dos fâmulos, que leva à aliança dos pais entre si e à</p><p>formação das primeiras repúblicas aristocráticas. Para referir-se ao</p><p>despotismo dos pais e às relações violentas que assumem dentro</p><p>da estrutura patriarcal, Vico alude aos “impérios ciclópicos”, à “vida</p><p>ciclópica”, à “disciplina ciclópica”.24 “Aos homens do gentilismo”, diz</p><p>Vico, “foi necessário, desde a sua ferina liberdade nativa, um longo</p><p>tempo de ciclópica disciplina familiar para que se encontrassem</p><p>domesticados nos Estados que mais tarde se haveriam de tornar</p><p>civis, obedecendo naturalmente às leis”.25 Recorre, assim, àquela</p><p>imagem homérica dos ciclopes pela qual Platão reconhece o retrato</p><p>da primeira forma de organização social da história: o patriarcado.</p><p>Mas Vico não a pinta com as cores da idade de ouro, como faz Platão.</p><p>Pelo contrário, realiza uma operação de desencantamento da idade de</p><p>ouro. A idade de ouro não é o idílico paraíso que os poetas hedonistas</p><p>imaginaram, nem o reino da justiça como os filósofos a conceberam. As</p><p>virtudes dessa primeira idade deram-se no nível dos sentidos, mescla</p><p>de religião e extrema crueldade26. Não há paz, nem tranquilidade, nem</p><p>liberdade, tampouco a generosa natureza livra os homens do trabalho.</p><p>É, antes, um tempo de trabalho penoso nos campos no contexto do</p><p>despotismo patriarcal e das terríveis religiões. O ouro, segundo Vico,</p><p>não tem qualquer conotação moral ou juízo de valor, nada mais é do</p><p>que o trigo, que era a base econômica e, portanto, o ouro daquelas</p><p>sociedades primitivas. Seria, então, a idade do trigo, sendo esse o ouro</p><p>antigo; primeiro dado pela natureza em pequena escala, depois, por</p><p>uma operação engenhosa de inventar semelhanças, reproduzido pela</p><p>indústria humana. A idade do ouro de Vico fundava, assim, por meio da</p><p>agricultura, o próprio mundo do trabalho.27</p><p>A ambiguidade fundamental do estado das famílias é a</p><p>coexistência de violência e poesia, crueldade e fantasia. O patriarcado</p><p>subsiste na base do poder violento dos pais sobre as mulheres, os filhos</p><p>e fâmulos, que estabelece a posse e o direito de vida e morte. A forma</p><p>de justiça que havia entre os pais era a soberania familiar, eles não se</p><p>24 Sn44, §516, 517, 522, 523.</p><p>25 Sn44, §523.</p><p>26 Sn44, §516.</p><p>27 Sn44, §544, 546, 549.</p><p>As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico • 73</p><p>intrometiam nas coisas uns dos outros, como é o caso dos ciclopes,</p><p>divididos pelas cavernas da Sicília, “cuja justiça em aparência era de fato</p><p>selvageria”, acrescenta Vico.28 As mulheres entravam nas famílias como</p><p>filhas de seus maridos e irmãs de seus filhos.29 Viviam os filhos e os</p><p>fâmulos na condição de escravos, e os pais tinham um poder soberano</p><p>sobre a vida e a morte deles, o que os tornava seus donos. Em troca da</p><p>proteção paterna, entregavam-lhes incondicionalmente as suas vidas.30</p><p>Segundo Landucci, modelo do despotismo patriarcal são, para Vico, as</p><p>leis patriarcais das XII Tábuas dos romanos, que estabeleciam o direito</p><p>de vender os filhos e tratá-los como escravos, assim como os fâmulos.</p><p>Vico generaliza esse modelo para todos os povos.31</p><p>O meio de dominação dos pais não era obviamente a sua</p><p>força física, porque eram todos gigantes. São terríveis religiões que</p><p>produzem esse estado de coisas. Os pais devem ter sido sacerdotes que,</p><p>sendo mais dignos, deviam sacrificar para procurar ou compreender</p><p>os auspícios.32 As comunidades deviam ser altamente supersticiosas</p><p>e impressionadas pelas religiões. Os pais não ensinavam nada</p><p>mais do que a religião, sendo admirados pelos filhos como os seus</p><p>sábios, reverenciados como seus sacerdotes e temidos como reis.33</p><p>Eram superiores a todos nas suas famílias e somente submetidos</p><p>ao deus, “providos com poderes armados de espantosas religiões”,</p><p>diz Vico, “e consagrados com crudelíssimas penas, como devem ter</p><p>sido aquelas dos polifemos”.34 Refletindo sobre a universalidade dos</p><p>sacrifícios humanos e da antropofagia na cultura selvagem, Vico</p><p>menciona os fenícios, citas, gregos, romanos, bretões, gauleses, godos,</p><p>inclusive os índios americanos. Entre os fenícios, quando alguma</p><p>grande calamidade os ameaçava, como guerra, fome ou peste, os reis</p><p>consagravam os próprios filhos para aplacar a ira celeste; exemplo</p><p>disso, entre os gregos, foi Ifigênia. Os índios americanos comiam as</p><p>28 Sn44, §516.</p><p>29 Sn44, §506-510.</p><p>30 Sn44, §556-557.</p><p>31 LANDUCCI, 1972, p.281.</p><p>32 Sn44, §556-557.</p><p>33 Sn44, §523.</p><p>34 Sn44, §522.</p><p>74 • Vladimir Chaves dos Santos</p><p>carnes de homens consagrados e mortos por eles.35 A ambiguidade</p><p>dessa cultura selvagem e primitiva, Vico a expressa até mesmo no nível</p><p>linguístico por meio de oxímoros. Tal cultura, que deve ter sido baseada</p><p>nas necessidades e utilidades daquele tipo de vida social, é segundo</p><p>Vico, “impiamente piedosa” e celebra “inumanísssima humanidade”.</p><p>Ao retratar a violência e a crueldade das religiões e dos homens</p><p>primitivos, Vico aproveita para ironizar a concepção de idade de ouro.</p><p>Essa foi tão calma, benigna, discreta, tolerante e justa, quanto podem</p><p>ter sido homens orgulhosos, arrogantes, despóticos, rudes, cruéis</p><p>e antropófagos!36 “Quanto é vã”, conclui, “a presunção dos doutos</p><p>acerca da inocência do século de ouro”; de fato, foi “um fanatismo</p><p>supersticioso, que mantinha sob certo dever os primeiros homens</p><p>do gentilismo, selvagens, orgulhosos e ferocíssimos, com um forte</p><p>pavor de uma divindade por eles imaginada”.37 A inocência da idade</p><p>de ouro foi, na verdade, a suprema selvageria dos “polifemos”.38 Pesa,</p><p>ainda, contra a idade de ouro o que Landucci adverte: a dificuldade</p><p>de se explicar a necessidade de sair de um tal estado para viver em</p><p>sociedade; ao passo que a teoria lucreciana tem a vantagem de mostrar</p><p>o drama da animalização dos homens e a urgência de sair daí.39</p><p>O quadro da vida primitiva completa-se com o aspecto do seden-</p><p>tarismo e do domínio dos campos. Seguindo seus deuses do raio e do</p><p>trovão esses primitivos puseram-se circunscritos aos montes, onde en-</p><p>contravam fontes de água perene.40 A fixação gerava um deficit de caça,</p><p>mas eles temiam sair dos seus confins, embora crescessem as suas famí-</p><p>lias e não lhes bastassem os frutos espontâneos da natureza. Por isso,</p><p>“tendo-lhes insinuado”, diz Vico, “essa mesma religião (do raio e do tro-</p><p>vão) que pusessem fogo nas florestas para obterem a perspectiva do céu,</p><p>donde lhes proviessem os auspícios”, entregaram-se com prolongada e</p><p>dura fadiga a transformar a terra em cultura de trigo.41</p><p>35 Sn44, §517.</p><p>36 Sn44, §522, 523, 517.</p><p>37 Sn44, §518.</p><p>38 Sn44, §547.</p><p>39 LANDUCCI, 1972, p.295.</p><p>40 Sn44, §525.</p><p>41 Sn44, §539. “[...] tendo crescido em número as suas famílias, não lhes bastando os</p><p>frutos espontâneos da natureza e, para consegui-los em abundância, temendo sair</p><p>As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico • 75</p><p>Além disso, os gigantes pios, situados nos montes, devem ter-se</p><p>ressentido do fedor que exalavam os cadáveres dos seus antepassados,</p><p>que apodreciam perto deles, por isso</p><p>os sepultaram.42 Assim, com esses</p><p>sepulcros os gigantes demonstraram o senhorio das suas terras.43 E</p><p>tudo o que diz respeito à agricultura, Vico envolve com uma atmosfera</p><p>mágica, representando os procedimentos básicos do cultivo da terra</p><p>como rituais religiosos. As terras aradas foram os primeiros altares do</p><p>mundo. E nelas foram feitos ao deus do raio e do trovão os sacrifícios</p><p>dos ímpios que as violavam. O primeiro culto foi justamente o preparo</p><p>dos campos, isto é, acender esse primeiro fogo, que Prometeu roubou,</p><p>abrir as clareiras e fazer sobre elas os sacrifícios dos gigantes ímpios.44</p><p>A disposição e a custódia dos limites dos campos não foram feitas</p><p>por convenção deliberada, com justiça, observada com boa fé, não</p><p>só porque naqueles tempos não havia como impor leis, mas porque</p><p>se tratava de homens extremamente ferozes, que, observando uma</p><p>espantosa religião, mantinham-se circunscritos dentro de certas terras</p><p>e com sangrentas cerimônias consagraram as primeiras demarcações</p><p>traçadas pelo arado.45</p><p>Tudo isso, entre outras coisas, pode-se dizer do aspecto negativo</p><p>da vida primitiva. Mas, outro tanto se pode igualmente dizer do seu</p><p>aspecto positivo. A idade das famílias lança as pedras fundamentais</p><p>da história da cultura da humanidade: as religiões, as linguagens,</p><p>as famílias, a vida sedentária e a agricultura. Da superstição feroz</p><p>das terríveis religiões surgiram nações brilhantes, como a grega e</p><p>a romana.46 Além disso, a sabedoria poética dos primeiros povos</p><p>desenvolveu o lado criativo e engenhoso da mente humana. “Não</p><p>dos seus confins, a que eles mesmos se tinham circunscrito por aqueles grilhões</p><p>das religiões por que os gigantes tinham sido agrilhoados debaixo dos montes, e</p><p>tendo-lhes insinuado essa mesma religião que deitassem fogo às florestas para</p><p>obterem a perspectiva do céu, donde lhes proviessem os auspícios, entregaram-se</p><p>com muita, prolongada e dura fadiga a transformar a terra em cultivado e a semear</p><p>ali o trigo, que, queimado entre dumos e espinhos, teriam talvez observado ser útil</p><p>para a nutrição humana”.</p><p>42 Sn44, §529.</p><p>43 Sn44, §531.</p><p>44 Sn44, §549.</p><p>45 Sn44, §550.</p><p>46 Sn44, §518.</p><p>76 • Vladimir Chaves dos Santos</p><p>só as coisas necessárias à vida”, diz Vico, “mas as úteis, as cômodas,</p><p>as aprazíveis, e até mesmo as supérfluas do luxo, tinham já sido</p><p>descobertas na Grécia antes de aí aparecerem os filósofos”.47 Enfim,</p><p>não se pode deixar de notar que a sabedoria poética é a cura para a</p><p>barbárie da razão, quando essa arruína as civilizações.</p><p>As técnicas, como a agricultura, “são poesias de certo modo</p><p>reais”, na medida em que são imitações da natureza, sendo a poesia</p><p>nada mais que imitação. “Assim”, diz Vico,</p><p>os primeiros povos, que foram as crianças do gênero humano, fundaram</p><p>primeiro o mundo das artes; depois, os filósofos, que vieram muito</p><p>tempo depois e, por consequência, os velhos das nações, fundaram o</p><p>das ciências: com o que ficou de fato completa a humanidade.48</p><p>Em si mesma, a sabedoria poética é ambígua, quando se pensa</p><p>que os caráteres poéticos, a chave da lógica poética, que explicitam</p><p>o modus operandi dessa sabedoria, são marcados pela falta e pelo</p><p>defeito, pois nascem da incapacidade de se fazer abstrações. Não sendo</p><p>capazes de formar os gêneros inteligíveis das coisas, os primeiros</p><p>homens tiveram natural necessidade entendê-las por relações de</p><p>semelhança,49 sendo a metáfora “tanto mais luminosa, quanto mais</p><p>necessária”, cujo animismo vem associado às limitadas condições da</p><p>mentalidade primitiva, isto é, ao sentido e à paixão.50</p><p>O Polifemo de Vico, pela violência e estupidez, ao que parece,</p><p>é mais fiel ao de Homero do que foi o de Platão, se bem que em Vico</p><p>ele não é ímpio como o episódio homérico parece querer mostrar. A</p><p>metafísica dos poetas gigantes, segundo Vico, produziu neles uma</p><p>47 Sn44, §498. “A providência foi boa conselheira das coisas humanas ao promover</p><p>nas mentes humanas a tópica antes da crítica, tal como há primeiro o conhecer,</p><p>depois o julgar das coisas. Porque a tópica é a faculdade de tornar as mentes</p><p>engenhosas, tal como a crítica é a de as tornar exatas; e, naqueles primeiros</p><p>tempos, era preciso descobrir todas as coisas necessárias à vida humana, e o</p><p>descobrir é propriedade do engenho. [...] Não só as coisas necessárias à vida, mas</p><p>as úteis, as cômodas, as aprazíveis, e até mesmo as supérfluas do luxo, tinham já</p><p>sido descobertas na Grécia antes de aí aparecerem os filósofos”.</p><p>48 Sn44, §498.</p><p>49 Sn44, §209.</p><p>50 Sn44, §404.</p><p>As ambiguidades do estado de natureza em Platão e Vico • 77</p><p>moral poética, ao torná-los pios.51 Para reforçar sua interpretação,</p><p>evoca o adivinho que antecipara a Polifemo o revés por que passaria</p><p>com a vinda de Odisseu, alegando que adivinhos não podem viver entre</p><p>ateus.52 Ele, enfim, parece extrair desse topos algo mais que a violência</p><p>do despotismo patriarcal. No mundo primitivo, há também a música</p><p>e a poesia, formas de expressão das violentas paixões. Esse aspecto</p><p>destaca-se justamente na tradição que ele queria renegar. Trata-se do</p><p>Polifemo inserido no locus amoenus da lírica antiga, posteriormente</p><p>integrado à imagem da idade de ouro, na qual ele aparece compondo</p><p>canções de amor à Galatéia, sua amada ninfa. Seria Vico inspirado por</p><p>essa tradição dos amores de Polifemo por Galatéia, da qual fazem parte</p><p>Teócrito, Ovídio e mais recentemente Gôngora? Supondo que sim, teria</p><p>essa inspiração ocorrido no mesmo contexto de uma certa atitude</p><p>cética que procura lançar luz sobre os pros e os contras dos momentos</p><p>históricos? A propósito, Handel compôs uma ópera sobre o mesmo</p><p>tema, e a estreia foi em Nápoles em 1708.</p><p>Referências</p><p>Obras de Vico</p><p>VICO, G. Princìpi di scienza nuova (Sn44). Organização de Fausto Nicolini. Milano:</p><p>Arnoldo Mondadori Editore, 1992.</p><p>VICO, G. Ciência Nova (Sn44). Tradução portuguesa de Jorge Vaz de Carvalho. Lis-</p><p>boa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.</p><p>Outras obras</p><p>ADAM, J. The Republic of Plato (1902). Organização de James Adam. Cambridge:</p><p>Cambridge, 1980.</p><p>ARISTÓTELES. Política. Edição bilíngue. Lisboa: Vega, 1998.</p><p>BRISSON, L. Leituras de Platão. Tradução portuguesa de Sonia Maria Maciel. Porto</p><p>Alegre: EDIPURCS, 2003.</p><p>CARONE, G. R. A Cosmologia de Platão e suas dimensões éticas. Tradução portugue-</p><p>sa de Edson Bini São Paulo: Loyola, 2008.</p><p>CASTORIADIS, C. Sobre O Político de Platão. Tradução portuguesa de Luciana Mo-</p><p>reira Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2004.</p><p>51 Sn44, §502.</p><p>52 Sn44, §503.</p><p>78 • Vladimir Chaves dos Santos</p><p>GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. Tradução portuguesa de João Rezende Costa. São</p><p>Paulo: Paulus, 1995.</p><p>HESÍODO. Teogonia. Tradução portuguesa de JAA Torrano. São Paulo: Iluminuras,</p><p>1992.</p><p>HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Tradução portuguesa de Mary de Camargo Neves</p><p>Lafer. São Paulo: Iluminuras, 2006.</p><p>HOMERO. Odisséia. Tradução portuguesa de Donaldo Schüler. Porto Alegre: L&PM</p><p>Pocket, 2007.</p><p>LANDUCCI, S. I filosofi e i selvaggi: p.1.580-1.780. Bari: Editori Laterza, 1972.</p><p>LUCRÈCE. De la nature. Paris: Flammarion, 1997.</p><p>OLIVEIRA, R. R. Demiurgia Política: as relações entre a razão e a cidade nas Leis de</p><p>Platão. São Paulo: Loyola, 2011.</p><p>PLATÃO. A República. Tradução portuguesa de Maria Helena da Costa Pereira. Lis-</p><p>boa: Calouste, 1990.</p><p>PLATO. Statesman. Tradução inglesa de H. N. Fowler. Cambridge: Harvard Univer-</p><p>sity Press, 1925.</p><p>PLATO. Protagoras. Tradução inglesa W. R. M. Lamb. Cambridge: Harvard Univer-</p><p>sity Press, 1924.</p><p>PLATO. Laws. Tradução inglesa de R. G. Bury. Cambridge: Harvard University Press,</p><p>1988.</p><p>ROSSI, P. Os Sinais do Tempo: história da Terra e história das nações de Hooke a</p><p>Vico. Tradução portuguesa de Julia Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras,</p><p>1992.</p><p>VIDAL-NAQUET, P. Il cacciatore nero: forme di pensiero e forme di articulazione</p><p>sociale nel mondo greco antico. Tradução italiana de Francesco Sircana. Roma:</p><p>Editori Riuniti, 1988.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 79</p><p>Os caracteres dos povos na</p><p>nova ciência das nações de</p><p>Vico:</p><p>entre causalidade sacra, histórica e natural</p><p>Enrico Nuzzo*</p><p>A contribuição específica que este estudo propõe oferecer diz</p><p>respeito à abordagem de Vico das causas naturais, mais precisamente</p><p>“geográficas”, dos caracteres particulares das nações, no âmbito da sua</p><p>reflexão mais geral sobre os fatores causais de tais caracteres.</p><p>Desses fatores, obviamente, aqueles naturais não são as únicas</p><p>condições causais, já que, entre tais condições, estão incluídas também,</p><p>em primeiro lugar, aquelas “sacras”, ou religiosas, e depois aquelas, de</p><p>diversos modos, “históricas”.</p><p>Em razão das primeiras, adquiriram caracteres particulares:</p><p>primeiramente, o povo hebraico, de um lado, e os povos gentios, de</p><p>outro; depois, as nações oriundas das diversas descendências de Noé;</p><p>e enfim, em certa medida (e com problemas de não pouca monta),</p><p>também os povos investidos da mensagem religiosa cristã.</p><p>Em razão das segundas – conforme a ordem universal que segue</p><p>a comum “história ideal eterna” sobre a qual são exemplificadas as</p><p>histórias das diversas nações – se têm variados desenvolvimentos e</p><p>cursos particulares dos seus eventos, fiéis, antes tudo, ao princípio</p><p>pelo qual podem existir formas de assimetria histórica dentro de</p><p>um mesmo processo de desenvolvimento. Os eventos de aceleração,</p><p>retardo, interrupção etc., que diversamente indicam tal distanciamento</p><p>do “curso natural” das nações, só em parte podem ser reconduzidos a</p><p>* Professor emérito da Università degli Studi di Salerno. O presente capítulo é</p><p>uma versão adaptada para o português da conferência apresentada pelo autor na</p><p>ocasião do Congresso Razionalità e modernità in Vico, ocorrido na Università degli</p><p>Studi di Milano-Bicocca em 2011, e publicada em italiano no volume: VANZULLI, M</p><p>(org.). Razionalità e modernità in Vico. Milano: Mimesis, 2012, p.129-178.</p><p>80 • Enrico Nuzzo</p><p>uma “causalidade evenencial”, por assim dizer, ao impacto dos eventos</p><p>particulares (como influências ou conquistas etc., de uma nação</p><p>sobre outra); menos ainda podem ser rastreados numa tradicional</p><p>“causalidade política”, isto é, nas consequências do operar de formas</p><p>políticas mais ou menos prudencialmente instituídas. Com efeito, na</p><p>esfera das razões históricas, ou esses são de natureza “estrutural”</p><p>(todas as comunidades humanas, por exemplo, devem responder às</p><p>mesmas pressões das “necessidades” materiais elementares) e então</p><p>não são capazes de explicar os caracteres peculiares dos diversos</p><p>povos, ou são de natureza particular (por exemplo, a disposição de</p><p>uma nação em viver separada ou exercitar formas de supremacia</p><p>intelectual ou bélica) e então têm a necessidade de ser explicados por</p><p>outras causas.</p><p>De outro modo, permaneceria de todo obscura (para além da</p><p>opacidade certamente introduzida no discurso viquiano pela atuação</p><p>de axiologias irrefletidas e de cunho “ideológico”) a gênese daqueles</p><p>traços que tornaram tais e não outros os diversos povos, e também mais</p><p>“universalmente históricos” determinados povos, como os Romanos e</p><p>os próprios Gregos, em suma, a gênese mesma das “individualidades</p><p>históricas” (na medida em que essas atraem o interesse do autor da</p><p>Scienza nuova).</p><p>Eis porque resulta indispensável (e “natural”) a Vico fazer</p><p>referência – com substancial constância, mas com relativa e parcial</p><p>sistematicidade – a um outro tipo de causas: de ordem natural. É, em</p><p>razão delas, das causas naturais enquanto causas substancialmente</p><p>geográficas (“geográfico-climáticas”, mas também, e mais do que</p><p>isso, “geográfico-ambientais”), que, para o pensador napolitano,</p><p>fazendo apelo sobretudo à bimilenar tradição da teoria dos climas, se</p><p>podem encontrar finalmente as particulares, peculiares e individuais</p><p>“naturezas” das nações, de onde derivam as peculiaridades das suas</p><p>índoles, dos seus “engenhos”, dos seus “costumes”, das suas “línguas”</p><p>próprias, enfim, das suas formas sociais e políticas.</p><p>As questões historiográficas que semelhante espectro pro-</p><p>blemático põe em jogo são, como é fácil ver, da maior importância.</p><p>Sinteticamente, as duas mais relevantes parecem aquela das relações</p><p>entre universal e particular, individual, e aquela das relações entre</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 81</p><p>história e natureza, ou cultura (para nos exprimir com termos a nós</p><p>mais costumeiramente vizinhos). A tais questões mais gerais se liga</p><p>uma cadeia de questões mais determinadas, não menos significativas:</p><p>das relações entre história sacra e profana (e, mais profundamente, da</p><p>própria inspiração mais ou menos “ortodoxa” da complexa meditação</p><p>viquiana no plano religioso); das formas e razões das variadas moda-</p><p>lidades da realização, na ordem histórica efetiva, da ordem universal</p><p>da história ideal eterna; dos caráteres e dos eventuais “limites” da pro-</p><p>pensão viquiana à historicização individualizante dos fenômenos (no</p><p>fundo, o problema do historicismo viquiano, ou também das relações</p><p>entre “filosofia” e “filologia”); da presença e incidência de mais ou me-</p><p>nos tácitas pressões ideológicas no configurar-se das corresponden-</p><p>tes identidades “pátrias” nacionais (itálicas, napolitanas, italianas) ou</p><p>europeias (o problema das características e da extensão do “univer-</p><p>salismo” ou “cosmopolitismo” viquiano); do entrelaçamento, em vivas</p><p>estratificações do pensamento e da escrita, do recente operar de intui-</p><p>ções conceituais novíssimas com consolidadas (mas não inertes) tradi-</p><p>ções de pensamento, tal como aquela da teoria dos climas; etc.</p><p>O plexo de problemas historiográficos e teóricos evocados –</p><p>contidos, em último caso, no problema da natureza, do significado e</p><p>das inferências da “ciência das nações” elaborada por Vico – recomen-</p><p>da que se dê precendência à reconstrução do tema mais determinado,</p><p>que é o da configuração, em sua reflexão, de uma exata etnoantropo-</p><p>logia, a partir de um dúplice reconhecimento, ainda que de carácter</p><p>bastante sintético.</p><p>O primeiro se refere a alguns dos principais nós críticos que</p><p>tal etnoantropologia impõe especificamente à “ciência” viquiana:</p><p>expondo pelo menos minhas posições interpretativas em cujo âmbito</p><p>se situa uma proposta de leitura da reformulação viquiana da tradição</p><p>das condições “físico-geográficas” dos caracteres das nações (as</p><p>“causas físicas” de Montesquieu). O segundo diz respeito à colocação</p><p>da explicação “geográfica” dos “caracteres nacionais” no mais amplo</p><p>espectro temático que se pode dar a uma investigação sistemática – cuja</p><p>exposição busco realizar – sobre a história dos caracteres dos povos</p><p>na tradição ocidental (centrada, com efeito, no período setecentista</p><p>no qual plenamente se coloca a meditação viquiana sobre a matéria):</p><p>82 • Enrico Nuzzo</p><p>um espectro que compreende, em primeiro lugar, como se acenava</p><p>na abertura, as vertentes “religiosa” e “histórica” da individuação e</p><p>compreensão dos aspectos distintivos dos povos.</p><p>Tal escolha comportou a elaboração das duas seções prelimina-</p><p>res deste estudo, embora muito sintéticas não propriamente breves.</p><p>Tais seções, como aquela propriamente dirigida à abordagem viquiana</p><p>das causas dos caracteres das nações, podem ser lidas autonomamente,</p><p>ou ainda, a par e passo, saltadas pelo leitor – o que pode atenuar o não</p><p>ligeiro sentimento de inquietação e culpa deste que escreve e que até</p><p>agora não havia nunca destinado tanto espaço de um contributo à apre-</p><p>sentação das suas orientações críticas amadurecidas há tempo, e nunca</p><p>expostas (como faz aqui abertamente) em suas páginas precedentes.1</p><p>I</p><p>A ciência de Vico é aquela “sobre a natureza comum das nações”,</p><p>não estritamente ou genericamente da “história”.2 Pode-se dizer</p><p>também, com os devidos esclarecimentos, da “história”, não no sentido</p><p>estreito do termo (vale dizer, o sentido restrito usual nos tempos de</p><p>um saber, de resto, prevalentemente erudito), mas no sentido de que</p><p>toda a matéria que faz parte da “natureza das nações” (as formas</p><p>1 Além do mais, parecendo-me indispensável fazer referência, neste lugar, e muitas</p><p>vezes de modo substancialmente</p><p>enunciativo, a algumas das principais propostas</p><p>críticas que desenvolvi na minha leitura geral de Vico, iniciada há muito tempo,</p><p>me limitarei a indicar no aparato das notas, de modo nada habitual, quase que</p><p>somente um grupo de trabalhos de minha autoria. Essa escolha, de fato, me</p><p>permite remeter aos textos para apresentação e discussão de uma ampla literatura</p><p>crítica acerca das problemáticas historiográficas singulares e nós críticos hora</p><p>ou outra devidamente pressupostos aqui, mas improponíveis neste lugar. A</p><p>propósito, reduzirei menos que ao mínimo as citações, como quem se desculpa, de</p><p>uma vez por todas, se isso devesse, contudo, parecer o exercício pleno do sempre</p><p>desaconselhado gosto pela autocitação.</p><p>2 Nesse sentido, dado o significado específico que usualmente possuía a disciplina</p><p>da história nos tempos de Vico, tem razão Marco Vanzulli ao afirmar – em um</p><p>trabalho recente, bem sólido e importante sobre vários aspectos – que “não é a</p><p>história o objeto da ciência viquiana, mas uma nova disciplina que permite, em</p><p>primeiro lugar, a compreensão científica das formações sociais, logo, do curso</p><p>que elas fazem, e portanto das idades históricas até aquele momento mantidas</p><p>impenetráveis à ciência”. Cf. VANZULLI, M. La scienza di Vico. Il sistema del mondo</p><p>civile. Milano: Mimesis, 2006, p.128.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 83</p><p>econômicas, sociais, de costumes, jurídicas, linguísticas, de produção</p><p>de pensamento mítico, poético, literário, filosófico, e assim por diante)</p><p>é substancialmente matéria histórica e acessível a um conhecimento</p><p>de teor histórico, próprio de uma moderna “humanologia” de viés</p><p>histórico, de uma “humanologia histórica”.3</p><p>Em suma, tal matéria é toda a matéria do viver humano, que,</p><p>em suas várias formas e nos seus saberes, a nova ciência de Vico quer</p><p>englobar no projeto de uma nova enciclopédia do saber: a partir de</p><p>um método, no entanto, absolutamente não “enciclopédico”, não</p><p>cumulativo, “agregador”, como aquele ao qual permanecia vinculado</p><p>enfim o enciclopedismo barroco. Ao contrário, a ciência da “natureza</p><p>comum” declara ter reunido isto que Vico aspira declaradamente ao</p><p>menos a partir do Diritto universale (após ter frutuosamente combatido</p><p>a restritiva univocidade metódica do cartesianismo e da ciência</p><p>moderna): a redescoberta dos princípios comuns, ou de um princípio</p><p>comum, situado abaixo da pluralidade exterior do contingente, disto</p><p>que parece, à primeira vista, somente acidentalidade irredutível à</p><p>universalidade, e a obtenção, no plano cognitivo, de um critério de</p><p>unificação capaz de apreender e demonstrar o universal. A maior</p><p>ambição é a de não renunciar, frente à enorme matéria “histórica” e</p><p>“humana” – epistemologicamente vinculada, na tradição, às dimensões</p><p>do acidental, do verossímil e do provável –, ao princípio segundo o qual</p><p>Scientia debet esse de universalibus et aeternis.4</p><p>3 O que não significa, contudo – sustentei repetidas vezes e difusamente como</p><p>uma linha condutora da minha interpretação de Vico –, subtrair o humano de</p><p>uma constante e decisiva pergunta sobre a sua relação principalmente com o</p><p>“sobrenatural”, e nem negar a existência tanto de uma “pré-historia” quanto de</p><p>uma “meta-historia” da humanidade, diferentes da “história”. Esse discurso logo</p><p>será retomado a propósito das premissas metafisicas da meditação de Vico sobre</p><p>a providência, e especificamente das premissas teológicas da sua ciência da</p><p>história. Sobre as diversas “histórias” da humanidade as quais se dedicou Vico</p><p>indico, em especial, o meu estudo: NUZZO, E. I segni delle storie in Vico. Il Pensiero,</p><p>nuova serie, v.XLI, p.17-30, 2002, reunido em seguida – com o título: Dalla storia</p><p>metafisica alla storia civile. I segni delle storie in Vico – em: NUZZO, E. Tra religione</p><p>e prudenza. La “filosofia pratica” di Giambattista Vico. Roma: Edizioni di Storia e</p><p>Letteratura, 2007, p.1-17.</p><p>4 É “propriedade de toda a ciência, advertida por Aristóteles, que scientia debet</p><p>esse de universalibus et aeternis”, afirma Vico sem hesitações na “dignidade”</p><p>XXII da Scienza nuova de 1744 (significativamente alargada em relação à</p><p>expressão originária da “dignidade” XX da edição de 1730), onde a declaração</p><p>84 • Enrico Nuzzo</p><p>A “história ideal eterna” – uma expressão tão ossimórica aos</p><p>ouvidos contemporâneos5 – é o máximo princípio adquirido, vigente na</p><p>móvel esfera do humano, o princípio que aponta para a estrutura imóvel</p><p>do movimento temporal, o absolutamente universal reconhecível no</p><p>conjunto das contingências. Como busquei demonstrar há tempo em</p><p>diversos estudos meus, a garantia de uma estrutura permanente do</p><p>curso histórico, e assim a possibilidade prática de uma “ciência” –</p><p>“demonstrativa” enquanto tal, não “conjectural” – das coisas humanas,</p><p>foi finalmente tornada possível pela mais importante, fundante,</p><p>“descoberta” de Vico no plano epistemológico: o sucesso da aplicação da</p><p>lógica rigorosa, irresistível, das “verdades da razão” – isto que designei</p><p>a “lógica do deveu” ou do “do impossível-que-não” – ao mundo histórico</p><p>factual.6 Descoberta alcançada a partir de uma acirrada reflexão em</p><p>torno do então recente debate sobre o conhecimento da história, em</p><p>do reconhecimento daquela “propriedade” de toda ciência vem acompanhada da</p><p>reivindicação da descoberta dos “fundamentos”, que liberta finalmente o discurso</p><p>sobre os “princípios da humanidade” da bagagem habitual de “inverossimilhanças,</p><p>absurdos, contradições, impossibilidades” (VICO, G. Principj di Scienza nuova</p><p>d’intorno alla comune natura delle nazioni, que cito – de agora em diante com a</p><p>sigla Sn44 – a partir da edição VICO, G. Opere. Organização de Andrea Battistini.</p><p>Milano: Mondadori, 1990, §163, p.504). A edição de 1725 será citada recorrendo</p><p>à sigla Sn25. Sobre a precedente configuração daquela “dignidade” na segunda</p><p>versão do opus magnum viquiano, veja a recente edição crítica: VICO, G. La Scienza</p><p>Nuova 1730. Organização de Paolo Cristofolini com a colaboração de Manuela</p><p>Sanna. Napoli: Guida, 2004, p.97-98 (de agora em diante Sn30).</p><p>5 Sobre a extraordinária constituição “ossimórica” de várias conceitualizações</p><p>viquianas remeto, particularmente, ao meu estudo: NUZZO, E. Gli “eroi ossimorici”</p><p>di Vico. In: ______. Eroi ed età eroiche attorno a Vico. Roma: Edizioni di Storia e</p><p>Letteratura, 2004, p.189-216, publicado, em seguida, no volume já citado NUZZO,</p><p>2007, p.119-148.</p><p>6 Em relação a isso indico principalmente: NUZZO, E. Le logiche dell’impossibile e del</p><p>necessario. Vico e la decifrazione dei tempi favolosi attorno al primo ‘700. Bollettino</p><p>filosofico, Cosenza, vol.15, tomo II, p.205-233, 1999; também em versão alemã: Die</p><p>Logiken der Unmöglichen und des Notwendigen. Vico und die Entzifferung der</p><p>“sagenhaften Zeiten” zu Beginn des 18 Jahrhunderts. In: BEETZ, M. E CACCIATORE,</p><p>G (orgs.). Die Hermeneutik im Zeitalter der Aufklärung. Köln-Weimar-Wien: Böhlau</p><p>Verlag, 2000, p.287-309; o mesmo estudo, com páginas acrescidas e reelaboradas</p><p>– com o título: La “critica di severa ragione” nella scienza della storia. Vico e</p><p>l’“ermeneutica” dei tempi favolosi attorno al primo ‘700 –, no volume: NUZZO, E.</p><p>Tra ordine della storia e storicità. Saggi sui saperi della storia in Vico. Roma: Edizioni</p><p>di Storia e Letteratura, 2001, p.57-108. Desse contributo são retomadas, na maior</p><p>parte, as teses apresentadas nas páginas seguintes, que expõem uma importante</p><p>linha característica da minha posição sobre a ciência de Vico.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 85</p><p>larguíssima medida produzido pelo “racionalismo moderno”, de cujas</p><p>vozes, algumas não homogêneas, Vico foi, a seu modo, significativo</p><p>devedor. Não cabe delongar aqui sobre a natureza e a ascendência da</p><p>operação viquiana de efetiva superação do “veto” leibniziano acerca</p><p>da aplicação do “dever ser” das “verdades da razão” às esferas da</p><p>experiência submetidas somente aos procedimentos das “verdades</p><p>de fato”, mas se pode começar notando a configuração, em Vico,</p><p>de</p><p>um modelo de racionalidade, “analítico-sintético”, capaz de realizar a</p><p>linearidade que conduz do simples ao complexo, conforme o essencial</p><p>modelo – na realidade bastante “simples” e de matriz “naturalista” –</p><p>da correspondência entre ontogênese e filogênese, legível na natureza</p><p>processual de todas as esferas dos fenômenos humanos.7</p><p>Essa ótica interpretativa da problemática da ciência em Vico</p><p>resulta efetivamente nada usual: partindo do reconhecimento</p><p>da marcante importância das funções atribuídas pelo pensador</p><p>napolitano – nos tempos e nos lugares nos quais o conhecimento pode</p><p>e deve fazer-se rigoroso – às faculdades cognitivas mais elevadas, aos</p><p>“trabalhos da mente pura”, “à força” rigorosamente “crítica” da “severa</p><p>razão”, única capaz de sustentar e guiar o “entendimento” enquanto</p><p>pensamento do “verdadeiro”, ultrapassando até mesmo as fundantes</p><p>e sempre fundamentais funções “engenhosas”, de ordem “tópica”, do</p><p>“entendimento”.8 O que não significa, obviamente, ignorar que as mais</p><p>maravilhosas “descobertas” da meditação viquiana são as formas de</p><p>experiência, de conhecimento, mais próximas do alvorecer do humano</p><p>(ou, mais corretamente, disso que renasce no humano), lá onde</p><p>7 Sobre a presença significativa dos elementos de um “imaginário naturalista”</p><p>(um tema que deve estar particularmente presente em um estudo como este que,</p><p>em larga medida, dirige sua atenção sobre a recuperação, por parte do autor da</p><p>Scienza nuova, das “causas naturais” dos caráteres das nações) foi desenvolvido</p><p>por mim especialmente: NUZZO, E. L’immaginario naturalistico. Criteri e figure</p><p>della scienza della storia in Vico. Bollettino del Centro di Studi Vichiani, Napoli,</p><p>v.XXXIV, p.35-56, 2004, surgido paralelamente em sua versão original, em francês,</p><p>com o título: Critères et figures de la science de l’histoire chez Vico. Noesis. La</p><p>Scienza Nuova de Giambattista Vico. Organização de Andre Tosel. Nice, v.8, 2005.</p><p>8 Reduzindo ao mínimo também o aparato relativo às citações dos textos</p><p>viquianos, me limito a recordar que é na dedicatória da primeira versão da</p><p>Scienza nuova que se lê a completa e eloquente afirmação de que “nesta idade</p><p>iluminada […] toda e qualquer autoridade dos mais reputados filósofos se</p><p>submete à crítica da severa razão”.</p><p>86 • Enrico Nuzzo</p><p>começa a operar a tensa constelação das faculdades de uma mente</p><p>conativa; e também que na constituição da ciência cooperam, de modo</p><p>insubstituível, as capacidades intuitivo-conectivas do “engenho” ou</p><p>aquelas imaginativo-narrativas da “fantasia”.</p><p>Variados são os pontos fundamentais que, juntos, vêm</p><p>afirmados no seio dessa linha interpretativa da inovadora ciência do</p><p>mundo das nações: a reafirmação da descontinuidade entre, de um</p><p>lado, o Liber metaphysicus e, em uma considerável medida, o De uno</p><p>e, do outro, a produção viquiana sucessiva; a consideração de que no</p><p>silêncio do princípio do “verum-factum” intervêm, no De Constantia,</p><p>seja a descoberta capital da contração do “verum” no “certum”, seja</p><p>a configuração da aguda “lógica do deveu” que rege a declarada</p><p>tentativa de uma nova scientia das nações; o reconhecimento</p><p>dos modos por meio dos quais Vico – enquanto se contrapunha</p><p>radicalmente (mas, com efeito, não de todo solitariamente) às recentes</p><p>perspectivas do reducionismo epistêmico e metódico – se posicionava</p><p>substancialmente como inovativo portador do desenho de uma nova</p><p>ciência do mundo humano precisamente correspondente ao requisito</p><p>de “ciência do necessário”; o exame dos caracteres desse discurso com</p><p>forma de “ciência” (procedimentos de tipo “desconstrutivo”, a posição</p><p>dos elementos primários do edifício discursivo, procedimentos de</p><p>tipo “demonstrativo” conseguintes aos princípios de verdade, formas</p><p>“construtivas” e também “sistemáticas” de discurso etc.).</p><p>O ponto essencial é que para construir os princípios mais gerais</p><p>– de forma mais a colher o verdadeiro significado dos fenômenos do</p><p>que decidir sobre sua própria efetividade (sobre o como “deveram” ser</p><p>dados) – intervem “finalmente” no discurso viquiano o elemento da</p><p>“crítica” em vez daquele da “tópica”, assim como intervêm as “provas</p><p>filosóficas” em vez daquelas “filológicas”, com uma confiança decisiva</p><p>nos “trabalhos da mente pura”, naquele intelligere do “intelecto”,</p><p>que é “conhecer com verdade”.9 Tal funcionamento se deve tanto à</p><p>posição quanto às análises das numerosíssimas consequências de</p><p>um princípio simples, mas crucial: o de que as coisas humanas se dão</p><p>segundo uma ordem necessária, linear e gradual, que vai do simples</p><p>9 Sn25, §316, p.1134.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 87</p><p>ao complexo, seguindo as inalteráveis sequências por meio das quais</p><p>do mundo do infantil passa-se àqueles da maturidade e, também, da</p><p>decadência; que é igual a dizer que as “ideias humanas” conhecem</p><p>necessariamente um progressivo “desdobrar-se”, uma progressiva</p><p>libertação da “corpulência” da “nossa mente” por “força do verdadeiro”</p><p>que nela habita, que é objetivo “desta ciência” seguir e “demonstrar fil</p><p>filo”, atestar (em primeiro lugar no campo crucial das leis).10</p><p>Adotando semelhante “paradigma linear” e aplicando à</p><p>história um modelo de decomposição e recondução preliminar do</p><p>complexo a elementos simples segundo uma “concatenada série</p><p>de razões”,11 Vico convergia a uma perspectiva de tipo “diacrônico”</p><p>também hipotéticas influências de “modelos analítico-sintéticos” de</p><p>feitura e circulação recentes. Certo é que um tal modelo lhe permitia</p><p>adentrar resolutamente nos tempos obscuros da humanidade mais</p><p>remota e trazer à luz rigorosas interpretações sobre os mais variados</p><p>fenômenos, os quais “deveram” ser aqueles e não outros: segundo a</p><p>“lógica do deveu” que permeia crucialmente quase toda página das</p><p>obras da “maturidade”, exprimindo-se em abundantes ocorrências (já</p><p>em locuções como necesse fuit, ou também nisto a qual ratio suadet, do</p><p>Diritto universale).</p><p>Com efeito, Vico assim impugnava as consequências da “linha</p><p>cartesiana” relativa às verdades de fato. Para dizer a verdade, não é</p><p>rejeitado, mas se apropria do mais “cartesiano” dos critérios: dá-</p><p>se certeza autêntica somente a isto de que não se pode predicar a</p><p>possibilidade lógica do contrário, revelando-se dotado de “evidência”</p><p>interna. Mas ao mesmo tempo pode-se “demonstrar” que determinados</p><p>fenômenos de fato não poderiam não ocorrer senão daquela maneira</p><p>10 Sn25, §51, p.1.011.</p><p>11 Com o objetivo de encontrar e representar – segundo os propósitos</p><p>demonstrativos da ciência – “a eternidade e universalidade” dos fenômenos são</p><p>chamadas, “num golpe, a filosofia e a história dos costumes humanos, que são as</p><p>duas partes que compõem uma tal sorte de jurisprudência do gênero humano”;</p><p>com diferenças, contudo, “de modo que a primeira parte dela [a filosofia] desdobre</p><p>uma concatenada série de causas, a segunda [a história] narre uma perpétua</p><p>ou ininterrupta sequência de fatos da humanidade em conformidade com essas</p><p>razões”, série de razões que constitui, com efeito, uma “história ideal eterna, da</p><p>qual unicamente se pode obter, com ciência, a história universal, a partir de certas</p><p>origens e com certa perpetuidade” (Sn25, §90, p.1.052, grifos meus).</p><p>88 • Enrico Nuzzo</p><p>(o que de outra forma não poderiam ocorrer), e que o seu contrário</p><p>lógico (como, por exemplo, abstrações especulativas nos tempos</p><p>dos “simplórios” primitivos) não teria podido dar-se concretamente,</p><p>repugnando logicamente, ou produzindo, aos olhos do intelecto, do</p><p>“entendimento”, “obscenidade”, “absurdo”, “impossibilidade”.12 Eis</p><p>que a lógica do impossível se converte, então, naquela do “impossível</p><p>que não”, ou seja, na lógica do necessário. Por isso, “esta Ciência</p><p>mesma pode fornecer uma arte crítica”13 por meio da qual o ato</p><p>hermenêutico do “interpretar” é reconduzido conforme os termos de</p><p>um “dever” interpretar (portanto, não de caráter conjectural) isto que</p><p>“deveu” acontecer e que não pôde acontecer senão segundo aquelas</p><p>modalidades gerais.</p><p>Tal visão estava ligada a uma</p><p>inédita concepção da verdade. O</p><p>pensador napolitano, embora elaborasse suas categorias no plano</p><p>do conhecimento com a usual representação da “universalidade” e</p><p>inclusive da “simplicidade” do verdadeiro, contudo, refundava já este</p><p>plano na base da reflexão, por assim dizer, “metafísica” e “ontológico-</p><p>histórica” do verdadeiro. De fato, a verdade humana, na sua mente e na</p><p>sua história, tem uma presença que deriva de sua pré-história metafísica,</p><p>uma presença que se dispõe na sua conatividade, como vis veri, e que</p><p>na sua efetividade se dá na sua constante ou flexível “difusividade”</p><p>(que é a originalíssima releitura viquiana de uma tradição da verdade,</p><p>particularmente atenta à esfera pública como espaço aberto ao “senso</p><p>comum”, prenhe também de referências aristotélicas), portanto, na</p><p>implicação tensional, ou “contradição”, do universal nas múltiplas</p><p>formas da corpulenta historicidade do “certo” concreto. O universal do</p><p>“verdadeiro” (mesmo existindo uma prioridade metafísica na vis veri</p><p>conativa) se dá sempre sob determinadas formas do “certo” (daí que</p><p>o verum-certum, bem mais do que o verum-factum, sobressai como a</p><p>verdadeira, essencial e inevitável “descoberta” viquiana).14</p><p>12 São termos, conceitos, que no importante “cabeçalho” do livro II da Scienza</p><p>nuova prima, dedicado à “Ideia de uma nova arte crítica”, precedem o articulado</p><p>passo, o qual, remontando a cadeia causal necessária para explicar a peculiaridade</p><p>e a conveniência das “formas de governo”, encontra na “natureza dos sitas” o fator</p><p>causal originário das formas peculiares da “natureza humana” (Sn25, §92, p.1.033).</p><p>13 Sn25, §91, p.1.033.</p><p>14 Poder-se-ia até chegar ao ponto de dizer que a edificação da ciência nova não</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 89</p><p>Disso resulta que, embora a ciência de Vico seja tal porque o seu</p><p>objeto primário é constituído de princípios universais e necessários,</p><p>ao mesmo tempo, a verdade dos fenômenos não se configura – onto-</p><p>logicamente e gnosiologicamente – como um universal abstrato que</p><p>sobra de um processo de redução, subtração, da esfera das contingên-</p><p>cias e da pluralidade das determinações concretas. Pelo contrário, em</p><p>virtude da história ideal eterna e sobre o seu constante fundo de ver-</p><p>dade (e de uma “ontologia histórica” da “simplicidade”), o universal</p><p>elaborado pelo saber viquiano é de tempo em tempo uma concreta de-</p><p>terminação do “certo”, na qual são contraídas figuras do “verdadeiro” e</p><p>do “justo”, de modo que a universalidade do verdadeiro possui, no seu</p><p>conjunto, a corporeidade do concreto e a abertura dinâmica às suas</p><p>novas configurações e determinações, também concretas.15</p><p>Também com o propósito de investigar os significados que assu-</p><p>mem aquelas individualidades históricas, que são as nações singulares</p><p>na ciência de Vico, se diz, todavia, que o universal concreto visado por</p><p>ela permanece sempre, ainda assim, um universal típico, “comum”; um</p><p>universal cuja determinação própria se destaca na dinâmica proces-</p><p>sual das produções da mente humana em relação ao “antes” e ao “de-</p><p>pois”, por assim dizer, mas não em relação a isto que se coloca no mes-</p><p>mo “tempo sequencial”, no mesmo grau de um processo de desenvol-</p><p>vimento (ou ainda em uma mesma ou análoga situação de condições</p><p>poderia ter feito nada além de tal celebre princípio, que, de fato, por um longo</p><p>tempo, escapava no processo das mais altas conquistas viquianas, mas não</p><p>daquele do verum-certum, não por acaso obtido através da meditação crucial sobre</p><p>o direito e sobre a auctoritas, declarada rationis pars já no De uno. Cf. VICO, G. De</p><p>unversi iuris uno principio et fine uno. In: ______. Opere giuridiche. Organização de</p><p>Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze: Sansoni, 1974, p.29</p><p>(de agora em diante De uno). Trata-se de uma linha interpretativa que, como se</p><p>sabe, foi apoiada especialmente por estudiosos (basta evocar Fassò entre todos)</p><p>que, oportunamente, sublinharam a centralidade e a importância nas meditações</p><p>de Vico do confronto com as problemáticas jurídicas.</p><p>15 Sobre o caráter “não subtrativo” e “aberto” do universal viquiano Trabant tem</p><p>expressões pontuais e eficazes. “O universal e o eterno de Vico não é aquilo que</p><p>eu abstraio, o que resulta quando se elimina o particular, mas ao contrário: o</p><p>que se reúne, o que eu recolho. O universal e o eterno é, por conseguinte, uma</p><p>coisa aberta, pois os homens podem sempre inventar visões novas, os diversos</p><p>aspectos não formam uma lista fechada” (Cf. TRABANT, J. La science de la langue</p><p>parle l’histoire idéale éternelle. Noesis. La Scienza Nuova de Giambattista Vico.</p><p>Organização de Andre Tosel. Nice, v.8, 2005).</p><p>90 • Enrico Nuzzo</p><p>materiais etc.). Na perspectiva da ciência das nações viquiana interessa</p><p>crucialmente a sua “natureza comum”, a confirmação de elementos de</p><p>uniformidade, ou pelo menos de forte analogia entre situações, condi-</p><p>ções semelhantes. O mesmo forte e indispensável hábito comparatista</p><p>viquiano (por certo limitado no acesso a materiais propriamente etno-</p><p>-antropológicos diversos daqueles das civilizações mais amadas e es-</p><p>tudadas) está constantemente operando mais para confirmar “estru-</p><p>turas” definidas, do que para encontrar individualidades irredutíveis</p><p>umas às outras (basta pensar nas recorrências daquele pensar mítico</p><p>ainda tão imageticamente narrativo, aliás, sempre reconduzido a re-</p><p>presentações, expressões, de experiências factuais precisas, mas não</p><p>isoladas, de acontecimentos dificilmente de todo singulares). Isto quer</p><p>dizer que se fixar na obtenção do “universal”, do “comum” (não somen-</p><p>te dos três grandes costumes que o “senso comum” do gênero humano</p><p>dispõe sem nenhuma exceção, mas inclusive de todo o processo de de-</p><p>senvolvimento), ocorre tendencialmente em detrimento do particular,</p><p>do individual, ainda que carecendo substancialmente de um “amor”</p><p>historicista pelo individual (do historicismo não “absoluto”, é claro).</p><p>Vico não mostra sensibilidade por um individuum que seja inefável.16</p><p>Sobre tal falta de sensibilidade pelo caráter individual das nações não</p><p>se equivocou Antoni, quando, na esteira de Meinecke, e apesar de algu-</p><p>mas simplificações e categorizações exageradas, encontrava também</p><p>naquele, que vinha definido “fundador do nosso historicismo”, a pre-</p><p>ponderante “investigação da lei constante e uniforme da vida”.17</p><p>16 Tratei muitas vezes da enorme distância do pensador napolitano em relação</p><p>às sensibilidades próprias do “historicismo problemático”, naturalmente</p><p>confrontando-me, em primeiro plano, com a célebre linha interpretativa de</p><p>Pietro Piovani. Remeto a NUZZO, E. Lo studioso di Vico. In: TESSITORE, F. (org.).</p><p>L’opera di Pietro Piovani. Napoli: Morano, 1990, p.207-312, depois, com algumas</p><p>modificações, e com o título: Gli studi vichiani di Pietro Piovani, no já citado: NUZZO,</p><p>2001, p.241-326. Nesse mesmo volume, central para esse argumento é o estudo</p><p>intitulado: Vico, la storia, gli storicismi, que amplia e reelabora consideravelmente</p><p>uma minha contribuição anterior: Vico, la storia, lo storicismo. In: CACCIATORE,</p><p>G.; CANTILLO, G.; LISSA, G. (orgs.). Lo storicismo e la sua storia. Temi, problemi,</p><p>prospettive. Milano: Guerini, 1997, p.50-68.</p><p>17 Mas o discurso de Antoni era, na realidade, cheio de simplificações de ordem</p><p>historiográfica e metodológica, bem como de categorizações estereotipadas dos</p><p>“espíritos nacionais”. “O ‘historicismo’ italiano que se pode chamar humanístico”,</p><p>fundado por “um obscuro professor de retórica, cultor dos estudos jurídicos e</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 91</p><p>Tal posição de Vico pode ser atribuída também ao fato de ele</p><p>não mostrar nem sequer alguma sensibilidade religiosa, cristã, pela in-</p><p>dividualidade, menos ainda pelos problemas ou dramas pessoais das</p><p>consciências, pelas biografias individuais da salvação: de resto, já pou-</p><p>co interessado nas biografias pessoais da glória, pois narrador, sobre-</p><p>tudo, dos heroísmos coletivos arcaicos, mas com certeza pessoalmente</p><p>não isento da busca pela afirmação heróica do pensador que descobre</p><p>novos continentes e, ao mesmo tempo, reafirma a irrenunciável fun-</p><p>ção prática da filosofia, o seu dever de “beneficiar o gênero humano”.</p><p>O seu interesse, portanto, é que se possa declinar no interior de uma</p><p>perspectiva religiosa, cristã, o tema “pagão”, maquiaveliano, da salva-</p><p>ção das nações. Mas, precisamente, no interior de uma perspectiva re-</p><p>ligiosa, cristã.</p><p>Caminhando para a conclusão desta sintética apresentação de</p><p>algumas linhas condutoras da minha interpretação da ciência viquiana,</p><p>parece-me oportuno concluir – também porque o argumento retorna</p><p>de novo sobre o ponto, assaz importante para o nosso discurso, da</p><p>filológicos, Giambattista Vico”, como reação “à cultura intelectualista francesa, à</p><p>razão matemática de Descartes” (mas já em 1924, recorda Antoni, De Ruggiero</p><p>definiu Vico “fundador do nosso historicismo”), tem, atrás de si, “o espírito</p><p>profundo do Humanismo, o seu sentido de individualidade”, espirito que Vico</p><p>traiu saindo à “pesquisa das leis constantes e uniformes da vida”, ficando assim</p><p>absolutamente à frente das orientações mais avançadas da cultura do Settecento,</p><p>excluindo-se “também do movimento da cultura europeia do Settecento, que estava</p><p>pesquisando e definindo o ‘caráter’, o ‘gênio’, o ‘espirito’ de cada nação singular,</p><p>que estava adquirindo consciência da individualidade histórica das nações, da</p><p>originalidade delas” (ANTONI, C. Lo storicismo. Torino: Edizioni radio italiana,</p><p>1957, p.57, 62). Um espírito de “categorização” estereotipado, que pode bem</p><p>interessar ao nosso discurso, investia, no discurso de Antoni, todo o pensamento</p><p>filosófico moderno, dividido “em dois campos opostos” de “combatentes”, dentre</p><p>os quais, com um espírito tipológico inaceitável, vinham encerradas as “modernas</p><p>nações europeias” (francesa de um lado, inglesa, alemã e italiana de outro), e “as</p><p>várias fisionomias e o diverso destino” delas. Dessa indicação pouco produtiva se</p><p>relevam, porém, as “aberturas” para uma pesquisa compreensiva da pluralidade e</p><p>riqueza das tendências modernas em vista do reconhecimento da “individualidade</p><p>como força ativa do espírito”: por exemplo, a recente celebração da barbárie no</p><p>“libertino Saint-Évremond, fugitivo da França cartesiana na Inglaterra livre”, ou</p><p>o anti-mecanicismo do “empirismo cético de Hume” ou do “sentimentalismo”</p><p>inglês, ou a pesquisa, em Leibniz e Herder, mais do que no próprio Vico, de uma</p><p>“individualidade original”. Entre as tantas páginas de diversos textos do estudioso</p><p>evocadas aqui elejo aquelas do capítulo: ANTONI, C. La struttura dell’individuo. In:</p><p>______. Commento a Croce. Venezia: Neri Pozza, 1955, p.215-216, 218, 223.</p><p>92 • Enrico Nuzzo</p><p>“ontologia histórica da simplicidade” (e da debatida relação “Vico-</p><p>Galileu”) – com a indicação das minhas propostas críticas em torno</p><p>das premissas teológicas da “ciência nova” de Vico e da natureza</p><p>intrinsecamente “ortodoxa” da sua lúcida operação em defesa de uma</p><p>posição cristã: natureza não prudencialmente “ortodoxa” (mesmo se,</p><p>obviamente, com claras e consistentes preocupações prudenciais),</p><p>mas certamente não inocuamente “ortodoxa”.</p><p>Trata-se de indicações, a meu ver, indispensáveis. E não para</p><p>dar conta melhor de uma leitura pessoal da “ciência nova” de Vico,</p><p>cujos aspectos singulares é possível, aliás, encontrar tranquilamente</p><p>nos textos aos quais ela já foi confiada,18 mas para esclarecer, por</p><p>hora, como na reflexão viquiana sobre os caracteres das nações o tipo</p><p>da abordagem, baseada na distinção entre história sacra e história</p><p>profana, atendia a interesses “naturais”, a exigências espontâneas, de</p><p>um pensamento em significativa medida orientado por uma inspiração</p><p>religiosa efetiva e, de certo modo, empenhado em uma operação teórica</p><p>original largamente favorável à perspectiva cristã (e também, em</p><p>menor medida, católica); e como o tipo de abordagem dos caracteres</p><p>das nações que os fundamenta enfim sobre causas naturais de ordem</p><p>“geográfica” (que constitui o objeto da seção final desta contribuição),</p><p>não se deve compreender, assim me parece, reconduzindo-o a um</p><p>núcleo “naturalista” do pensamento viquiano, mas a uma explicação das</p><p>“vias simplíssimas”, “ordinárias”, pelas quais age a força providencial</p><p>que trabalha pela salvação do gênero humano e consente o possível</p><p>“desdobrar-se” do “verdadeiro” e do “justo” ínsitos na mente humana.</p><p>Como é sabido, recentemente conheceu nova vida e fortuna</p><p>a diretriz hermenêutica que enxerga em Vico o mascaramento</p><p>18 Apresentei uma primeira abordagem analítica do tema dos fundamentos</p><p>teológicos da ciência nova de Vico em um estudo hoje publicado e sobre o qual foram</p><p>adaptadas as páginas logo a seguir: NUZZO, E. Between Orthodoxy and Heterodoxy</p><p>in Italian Culture in the Early 1700s: Giambattista Vico and Paolo Mattia Doria. In:</p><p>MORTIMER, S.; ROBERTSON, J. (orgs.). The Intellectual Consequences of Religious</p><p>Heterodoxy 1650-1750. Leiden-Boston: Brill, 2012, p.205-234. Mas, em matéria de</p><p>história sacra e história profana, e mais em geral de “religião” (e “prudência”) em</p><p>Vico, devo indicar outros trabalhos meus, ou seja: L’umanità di Vico tra le selve e le</p><p>città. Agli inizi della storia della civiltà nel “Diritto universale”, presente no volume</p><p>já citado: NUZZO, 2001, p.109-164, e ainda: La filosofia pratica di Vico tra religione</p><p>e prudenza, no também já citado: NUZZO, 2007, p.211-231.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 93</p><p>prudencial, marcadamente intencional, da concepção de uma estrutura</p><p>providencial “objetiva” da realidade histórica, talvez marcada mais por</p><p>cifras decisivamente spinozistas do que por agudas prefigurações de</p><p>imanentismos idealistas: pensa-se na leitura de Vico (e Doria) tão segura</p><p>de si de Jonathan Israel, mas também nas recentes revitalizações, na</p><p>literatura crítica italiana, de leituras que visam sublinhar a inspiração</p><p>“pagã” ou ainda “heterodoxa” do pensamento viquiano – maiormente</p><p>vizinhas às mais perspicazes posições críticas de um Badaloni, como</p><p>aquelas de Paolo Cristofolini ou de Gustavo Costa.</p><p>As interpretações da concepção viquiana da providência em</p><p>chave heterodoxa, naturalista, ou enfim spinozista destacam ampla-</p><p>mente que, segundo ela, o desígnio divino rege o curso histórico por</p><p>via ordinária, por meio de causas segundas, não fazendo intervir ali</p><p>diretamente a vontade divina, omitindo a própria presença de Cristo,</p><p>e assim por diante. Desse modo, a providência não seria, na realidade,</p><p>outra coisa senão a “estrutura natural” do processo histórico, repro-</p><p>duzindo nele possivelmente um princípio universal de conservação do</p><p>real. Mas tais interpretações traziam, assim, a confirmação equivocada</p><p>de uma premissa errônea, isto é, crer que a posição de Vico, para entrar</p><p>no campo da “ortodoxia”, deveria seguir a via desgastada e, portanto,</p><p>inútil à causa cristã, de ver em obra no curso das nações uma direta e</p><p>mais ou menos constante intervenção divina. E embora a via empre-</p><p>endida por Vico não fosse nada pacífica, possuía, contudo, premissas</p><p>teológicas cuja ortodoxia podia ser claramente reivindicada.</p><p>Na realidade, foi pelo menos desvalorizado, senão ignorado, o</p><p>fato de que a ideia do operar da providência viquiana por meio do curso</p><p>ordinário das causas segundas, “rebus ipsis dictantibus”, se inscrevesse</p><p>em umas das diretrizes presentes no conjunto das discussões capitais</p><p>e também das acesas controvérsias em que foi enfrentada a antiga</p><p>questão dos atributos de Deus nos termos da relação entre potestas</p><p>absoluta e potestas ordinata. Como se sabe, após o período tardo-</p><p>medieval, essas discussões foram amplamente retomadas também na</p><p>idade moderna, influenciando bastante o debate filosófico metafísico,</p><p>físico, gnosiológico e ético. Para ficar só com os autores que Vico teve</p><p>entre seus principais interlocutores, basta pensar na concepção de</p><p>Galileu dos caracteres de simplicidade e legalidade impressos por</p><p>94 • Enrico Nuzzo</p><p>Deus na natureza, ou</p><p>na de Descartes ou de Suárez em torno das</p><p>provas de Deus e das verdades eternas, ou na de Malebranche acerca</p><p>das características do divino.</p><p>Duas são as diretrizes fundamentais que a esse propósito cabe</p><p>definir: uma difusa na época de Vico, mas conhecida desde os tempos</p><p>de um grande protagonista da segunda escolástica (assiduamente es-</p><p>tudado por Vico), Francisco Suárez, que remonta a Duns Scoto, “privile-</p><p>giadora” do predomínio da potestas absoluta; e a outra, na qual podem</p><p>ser incluídos finalmente Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham,</p><p>“privilegiadora” da potestas ordinata, enquanto é derivada do “vincu-</p><p>lo” sapiencial benevolente exercitado por uma potestas absoluta peri-</p><p>gosamente caprichosa. Simplificando ao máximo, é possível sustentar</p><p>que, no todo, resultou mais influente, especialmente no pensamento</p><p>católico, a segunda perspectiva, que refreava, se não anulava, a ideia de</p><p>uma instabilidade constitutiva do ordinário, a qual colocaria em perigo</p><p>a própria “legalidade” do mundo, tendendo a protegê-lo da irrupção do</p><p>extraordinário. A diretriz da potestas ordinata trazia consigo, portanto,</p><p>a inclinação a sustentar (e com uma reivindicação de ortodoxia que foi</p><p>defendida por Galileu) a ideia, a imagem, de uma transparente legali-</p><p>dade do mundo largamente sustentada pela ciência moderna sobre a</p><p>base teológica de um Deus sapiente e benigno, ordenador de um curso</p><p>estável das causas segundas.</p><p>Ora, a concepção viquiana do divino mostra em termos claros</p><p>estar profundamente implicada por semelhante problemática em</p><p>torno dos atributos divinos, demonstrado, nesse caso, em vez de</p><p>originalidade, uma peculiar e consistente continuidade, acerca da qual</p><p>será suficiente dar apenas algumas indicações.</p><p>Partindo do De uno, se revela patente a opção “antivoluntarista”</p><p>pelo Deus da potestas ordinata, no qual o atributo da voluntas acha-se</p><p>vinculado a uma atenção exclusiva ao seu ser perfectissimum, que é a</p><p>perfeição da sapientia-bonitas. Ora, esse é o fundamento teológico do</p><p>agir divino especificamente “per simplicissimas vias”, que é a escolha</p><p>essencial, em seguida sempre confirmada, da específica providência</p><p>viquiana; e é um fundamento fortemente antivoluntarista, contradi-</p><p>zendo a tradição que conceitua a permanência da potestas absoluta di-</p><p>vina interrompendo, ou reformulando, a ordem das coisas contingentes</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 95</p><p>(assim subtraindo-as da possibilidade de constituir a firme condição</p><p>de possibilidade de um conhecimento humano seguro).19 As vias fa-</p><p>cillimae de que fala Vico correspondem a um princípio de simplicitas, e</p><p>apresentando-se na ordem histórica como opportunitates, occasiones,</p><p>casus, conduzem à solução de entender a providência divina como o</p><p>exercício de uma potestas ordinata, que desde ali, no De uno, começa a</p><p>operar “rebus ipsis”, “moribus ipsis”.20</p><p>Sobre esse ponto não podem ser subvalorizadas as implicações</p><p>da eminência do caráter de sabedoria e bondade da onipotência divina,</p><p>ao “vincular” o exercício de tal perfeição, na ordem natural em primeiro</p><p>lugar, à forma da máxima simplicidade e facilidade, sendo “natural” que</p><p>Deus tenha escolhido a via da máxima simplicitas. Isso significava preci-</p><p>samente pôr-se em conformidade com as premissas e resultados da ci-</p><p>ência moderna (sem que isso signifique, como foi dito, que sua operação</p><p>teórica visasse uma lógica de “complemento”, ou de “complementarida-</p><p>de”, com a revolução científica). Era essa precisamente a direção empre-</p><p>endida não somente pela visão do mundo físico, própria da ciência mo-</p><p>derna galileana, mas, antes, pelas premissas teológico-ontológicas de tal</p><p>visão. Deus “goza da simplicidade e facilidade”, havia afirmado Galileu no</p><p>Dialogo sopra i due massimi sistemi (com o risco bem concreto de suble-</p><p>var as duras objeções a que deu voz o próprio Urbano VIII); e Vico – cujo</p><p>galileísmo se falou com frequência genericamente – pode ser verdadei-</p><p>ramente considerado, nesse aspecto, seu herdeiro, ao deslocar o princí-</p><p>pio da simplicidade para o plano histórico21. Mas o pensador napolitano</p><p>recuperava tal princípio geral da simplicidade e imutabilidade da ordem</p><p>divina, também e mais acentuadamente, nos seus mais frequentados</p><p>interlocutores modernos, quer dizer, em Descartes e Malebranche (e é</p><p>seguramente com a imagem “antivoluntarista” de Deus do oratoriano</p><p>que Vico revela maior afinidade).</p><p>Toda a trajetória da meditação de Vico confirma a natureza da</p><p>sua posição sobre os atributos divinos e o seu modo de conduzir a</p><p>19 De uno, II-IV, p.43, 45.</p><p>20 De uno, CLVI, p.211.</p><p>21 GALILEI, G. Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo. In: ______. Le opere di</p><p>Galileo Galilei. Edição nacional organizada por A. Favaro. Firenze: G. Barbera, tomo</p><p>VII, 1933, p.566 (ver também: p.423, 473).</p><p>96 • Enrico Nuzzo</p><p>fundação de uma ciência sobre a ordenação histórica do mundo civil.</p><p>Esta é uma ordem devida a uma divindade infinitamente boa que</p><p>deliberou que a sua providência operasse com máxima simplicidade:</p><p>assim, em primeiro lugar, que os “fins particulares” dos homens</p><p>tornassem os “meios” do seu operar – segundo um princípio da</p><p>heterogênese dos fins já enfrentado com acuidade por pensadores</p><p>como Nicole ou Malebranche. É então por bondade infinita de Deus que</p><p>isto que os homens ou povos particulares ordenam para seus fins</p><p>particulares – pelos quais, uma vez propostos, eles iriam se perder –</p><p>ela, aquém e frequentemente contra todo seu propósito, dispõe para</p><p>um fim universal, pelo qual ela, usando como meios aqueles mesmos</p><p>fins particulares, os conserva.22</p><p>E é precisamente este “aspecto” do operar da “providência [...] or-</p><p>denadora” que Vico declara querer demonstrar “por toda a obra”.23 Como</p><p>uma espécie de causa “formal” e “final”, a “divina arquiteta” atribuiu ao</p><p>“arbítrio humano”, que é a causa “eficiente” (o “artífice”), um operar</p><p>que – longe de ser caracterizado pela incerteza que seria própria à sua</p><p>natureza – respeita ao princípio da absoluta regularidade e constância.</p><p>De fato, o “arbítrio humano” é “determinado pela sabedoria do gênero</p><p>humano tendo por medidas as utilidades ou necessidades humanas uni-</p><p>formemente comuns a todas as particulares naturezas dos homens”.24</p><p>Com a forma clara de uma potestas ordinata e com o desígnio de</p><p>uma “história ideal eterna”, o Deus providente atua, resumidamente,</p><p>por meio de um regime estrito de causas segundas. Vico se movia assim</p><p>no seio de uma tradição de clara ortodoxia, mesmo que problemas</p><p>de não pouca e aguda heterodoxia surgissem no terreno do mundo</p><p>criatural. Isso deve ficar bastante claro: o discurso aqui desenvolvido</p><p>quis mostrar a correção dos fundamentos teológicos da posição</p><p>viquiana no confronto das diretrizes de leitura em chave heterodoxa,</p><p>mas não implica, absolutamente, que o conjunto das posições e teses</p><p>de Vico não se apresentasse prenhe de graves riscos.</p><p>22 Sn25, §45, p. 1.008, grifos meus.</p><p>23 Sn25, §45, p. 1.008, grifos meus.</p><p>24 Sn25, §46-47, p.1.009, grifos meus.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 97</p><p>A ordem criatural histórica é bem menos “neutra” do que aquela</p><p>da natureza física, da apresentação e fundação teológica da absoluta</p><p>simplicidade cuja regularidade bem custou a Galileu a acusação de ter</p><p>deixado falir a ideia da potestas absoluta divina. Mesmo separando</p><p>a saúde sobrenatural, a graça, da saúde natural da conservação do</p><p>mundo das nações, Vico subtraía tais formas de conservação do agir</p><p>consciente dos sujeitos humanos e valorizava seja qual fosse o acesso</p><p>ao divino dado, ou que ainda se desse (entre as mais bárbaras nações</p><p>viventes), nas formas religiosas pagãs. Colocava-se, portanto, a questão</p><p>do se, do como e quando o cristianismo teria “colaborado” de forma</p><p>essencial com a conservação das nações.</p><p>Sobre tal matéria, que merece ainda reconhecimentos pontuais</p><p>e aprofundamentos críticos, bastará aqui somente notar que o tema</p><p>do milagre (evidentemente apto a pôr em crise a ideia do curso ab-</p><p>solutamente “ordinário”</p><p>dos fenômenos históricos), substancialmen-</p><p>te ausente na primeira redação da Scienza nuova, comparece, porém,</p><p>naquelas sucessivas. Focando-nos só por um momento na última ver-</p><p>são do livro, recordamos, a propósito, a disponibilidade de introduzir,</p><p>ainda que “intersticialmente”, a intervenção do sobrenatural, das “vias</p><p>sobre-humanas” e, portanto, dos “milagres”, no curso dos desenvol-</p><p>vimentos da história profana, no qual depois se insere a experiência</p><p>do cristianismo.25 Todavia, também no caso dos inícios do ricorso (nos</p><p>inícios do medievo) Deus “permitiu nascer uma nova ordem de huma-</p><p>nidade entre as nações, para que segundo o natural curso das próprias</p><p>coisas humanas ela firmemente fosse estabelecida”,26 perspectiva dos</p><p>acontecimentos assaz perigosa no plano da ortodoxia (como confir-</p><p>mam as páginas sobre a barbárie medieval cristã cuja insidiosa seve-</p><p>ridade encontra poucas correspondências no século das luzes). Em</p><p>suma, permanecemos em um ponto delicadíssimo, na reafirmação da</p><p>ideia de que “embora este mundo tenha sido criado no tempo e seja</p><p>particular, porém, as ordens que ela [a providência] lhe deu são uni-</p><p>versais e eternas”.27</p><p>25 Sn44, §1.047, p.934.</p><p>26 Sn44, §1.047, p.934, grifo meu.</p><p>27 Sn44, §342, p.549.</p><p>98 • Enrico Nuzzo</p><p>Deus que é definido, desde o início do texto, eminentemente “pelo</p><p>atributo de sua providência”,28 se confirma então por um agir divino</p><p>“vinculado” à sua “imensa bondade” e “constrangido” a operar pelas</p><p>“vias fáceis” que a “sabedoria infinita” indica, e das quais, tendo-a por</p><p>“conselheira”, a própria onipotência torna-se “ministra”.29 Trata-se de</p><p>páginas da seção Do método que se poderia colocar em uma antologia</p><p>ideal dos êxitos modernos da grande discussão sobre os atributos de Deus.</p><p>A posição de Vico se destaca ali por tê-la deslocado, com extraordinária</p><p>energia e inovação, para o terreno do “mundo das nações”, e por ter, com</p><p>outra consequente inovação, “eleito” como atributos eminentes do divino,</p><p>operando mediatamente em tal mundo, a “bondade” da sua “vontade” e</p><p>o caráter “supracompreensivo” da sua “sabedoria” que dita à primeira as</p><p>vias simplíssimas, “naturais”, com as quais conservar o “gênero humano”.</p><p>Na tríade dos atributos de Deus são adjetivações relativas à sabedoria e</p><p>à vontade uma “sábia”, a outra “benigna”, e desempenham ambas uma</p><p>limitação da concepção voluntarista do divino.</p><p>Vico assumia e reformulava assim, no plano do “mundo histórico”,</p><p>uma diretriz do pensamento teológico que já havia sido aplicada para</p><p>sustentar a absoluta legibilidade do “mundo natural”, e substanciava</p><p>o acesso à “cadeia eterna das causas” com uma ambiciosa fundação</p><p>epistêmica da “ciência” dos fenômenos históricos desconhecida à</p><p>fundação conjectural setecentista do saber histórico.</p><p>II</p><p>A “ciência nova” de Vico estava, portanto, em condição de</p><p>reconstruir, com segurança, os passos seguidos em comum pelas</p><p>diversas nações, mesmo que separados por tempos diversos e</p><p>obviamente efetuados segundo modalidades particulares.</p><p>Mas se todas as nações gentias deveram seguir ao menos as</p><p>sequencias essenciais de uma ordem comum, se todas não puderam</p><p>não passar – para dar o mais fácil dos exemplos – pelos tempos</p><p>bárbaros,30 de onde viriam os seus caracteres particulares? De onde</p><p>28 Sn44, §9, p.421.</p><p>29 Sn44, §343, p.549, grifo meu.</p><p>30 Os lugares e tempos da barbárie, e sua substancial “temporalização” (que</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 99</p><p>viria o fundamento dos seus aspectos contingentes? De onde viriam</p><p>as “naturezas” particulares das nações, isto que excede ou precede a</p><p>sua “natureza comum” objeto de uma ciência do “universal”? E este</p><p>“onde” pode ser somente, ou prevalentemente, um “onde histórico”</p><p>ou deve ser (propriamente porque o histórico mundo civil das nações,</p><p>em suas formas estruturais, foi finalmente endereçado a uma ciência</p><p>do universal), ao menos em maior medida, um onde literal, um “onde</p><p>espacial”?31 E se as naturezas particulares dos povos, enquanto tais,</p><p>não são universais, põem-se talvez fora da ciência enquanto pura</p><p>contingência? Não certamente. O inabalável princípio do “impossível-</p><p>que-não” é o princípio demonstrativo da generalíssima história</p><p>ideal eterna, dentro do qual se inscreve também o essencial motivo</p><p>da heterogênese dos fins. Mas o projeto totalizante do edifício</p><p>enciclopédico viquiano não renunciava, sobre a base da sistemática</p><p>largamente comparatista do seu proceder, a se servir de saberes</p><p>teóricos e metodológicos tradicionais, com os quais alargava e</p><p>confirmava suas reconstruções e as teses que lhes governam.</p><p>Vico se volta, então, à tradição teórica e narrativa que ligava os</p><p>caracteres das nações aos fatores climáticos, enquanto um instrumento</p><p>“natural” para definir as causas capazes de explicar aqueles aspectos</p><p>não exclui, contudo, também a consideração de uma sua mais “natural”</p><p>“espacialização”) constituem um argumento cujo aprofundamento pode</p><p>contribuir com a problemática deste estudo. Para uma introdução ao tema me</p><p>remeto a NUZZO, E. Figuras de la barbarie. Lugares y tiempos de la barbarie en</p><p>Vico. Cuadernos sobre Vico, Sevilla, v.15-16, p.151-162, 2003; texto publicado</p><p>também em versão portuguesa: NUZZO, E. Lugares e tempos da barbárie em Vico.</p><p>In: GUIDO, H.; SEVILLA, J. M.; SILVA NETO, S. A. (orgs.). Embates da Razão: mito e</p><p>filosofia na obra de Giambattista Vico. Uberlândia: EDUFU, 2012, p.35-53.</p><p>31 Marco Vanzulli – com quem me agrada dialogar aqui em particular –</p><p>expressou eficazmente, em suas páginas, a questão dos fatores contingentes e</p><p>da causalidade na determinação viquiana dos caracteres dos povos, mas, talvez,</p><p>tenha supervalorizado a força explicativa que, no discurso de Vico, podia assumir</p><p>sozinho o “como” ou o “onde” histórico: “Determinando as diferentes histórias das</p><p>nações, aqui, por exemplo, da grega e da romana, existem, portanto, inalienáveis</p><p>elementos de contingência constitutivos, que, na realidade, também fornecem</p><p>quase tudo que indica a identidade de um povo: como (onde, em que condições</p><p>históricas) um povo surge explica que coisa um povo se tornou, a história ideal</p><p>eterna. Deve-se recordar, além disso, que poucos povos percorreram todo o ciclo,</p><p>alcançaram desenvolvimento pleno, sujeitos à causalidade do existir, tal como os</p><p>indivíduos” (VANZULLI, M. Caso e necessità nella nuova scienza vichiana. Quaderni</p><p>materialisti, Milano, v.I, 2002, p.13).</p><p>100 • Enrico Nuzzo</p><p>particulares das nações gentias, que, de outro modo, o seu sistema</p><p>teórico, a partir somente das suas tão extraordinárias “descobertas”,</p><p>não teria sabido dar conta. As causas geográficas (dali a pouco as</p><p>causes physiques de Montesquieu) constituiriam a esfera opaca do</p><p>natural, do corpóreo, de onde também surgiam, em tantas partes, os</p><p>caracteres daquelas nações, por isso, tornadas muito semelhantes pela</p><p>sua “comum natureza”. Mas aquela esfera das relações entre a natureza</p><p>espacial e o humano, espaço determinado literalmente por caracteres</p><p>espaciais e opaco em sua essência contingente, apesar disso, havia</p><p>sido esclarecida como um sistema estável de constâncias por uma</p><p>antiquíssima tradição teórica. A ela Vico recorria “naturalmente”,</p><p>como a um saber “dado” e de desnecessária tematização metódica,</p><p>que não exigia ser submetido aos questionamentos e procedimentos</p><p>“desconstrutivos” que despedaçaram tantas opiniões absurdas</p><p>tradicionalmente consolidadas sobre os “tempos obscuros”. No fundo</p><p>não resultava obscuro, porque estava ancorado em um determinado</p><p>espaço, naquele remoto tempo genético que havia produzido “tais e</p><p>não outros” caracteres determinados das nações.</p><p>Todavia, o pensador napolitano, recorrendo decisivamente à</p><p>tradição teórica das causas naturais, geográficas, dos caracteres das</p><p>nações, encurvava também ela na direção de êxitos bastante originais</p><p>e atestava um interesse pela esfera da causalidade natural, e pelo</p><p>relacionar-se humano com o espaço, que os estudiosos de Vico –</p><p>pensador do “tempo” por excelência – tendem facilmente</p><p>a negligenciar</p><p>e ofuscar. De fato, aquela tradição não somente era chamada a</p><p>colaborar, com uma peculiar “história geográfica das nações”, na</p><p>exposição da história universal da humanidade, da civilização. Ponto</p><p>sobre o qual voltaremos brevemente, ela exprimia também a atenção</p><p>a um gênero de explicações científicas (como, por exemplo, a da</p><p>aquisição da estrutura gigantesca das gerações dos homens errantes e</p><p>dispersos nas selvas por meio do seu “arrastar-se” nas próprias fezes)</p><p>e, ainda mais profundamente, se vinculava a um interesse original pelo</p><p>relacionar-se dos homens com as formas espaciais. Um relacionar-se</p><p>reconstruído a partir de uma inédita exploração psicoantropológica das</p><p>relações entre o homem e o “outro espacial”: dando lugar assim a uma</p><p>aguda “antropologia do espaço”, por assim dizer, à consideração das</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 101</p><p>condições espaciais constitutivas de estruturas psicoantropológicas</p><p>bem precisas (como aquela que, em outro lugar, defini como a singular</p><p>“antropologia do mar” viquiana).32 Um relacionar-se reconstruído,</p><p>depois, por uma investigação tendencialmente sistemática dos</p><p>“lugares” do humano e das formas “progressivas” do seu habitar.</p><p>Como foi dito nos inícios deste contributo, a vertente, ou</p><p>linguagem, das “causas geográficas” – sobre a qual se concentra a parte</p><p>final deste texto – é somente uma das três principais sobre as quais, a</p><p>meu ver, pode ser perseguida a temática dos caracteres dos povos na</p><p>tradição ocidental e no próprio Vico, e será necessário dizer algumas</p><p>coisas sobre isso.</p><p>Como se sabe, o sistema de teorias e análises relativo às</p><p>influências climáticas e, mais geralmente, geográficas, continuou a</p><p>ser por longo tempo, até o Settecento, o eixo predileto para explicar</p><p>os fenômenos de individualidade dos caracteres dos povos no que diz</p><p>respeito a outras mais gerais legalidades. Além disso, não como simples</p><p>vicissitude desse sistema, mas tornando-o de relevante interesse</p><p>historiográfico e também teórico, nele era debatido uma série de</p><p>importantes nós temáticos problemáticos: a relação entre “individual”</p><p>e “universal”; entre “espacialidade” e “formas identitárias” de caráter</p><p>étnico, linguístico, político etc.; mais em geral, entre “natureza” e</p><p>“cultura”, ou também entre “ambiente” e “vida humana”.</p><p>Isto é largamente conhecido, deve-se dizer, e há uma grande</p><p>quantidade de literatura crítica enfrentando semelhante temática.</p><p>Mas não se dispõe de uma obra que enfrente sistematicamente, ade-</p><p>quadamente, as vicissitudes da reflexão em torno dos fatores “geo-</p><p>gráficos” e caracteres dos povos.33 A coisa provavelmente se deve,</p><p>32 Sobre os caracteres, momentos e exemplos desta “antropologia do mar” indico:</p><p>NUZZO, E. Spazi e tempi del Mediterraneo nella storia vichiana della civiltà. Il</p><p>“Diritto Universale”. Bollettino del Centro di Studi Vichiani, Roma, v.XXXIX, n.2, p.7-</p><p>69, 2009.</p><p>33 Pode assumir a função de útil esboço, sobre vários pontos, o aprazível livro de</p><p>um consistente e curioso geógrafo, cujo título, contudo, anuncia já seus limites:</p><p>PINNA, M. La teoria dei climi. Una falsa dottrina che non muta da Ippocrate a Hegel.</p><p>Roma: Società geografica italiana, 1988. Por outro lado, vai além daquilo que</p><p>promete o subtítulo, o robusto trabalho, em vários versos fascinante, de VASAK,</p><p>A. Météreologies. Discours sur le ciel et le climat, des Lumières au Romantisme.</p><p>Paris: Champion, 2007. Esta não pode constituir, porém, a obra completa de que</p><p>102 • Enrico Nuzzo</p><p>em primeiro lugar, à vastidão e dificuldade de tal empresa, pode-se</p><p>dizer. Porque ela exige não só o estudo analítico de uma “linguagem”</p><p>não unilinear e não unilateral (já que, além da vertente “geográfico-</p><p>-climática”, a “linguagem geográfica” mais geral compreende também</p><p>outras, como logo será dito), mas exige também o estudo de outras</p><p>linguagens, bem distintas daquela geográfica, embora várias vezes</p><p>com ela implicadas: como a “religiosa” e a “política”, principalmente.</p><p>De fato, no estudo da enorme constelação problemática e temática</p><p>pertinente aos caracteres das nações se distinguem bem diferentes</p><p>tradições, hermeneuticamente configuráveis como verdadeiras e</p><p>próprias “linguagens” dotadas de uma relativa autonomia e evolução</p><p>conceitual. Começo a enunciar as três linguagens que, a propósito,</p><p>me parecem mais importantes na história do pensamento ocidental,</p><p>discorrendo sobre elas de acordo com dois distintos planos, definí-</p><p>veis em termos contemporâneos, de uma ordem “natural” e de uma</p><p>ordem “cultural”.</p><p>Ao primeiro é fácil remeter uma linguagem geral de caráter “ge-</p><p>ográfico”, a qual, por sua vez, será subdividida em três diretrizes bem</p><p>determinadas, cujas duas primeiras foram assumidas por Vico, como</p><p>por tantos outros autores da sua época. É oportuno abordá-las preli-</p><p>minarmente com a máxima concisão, antes de passar a uma ainda mais</p><p>concisa apresentação das outras duas linguagens principais com cujos</p><p>termos foram pensados, representados, os caracteres dos povos.34</p><p>seria importante dispor visando, sobretudo, à constituição da meteorologia como</p><p>ciência e, portanto, também, aos seus antecedentes longínquos.</p><p>34 Apresento algumas sóbrias anotações sobre esta linguagem em um recente</p><p>estudo meu: NUZZO, E. Mediterraneo e caratteri dei popoli. Paradigmi della misura</p><p>alle origini del modello “etno-geografico-climatico”. In: BUFALO, R.; CANTARANO,</p><p>G.; COLONNELLO, P. (orgs.). Natura storia società. Studi in onore di Mario Alcaro.</p><p>Milano-Udine: Mimesis, 2010, p.109-145. Diversas páginas suas refluem no</p><p>presente texto, e o indico como esboço de uma primeira trajetória na teoria dos</p><p>climas e dos caracteres dos povos, de Hipócrates a Aristóteles. Um desenho mais</p><p>amplo da conceituação das relações entre fatores naturais climáticos e caracteres</p><p>dos povos, que se estende a boa parte da antiguidade, está no livro de SASSI, M. M.</p><p>La scienza dell’uomo nella Grecia ântica. Torino: Bollati Boringhieri, 1988. Sobre o</p><p>período settecentesco, em particular “napolitano”, foi publicado já um breve estudo</p><p>meu sobre Filangieri: NUZZO, E. Tra geografia e storia. Caratteri delle nazioni e</p><p>identità patrie in Gaetano Filangieri. In: AMODIO, P.; D’ANTUONO, E.; GIANNINI,</p><p>G. L’etica come fondamento. Scritti in onore di Giuseppe Lissa. Napoli: Giannini</p><p>Editore, 2012, p.25-32.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 103</p><p>A primeira diretriz – tematizando temperamentos, índoles, dos</p><p>indivíduos e dos povos – se pode definir “antropo-étnico-climática” ou</p><p>“médico-antropológico-climática” (enquanto se constitui a partir de</p><p>uma “matriz hipocrática”, como se sabe, e depois largamente retomada</p><p>e remodelada por autores como Galeno).</p><p>Uma segunda diretriz refere-se às condições materiais</p><p>espaciais-geográficas de tipo não climático, ou não diretamente</p><p>climático (caracteres mais reentrantes nas jurisdições disto que, em</p><p>termos a nós vizinhos, se denomina geografia do território, geografia</p><p>econômica etc.): às extensões, configurações (relevos, planícies etc.)</p><p>e caracterizações dos espaços geográficos segundo fatores tais como</p><p>os recursos produtivos, a sustentabilidade demográfica, a colocação</p><p>e caracterização de tipo estratégico, com formas, portanto, de maior</p><p>influência do “natural” sobre o “político” por meio da mediação dos</p><p>costumes. Em tal sentido, nessa diretriz, há uma forte abertura para</p><p>relacionar, ou relacionar mais fortemente, o elemento espacial com</p><p>aquele temporal humano, com o “tempo histórico”.</p><p>Uma terceira diretriz da linguagem geográfica pode ser definida</p><p>no “discurso astrológico” ou “astro-antropo-etnográfico”, plenamente</p><p>amadurecido no curso da idade clássica (óbvio recordar Ptolomeu)</p><p>e retornado com máximo vigor, em unidade com o “discurso mágico”</p><p>congênere, no Renascimento, mas já no tempo de Vico quase comple-</p><p>tamente superado (mas ainda presente, não por acaso, pelo menos na</p><p>versão de um sistema de pensamento, naquele de Bodin, frequentado</p><p>seguramente por ele).</p><p>e singulares dos povos e, principalmente,</p><p>excedem os “princípos ideais e eternos”, aquela “natureza comum” das</p><p>nações descoberta pela razão dos filósofos. O capítulo escrito por Nuzzo</p><p>tem a virtude de destacar do complexo dessas causas, além daquelas</p><p>habituais causalidades sacras e históricas, também um conjunto de</p><p>causas naturais, físicas ou, como ele precisará melhor, “geográfico-</p><p>climáticas”. A tese de Nuzzo é sui generis no quadro dos estudos</p><p>viquianos na medida em que, se não refuta, com certeza problematiza</p><p>tópicos importantes da clássica tese, defendida por Piovani, da filosofia</p><p>sem natureza de Vico. Nas páginas aqui publicadas Nuzzo expõe outra</p><p>perspectiva fundamental da “humanologia” viquiana: a presença e a</p><p>atuação dos fatores físico-naturais ou relativos à geografia, ao clima e</p><p>ao meio-ambiente ali onde se desenrola a história, o factum das nações.</p><p>Ele mostra, com base numa bem documentada análise, que Vico,</p><p>durante a elaboração da sua scienza, não esteve atento só aos filósofos</p><p>políticos (opostos aos ditos monásticos), mas teria colhido inspirações</p><p>valiosas também naquelas teorias “naturalistas” que desde a época</p><p>clássica entendiam as características étnicas, astrológicas e médicas</p><p>dos povos, bem como aquelas relativas à sua índole e engenhosidade</p><p>– que estreitamente influenciam suas formas de governo – mediante a</p><p>alusão à causas físico-espaciais, climáticas e geográficas.</p><p>A relação entre natureza e cultura, tão cara a Vico, permeia</p><p>também os argumentos dos dois últimos capítulos desta primeira</p><p>parte. O capítulo de Humberto Guido reconstrói, passo a passo, o</p><p>percurso teórico que permite ao leitor, retrospectivamente, descobrir</p><p>nas primeiras obras de Vico, especialmente no De ratione e no De</p><p>12 • Humberto Guido | Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>antiquissima, a gênese da “metafísica” que alimenta a sua Scienza</p><p>nuova sobre da natureza das nações. Guido mostra o modo como as</p><p>reflexões de Vico na primeira década do Settecento acerca do estatuto</p><p>das ciências naturais e das matemáticas o levaram ao estabelecimento</p><p>de uma singular metafísica, baseada na “potência do entendimento” e</p><p>do factum, preparando as etapas seguintes de sua filosofia, sobremodo</p><p>a compreensão do mundo civil, ou das nações, enquanto mundo das</p><p>mentes humanas (metafísico) e então a própria história, a humanitas,</p><p>como um “eterna republica natural”. No capítulo seguinte e conclusivo</p><p>da seção, Sertório de Amorim analisa a “poética” de Vico, a começar pela</p><p>Oração Inaugural de 1709 (o De ratione) até se tornar, com a Scienza</p><p>nuova, o marco de uma inédita hermenêutica dos tempos primitivos.</p><p>Vico teria resgatado a poética da ruína do classicismo, após a querelle.</p><p>Professor de Retórica na Universidade de Nápoles, portanto,</p><p>ocupado com o ensino de uma disciplina que se mantinha há</p><p>séculos, desde a tradição latina, alinhada à arte poética, Vico teria</p><p>engenhosamente recuperado três importantes artes poéticas da</p><p>antiguidade (de Aristóteles, Horácio e Longino) e, com os olhos no</p><p>início do Século XVIII, extraído dessas leituras algo além dos preceitos</p><p>artísticos: a própria operação da mente ao criar o poema, ou ainda,</p><p>no caso da Scienza nuova mais propriamente, a sapienza poetica dos</p><p>primeiros legisladores das nações. O estudo de Amorim apresenta as</p><p>facetas da transformação por que passou essa arte no âmbito da obra</p><p>viquiana: ela deixaria de ser uma técnica de composição literária para</p><p>se tornar “metafísica da mente humana”, investigação meta-física do</p><p>ânimo humano em sua etapa primitiva, infantil, e de sua lógica poética.</p><p>Não parecerá fortuita a localização desses dois capítulos,</p><p>inseridos na conclusão da primeira seção do livro, já que, discorrendo</p><p>mais atentamente sobre o sentido da metafísica viquiana, de certo</p><p>modo eles prepararam a seção seguinte. A segunda parte desta</p><p>antologia – intitulada Metafísica e Modernidade –, coloca em evidência</p><p>um par temático fundamental àquele outro de natureza e história,</p><p>que foi o eixo norteador da primeira seção e o ponto de confluência</p><p>ideal deste volume como um todo. Filho do próprio tempo (da Idade</p><p>Moderna, na passagem do Século XVII para o XVIII), Vico não pôde</p><p>negligenciar aquela que era, na época, a disciplina filosófica por</p><p>Prefácio • 13</p><p>excelência. Se, por um lado, empenhou esforços na instauração de</p><p>uma metafísica própria, igual aos filósofos racionalistas do período,</p><p>por outro lado, quase como uma preparação da “Filosofia das Luzes”,</p><p>adotou o ponto de vista eminentemente crítico e pôs por terra</p><p>importantes pilares da metafísica substancialista dos modernos.</p><p>Fabrizio Lomonaco inaugura a segunda seção com um rico</p><p>e bem documentado estudo sobre o “Livro metafísico” de 1710,</p><p>o De antiquissima. Lomonaco oferece um panorama global do De</p><p>antiquissima seja expondo suas teses principais ou sublinhando a</p><p>vasta teia de discussões filosóficas que ali opera como pano de fundo,</p><p>frequentemente sem ser percebida pelo leitor. Além disso, o capítulo</p><p>tem o evidente mérito de fazer emergir, dessa exposição global, as</p><p>inovações específicas que o napolitano acabaria introduzindo no</p><p>domínio da metafísica dos modernos. Partindo de uma meticulosa</p><p>reconstrução dos diálogos de Vico naquela obra (com o platonismo</p><p>e o cartesianismo da Nápoles, com Paolo Doria e a medicina dos</p><p>Investiganti) Lomonaco demonstra como o princípio do verum-factum</p><p>e a teoria do conatus, ou do “ponto metafísico”, impregnam a metafísica</p><p>com os contornos de uma ciência da “produção” e da “ação” da mens</p><p>humana divergente da doutrina escolástica da res, pois promotora da</p><p>“dessubstancialização do mundo”. Daí a razão de Vico não se dedicar</p><p>à escrita de um “Livro físico”; daí também não levar a termo o plano</p><p>do “Livro moral”, ou talvez, melhor, simplesmente redimensioná-lo,</p><p>animando-o com aquele interesse pela compreensão das modificações</p><p>da mens em seu constitutivo devir histórico, que o levaria, dez anos</p><p>depois, à escrita do De uno. O capítulo de Lomonaco, por tudo isso, nos</p><p>permite reavaliar o lugar do De antiquissima no contexto geral da obra</p><p>viquiana inaugurando como horizonte compreensivo uma terceira via</p><p>entre a secundarização pela qual o De antiquissima passou graças à</p><p>leitura idealista – e lembramos aqui sobretudo de Bertrando Spaventa</p><p>– e sua supervalorização a reboque da interpretação “kantiana” de</p><p>Stephan Otto e do “Vico barroco”.</p><p>Claudia Megale, em seguida, apresenta as grandes linhas da sua</p><p>tese sobre as latências do pensamento de Vico na psicologia dos Séculos</p><p>XIX e XX, especialmente em Jung e sua escola. Partindo também do De</p><p>antiquissima, Megale discute os significados da distinção viquiana –</p><p>14 • Humberto Guido | Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>herança das leituras de Lucrécio e do epicurismo – de anima e animus</p><p>e então, a partir de um rigoroso exercício comparatista, reencontra</p><p>conceitos e fórmulas análogos nas obras de Jung. O escrito de Megale</p><p>foca o núcleo anticartesiano do De antiquissima e, sobretudo, as</p><p>críticas ao cogito, com a expectativa de deduzir dali a imagem do</p><p>Vico descobridor do inconsciente, retratada antes por Enzo Paci. A</p><p>autora recupera certos argumentos de teor mais materialista do</p><p>De antiquissima, tais como as noções de anima e de animus como</p><p>movimentos do ar localizados no corpo, a suposição de que a alma</p><p>está no coração e não no cérebro, de que ela é princípio da vida e da</p><p>sensibilidade, e daí alude a tese viquiana da prevalência do corpóreo</p><p>e das sensações sobre a imaterialidade do cogito, que irrompe, do</p><p>meio desses argumentos, reduzido sob a forma imprecisa, nada clara</p><p>nem distinta, da “consciência”, signo obscuro e incompreensível do</p><p>meu ser. Por causa dessa “transfiguração” da res cogitans – podemos</p><p>concluir do interessante texto de Megale – Vico tornar-se-ia um dos</p><p>principais inspiradores da “psicologia do profundo”.</p><p>O capítulo seguinte, assim como os dois primeiros dessa seção,</p><p>propõe uma investigação a partir da metafísica do De antiquissima.</p><p>O texto de Rosario</p><p>Temos que admitir aqui a ação dos tempos natu-</p><p>rais astrais, tempos vicissitudinários constantes, mas também tempos</p><p>individuais (por meio das conjunturas), seja na forma dos fenômenos</p><p>astrais (eclipses particularmente), seja sobretudo na forma dos fenô-</p><p>menos, dos destinos, dos indivíduos (astrologia genetlíaca etc.) ou das</p><p>cidades, regiões, povos (astrologia universal etc.).</p><p>Do “tempo histórico” da gênese das estirpes, na dimensão do</p><p>“evento”, é constitutivamente caracterizada uma linguagem bem di-</p><p>versa, ou conjunto de tradições. Trata-se da linguagem que se pode</p><p>definir, em sentido estrito, “antropogônico”, caracterizado decisiva-</p><p>mente na cultura ocidental pelo discurso, tornado teológico, da cul-</p><p>tura hebraico-cristã: o discurso do nascimento das raças, das estirpes</p><p>104 • Enrico Nuzzo</p><p>e depois, então, dos caracteres dos povos, a partir de determinados</p><p>progenitores (Adão, Noé).</p><p>Em tal linguagem não é, contudo, unívoco e unilinear o nexo</p><p>natureza-cultura, que pareceria todo curvado sobre o plano do</p><p>tempo histórico, dos eventos cruciais que se dão no tempo: o dar-</p><p>se da progênie de Adão, da progênie de Noé, das descendências de</p><p>Sem, Jafé, Cam. Em tal diretriz, na “antropogonia” e na “etnogonia”</p><p>hebraico-cristã de matriz bíblica, de fato, o momento do dado histórico,</p><p>diacrônico (existe no início precisamente um evento), e, com esse,</p><p>do dado ético (derivante do diverso “caráter moral” do progenitor),</p><p>liga-se, pode ligar-se, a uma impostação ou a um êxito fixador de teor</p><p>absolutamente “naturalista”, consentindo que possa prevalecer enfim</p><p>o elemento “natural”: pensa-se obviamente nos empregos “racistas”</p><p>das histórias dos descendentes de Cam, ou Jafé, dos “semitas” e dos</p><p>“camitas”, nas caracterizações dos povos ligados às narrações de</p><p>eventos, de episódios históricos (os hebreus etc.).</p><p>Esta linguagem foi obviamente retomada por Vico sem</p><p>hesitações, mas não sem inovações, ao impor-lhe, junto com a distinção</p><p>fundamental entre história sacra e história profana, também o conjunto</p><p>de propostas, de análises, conseguintes à correlativa abordagem</p><p>monogenética da reconstrução da história da humanidade (derivada</p><p>inteiramente do tronco adâmico e depois das descendências de</p><p>Noé): em constante defesa dos ataques provenientes de um insidioso</p><p>poligenismo; mas também com uma obra original de diferenciação</p><p>das explicações monogenéticas prevalentes em termos do usual</p><p>“difusionismo” cultural caro aos “eruditos sacros” (Bochart, Huet etc.),</p><p>aos quais opunha um fundamental “poligenismo cultural”, de certo</p><p>modo correto em determinados contextos geográficos (principalmente</p><p>naqueles das áreas contíguas ao “Oriente sacro” dos hebreus, que iam</p><p>até o mar mediterrâneo).</p><p>Vico se propunha assim – com a riqueza das argumentações</p><p>desenvolvidas já no Diritto universale e particularmente do De Constantia</p><p>– trazer juntas uma essencial teoria de não ímpio “poligenismo cultural”</p><p>(qualquer nação, em linha de máxima, sendo capaz de desenvolver-se</p><p>sozinha ao longo de todas as sequências da história ideal eterna) e uma</p><p>visão subordinada de formas contidas de “propagacionismo cultural”,</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 105</p><p>de propagação da humanitas (especialmente, nos inícios, mediante</p><p>relações conotadas por um elemento de conflitualidade presente nas</p><p>guerras, mas também nas transmigrações marítimas dos fâmulos).</p><p>Desse modo, por um lado, combatia as teses ímpias de absoluto</p><p>“poligenismo” (à La Peyrère) correlatas à hipótese, sustentada pelos</p><p>chineses, da enorme antiguidade do mundo; tese mais do que ofuscada</p><p>pela percepção de que os gregos escaparam ao dilúvio, protegendo as</p><p>“ciências antidiluvianas”. Por outro lado, tomava partido abertamente</p><p>contra os “Eruditos cristãos” (fácil notar a referência à figuras como as</p><p>de Samuel Bochart, Daniel Huet etc.) que marcadamente pretendiam</p><p>encontrar em todas as expressões culturais doutas difusas pelo</p><p>Mediterrâneo (egípcios, fenícios, gregos etc.) a velada sobrevivência ou</p><p>ecos da sabedoria hebraica, da Mosis schola. Nesse sentido, a separação</p><p>entre “história sacra” e “história profana” (com efeito, nada absoluta</p><p>no plano metódico) desvinculava a máxima parte do desenvolvimento</p><p>das nações gentias da história do povo hebreu, contradizendo, pela</p><p>raiz, as teses essenciais daqueles estudiosos pios, segundo os quais as</p><p>doutrinas e figuras mais antigas e renomadas dos gentios ecoavam, de</p><p>modo deturpado, corrompido, pálido, veladamente, verdades e figuras</p><p>expressas nas Sagradas Escrituras.35</p><p>No plano mais estritamente histórico se deve reportar ainda a</p><p>uma terceira “linguagem”, que tem a ver com os caracteres das nações,</p><p>a outra tradição, em diversos níveis, mais longeva e difusa do que</p><p>aquela climática. Trata-se da “tradição política” das meditações sobre o</p><p>legislador (o fundador, mais ou menos filósofo) ou também, mais em</p><p>geral, sobre o elemento ético-político-jurídico (costumes, leis etc.).</p><p>Nesse caso, porém, o nexo com os caracteres das nações é bem mais flébil</p><p>e muito mais mediado. Na realidade, no discurso “ético-político” – já na</p><p>idade clássica, mas especialmente na tratatística política moderna – os</p><p>35 Retomo aqui as indicações críticas de um outro estudo de minha autoria, já</p><p>citado: NUZZO, 2009, p.7-69. Nesse estudo, e já noutro precedente, intitulado:</p><p>Gli “Sciti” e i “Chinesi” di Vico. In: ARMANDO, D.; MASINI, F.; SANNA, M. (orgs.).</p><p>Vico e l’Oriente: Cina, Giappone, Corea. Roma: Tiellemedia, 2008, p.301-35, iniciei</p><p>uma série de análises sobre as reconstruções que o pensador napolitano elaborou</p><p>das vicissitudes e da função dos caráteres de uma série de nações (caldeus, citas,</p><p>chineses, etruscos, egípcios, fenícios, cretenses, gregos etc.) na laboriosa obra de</p><p>preparação de uma verdadeira e própria história da civilização.</p><p>106 • Enrico Nuzzo</p><p>fatores fundadores e conservadores, que operam sobre as estruturas</p><p>políticas, investem inicialmente os caracteres das nações particulares</p><p>(de Minos, Licurgo, Sólon, Rômulo etc., são largamente forjados os</p><p>caracteres dos cretenses, dos atenienses, dos romanos); mas eles são</p><p>fortemente “generalizáveis”, e a ação exemplar de um legislador é, em</p><p>linha de máxima, reprodutível universalmente em outras situações</p><p>favoráveis, organizando outras cidades e nações. Daí, portanto, o</p><p>caráter dos diversos povos resulta frequentemente devedor, na história</p><p>da cultura ocidental, de elementos que podem ser reconduzidos mais</p><p>estritamente ao plano do agir histórico, “histórico-político”.</p><p>Pois bem, esse tipo de linguagem histórica, com efeito, “histórico-</p><p>político” – que tantas vezes atravessa, ou sustém, as discussões sobre as</p><p>formas de governo na cultura ocidental e as tentativas de construir uma</p><p>ciência dos fenômenos políticos (tentativas constitutivamente expostas</p><p>à falência, ou ainda, à recaída em inacabadas e intermináveis casuísti-</p><p>cas) –, se não faltou aflorar nas páginas de Vico (como no De uno), estava</p><p>destinada a ser totalmente ultrapassada pela sua ciência do mundo his-</p><p>tórico: uma ciência que colocava como objeto a totalidade dos fenôme-</p><p>nos humanos; que definia como sujeitos históricos, na sua maior parte,</p><p>os sujeitos coletivos, aos quais eram reconduzidos, também, os heroi-</p><p>cos fundadores de cidades, povos e formas de governo; que fazia nas-</p><p>cer espontaneamente as formas políticas dos conflitos entre os grupos</p><p>sociais, e não do arranjo atemporal das paixões humanas, muito menos</p><p>do cálculo racional dos fundadores dos povos e comunidades políticas.</p><p>Provavelmente ninguém como Vico, que também se fazia o máximo</p><p>protetor dos antigos dotes da prudência política (e também cauteloso</p><p>admirador até mesmo de superadas “míticas” formas políticas nascidas</p><p>da virtude daquela prudência36), trabalho tanto em seu tempo para a su-</p><p>peração da linguagem fechada do “histórico-político”. Ainda que, como</p><p>sempre, consultando os mais diversos materiais, também e sobretudo,</p><p>naquelas tradições ele podia consultar e confirmar sua recuperação</p><p>das</p><p>teorias sobre os nexos irrefreáveis entre formas políticas-costumes-ca-</p><p>racteres dos povos e causas naturais geográficas.</p><p>36 Sobre o tema remeto, sobretudo, a NUZZO, E. Vico e il “mito veneziano”. In: DE</p><p>MICHELIS, C.; PIZZAMIGLIO, G. (orgs.). Vico e Venezia. Firenze: Olschki, 1982,</p><p>p.199-222.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 107</p><p>III</p><p>Em uma investigação que cubra todo o arco da meditação</p><p>viquiana sobre a variedade e a vinculação dos fatores causais dos</p><p>fenômenos históricos dever-se-ia proceder a uma reconstrução</p><p>analítica já dos primeiros movimentos, nela, da reflexão sobre os</p><p>caracteres das nações.</p><p>Pelo momento, limito-me a chamar a atenção sobre dois</p><p>pontos já aflorados nas orações inaugurais. O primeiro diz respeito</p><p>a um exemplo precoce de ricorso – dentro de um discurso que</p><p>investia sobre os caracteres de alguns povos do mundo antigo</p><p>e daquele moderno –, também a condições gerais de caráter</p><p>geográfico para explicar a robusteza e a feliz duração de potentes</p><p>instituições políticas. Nesse sentido, pode-se recordar o apelo</p><p>às Sinenses na Oratio V de 1705, que tinha por objeto a questão</p><p>– tão congruente à inspiração “humanista” das Orationes – da</p><p>superior ou menor diginitas da “res literaria” ou da “res militaris”</p><p>respectivamente. A tese não inédita segundo a qual “Res publicas</p><p>tum maxime belli gloria inclytas et rerum imperio potentes, quum</p><p>maxime literis floruerunt” exigia que viessem rejeitadas as objeções</p><p>fundadas nos casos históricos de gentes e grupos políticos potentes</p><p>pouco ou nada dedicados às letras (espartanos e cartagineses na</p><p>antiguidade, turcos no mundo moderno), tendo em vista a existência</p><p>de exemplos, por sua vez, contrários. Eis que, refutadas aquelas</p><p>objeções, enquanto para o mundo antigo (no qual se mostraram</p><p>“agudíssimos” os atenienses) vinha reivindicada a congruência das</p><p>guerras dos romanos com o direito humano e divino das gentes</p><p>(um tema já importante de reflexões era o fato de que um povo não</p><p>definido pela preeminência de uma práxis letrada não se afastasse</p><p>do justo), para o mundo contemporâneo, por outro lado, vinha</p><p>legado unicamente o eloquente exemplum dos chineses. Bem, o</p><p>seu “maximum et beatissimum imperium” era devido, com efeito,</p><p>a uma série de condições “histórico-políticas” (ser instruídos nas</p><p>letras e retamente governados por instituições pacíficas, adversas</p><p>à guerra), mas também ao fator material de ser naturalmente</p><p>protegidos pela vastíssima extensão de seu território, além das</p><p>108 • Enrico Nuzzo</p><p>fortificações militares constituídas pelo grande murus, superados</p><p>depois pelos Citas.37</p><p>Mas as Orationes apresentam páginas interessantes sobre o tema</p><p>da “identidade pátria” em Vico, vertente da qual não se pode prescindir</p><p>a fim de perseguir os complexos processos por meio dos quais se</p><p>afirmou e mudou uma constelação de sentidos de pertencimento,</p><p>mais ou menos intrincados a formas dinâmicas de conceituação, que</p><p>acompanhava e contracenava com importantes teses ou enunciações</p><p>teóricas essenciais: das iniciais (depois profundamente mudadas,</p><p>mas nunca totalmente abandonadas) expressões de “patriotismo</p><p>itálico” às intensas declarações de um “universalismo” mais generoso</p><p>que as usuais posições cosmopolitas. Também o tão retórico excursus</p><p>da IV Oratio sobre a “pátria” napolitana pode resultar interessante</p><p>para a representação de uma série de bem compatíveis identidades</p><p>pátrias: aquela da cidade de Nápoles de antiquíssima fundação e</p><p>de extraordinária benignidade das condições climáticas, com um</p><p>“genium loci” que consentiu que “indigenae docilissimi, ingeniosissimi,</p><p>fortissimique nascantur” (o que significava violar, em pelo menos</p><p>alguns aspectos, o mais difuso estereótipo do “napolitano” já afirmado</p><p>ou em vias de afirmação), àquela da Itália, uma “terra” que detêm</p><p>“principatum religionis” com relação a “reliquas omnes orbis terrarum</p><p>gentes nationesque”, até aquela do potente imperium hispânico com o</p><p>qual a pátria meridional felizmente se juntou.38</p><p>Além do mais, cabe perseguir analiticamente como diversos</p><p>sentimentos de pertencimento, cifras identitárias (e materiais teóricos</p><p>concernentes) deram-se, e puderam também conviver tranquilamente,</p><p>em Vico: o sentimento de pertencimento, em verdade bem contido,</p><p>propriamente “cidadão”, do “napolitano”;39 aquele relativo à “pátria</p><p>estatal” do Reino, com o registro de expressões comuns do princípio da</p><p>37 VICO, G. Oratio V. In: ______. Le orazioni inaugurali, I-VI. Organização e tradução</p><p>italiana de G. Visconti. Bologna: Il Mulino, 1982, p.166, 182.</p><p>38 VICO, G. Oratio IV. In: ______. Le orazioni inaugurali, I-VI. Organização e tradução</p><p>italiana de G. Visconti. Bologna: Il Mulino, 1982, p.153-154.</p><p>39 Vico esteve muito interessado em introduzir Nápoles também em um discurso de</p><p>tipo comparatista. Sobre os últimos êxitos, do “Vico maduro”, na reconstrução das</p><p>origens fenícias e gregas de Nápoles, na esteira de suas teorias sobre as “colônias”</p><p>no Mediterrâneo: Cf. Sn44, §304, p.534.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 109</p><p>lealdade dinástica; aquele relativo a uma identidade pátria, histórico-</p><p>cultural, “italiana”, linguística em primeiro lugar, bem distinta daquela</p><p>da herança “itálica”; aquele pertinente a um identidade “europeia”</p><p>(que de jure não contradizia a impostação universalista da “história</p><p>ideal eterna” e da história factual da civilização humana) afirmada</p><p>seja no plano do sentido “eurocêntrico” do pertencimento à área onde,</p><p>na modernidade, foram obtidas as maiores conquistas da “razão”, da</p><p>“equidade” própria ao homem, seja no plano de um destacado sentido</p><p>“classicista” de pertencimento à “república das letras”.</p><p>Mas antes de ir rapidamente para a configuração dos caracteres</p><p>dos povos antigos, implicados na temática da antiga sabedoria itálica,</p><p>portanto, no De antiquissima, vale dirigir a atenção, por um momento,</p><p>sobre as primeiras decisivas e bem conhecidas enunciações em</p><p>torno dos caracteres das nações implicadas na reflexão epistêmico-</p><p>metodológica-pedagógica do De ratione, e ainda mais sobre o motivo,</p><p>de notável relevo, da fundação cultural e particularmente linguística</p><p>das índoles das nações afirmado decisivamente naquele texto.</p><p>Neste sentido, em páginas importantes do De ratione, a</p><p>contraposição da peculiaridade intelectual, literária do ingenium</p><p>italiano, da índole da nação italiana frente aquela francesa (com a</p><p>comparação entre racionalidade “geométrica” francesa e “engenho”</p><p>italiano e espanhol), era acompanhada da teorização – sustentada</p><p>por “summis philosophis” – de que “linguis ingenia, non linguas</p><p>ingeniis formari” (afirmação “intensificada” pela tradução segundo a</p><p>qual “a índole dos povos se formam com as línguas e não as línguas</p><p>com as índoles”); afirmação que, se pode supor, ecoava não somente</p><p>uma genérica antiga tradição, mas o enunciado preciso de Isidoro de</p><p>Sevilha: “Ex linguis gentes, non ex gentibus linguae exortae sunt”.40 Daí,</p><p>então, baseada em sua língua imaginativa, a declaração do absoluto</p><p>primado dos italianos em todas as artes (“uni Itali pictura, sculptura,</p><p>architectura, musica omnibus orbis terrarum nationibus praestiterunt”)</p><p>e o desenho histórico-literário da riqueza da língua italiana (por meio</p><p>da evocação de Guicciardini, Boccaccio, Petrarca, Ariosto, Tasso)</p><p>demonstrando o quanto aquela língua “beatíssima”, a ponto de tornar</p><p>40 ISIDORO DI SIVIGLIA, Etymologiae, IX, I, 11.</p><p>110 • Enrico Nuzzo</p><p>a italiana a nação mais rica em agudeza após a espanhola (“unde Itali</p><p>post Hispanos acutissimi nationum”), era extremamente apta a efetivar</p><p>um saber voltado para a eloquência da vida civil, ao contrário daquela</p><p>“sutilíssima” dos “Gálios”, voltada às sutilezas da análise matemática.41</p><p>Mais adiante, pode-se antecipar – amadurecido o quadro</p><p>conceitual da nova ciência das nações (portanto, também, o tema</p><p>constante da possível assimetria dos tempos históricos das diferentes</p><p>nações em relação aos “justos passos” do seu curso</p><p>“natural”) – a</p><p>característica da “língua delicadíssima” francesa como sendo derivada</p><p>da “imatura passagem da barbárie às ciências mais sutis”, expressa</p><p>no fato (também a ela conseguinte) de que “em meio à barbárie de</p><p>mil e cem é aberta a famosa escola parisiense, onde o célebre mestre</p><p>das sentenças Pedro Lombardo se pôs a ensinar a sutilíssima teologia</p><p>escolástica”. O caso do percurso da civilizadíssima “nação francesa”</p><p>(civilizadíssima nação tida por Vico como a mais refinada de uma</p><p>unitária comunidade cultural europeia), conduzida precocemente</p><p>a um exercício teórico altamente reflexivo, a um pensamento</p><p>“sutilizado”, a uma “crítica metafísica e de álgebra”, duplicava o caso</p><p>dos gregos, cujos “filósofos apressaram o curso natural que deveria</p><p>fazer sua nação, surgindo quando era ainda crua a sua barbárie,</p><p>passando imediatamente a uma suma delicadeza e, ao mesmo tempo,</p><p>conservando inteiras as suas histórias fabulosas”.42 Nos dois casos,</p><p>um fenômeno cultural, o acontecimento precoce de um pensamento</p><p>altamente reflexivo, é apresentado como o fator de aceleração do</p><p>processo histórico normal, o do caminho percorrido “com justo passo”</p><p>pelos romanos. E fica, todavia, a interrogação (que Vico não parece</p><p>interessado em formular e nem em solucionar) do porque nessas</p><p>duas nações não possa se afirmar um assim inusitado pensamento,</p><p>tão “delicadamente” agudo: a menos que a nativa disposição desses</p><p>povos – muitas vezes, em outros contextos, afirmada e assumida –</p><p>não ajude a explicar substancialmente aquele fenômeno, reportando,</p><p>41 VICO, G. De nostri temporis studiorum ratione. In: ______. Opere. Organização de</p><p>Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990, p.140-142.</p><p>42 Sn44, §158, 159, p.501-502. “A nossa França” é a “Grécia deste nosso Mundo</p><p>presente”, assim havia escrito Vico numa carta de 1726 a Eduard de Vitry (Cf. VICO,</p><p>G. Epistole. Organização de Manuela Sanna. Napoli: Morano, 1992, p.131).</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 111</p><p>ainda uma vez, à cadeia causal impressa pelos condicionamentos</p><p>naturais, físicos, climáticos.</p><p>Mas é preciso retroceder e retomar, na íntegra, uma breve</p><p>passagem do De antiquissima sobre o tema das nações, texto em que</p><p>esse tema era assumido nos termos – definível em seu conjunto como</p><p>“patriótica-intelectual-filosófica” e “patriótica-itálica” – da tradição da</p><p>antiquíssima sabedoria itálica.43 Tradição apresentada centralmente</p><p>naquele texto, mas residualmente presente, também, na produção</p><p>sucessiva do filósofo napolitano com a confirmação do caráter</p><p>decisivo de pelo menos alguns elementos (como a primazia dos povos</p><p>itálicos sobre os gregos em um desenvolvimento cultural devedor</p><p>dos egípcios e dos fenícios), ainda quando a meditação viquiana</p><p>havia se libertado, com a drástica crítica à “soberba” das “nações” e</p><p>dos “doutos”, do princípio racionalista “genealógico-especulativo” que</p><p>epistemologicamente governava aquela tradição.</p><p>É esse, em particular, o caso dos etruscos, que Vico teria retomado</p><p>a fim de repropor, mesmo em um contexto conceitual já radicalmente</p><p>transformado, o nexo entre egípcios e civilização da Etrúria sobre o qual</p><p>se havia extensamente discorrido, em chave de “patriotismo itálico”, no</p><p>Proemium do De antiquissima e, depois, na chamada Seconda Risposta.</p><p>No Proemium do livro de 1710, o autor havia qualificado os jônicos e os</p><p>etruscos como duas “doctae nationes” e os segundos, marcadamente,</p><p>como uma “eruditissima gens”, a qual havia precedido os gregos nos</p><p>saberes mais essenciais.44 Na conhecida Seconda Risposta, de 1712, a</p><p>precedente “forte conjectura de que na Itália existissem letras muito</p><p>mais antigas que as gregas” havia sido transformada no cerrado intento</p><p>demonstrativo de que aqueles saberes proviessem do “grandíssimo</p><p>império” florescente no Egito: “porque coisa verossímil ou mesmo</p><p>necessária é que os egípcios, assenhoreando todo o mar interno,</p><p>facilmente pelas suas margens teria subtraído colônias e assim, para a</p><p>Toscana, levado a sua filosofia”.45</p><p>43 NUZZO, E. La tradizione filosofica meridionale. In: AAVV. Storia del Mezzogiorno.</p><p>Napoli: Edizioni del Sole, vol.X, tomo III, 1992, p.24 et seq.</p><p>44 VICO, G. De antiquissima italorum sapientia. In: ______. Opere filosofiche.</p><p>Organização de Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze:</p><p>Sansoni, 1971, p.57-59.</p><p>45 VICO, G. Risposta di Giambattista Vico all’articolo X del tomo VIII del</p><p>112 • Enrico Nuzzo</p><p>A prioridade dos etruscos em relação aos gregos na prática</p><p>dos conhecimentos e artes aprendidos dos egípcios (cujos superiores</p><p>saberes práticos, particularmente no campo da navegação, também</p><p>os fenícios, pelo menos em um primeiro momento, apresentaram-</p><p>se como devedores) e depois transmitidos aos romanos, teria sido</p><p>valorizada no Diritto universale, antes de vir diminuído pelo interesse</p><p>pelos “toscanos” na primeira edição da Scienza nuova. Mas dentro</p><p>de um quadro teórico que já, antes disso, modificava radicalmente</p><p>aqueles caracteres e significados. Realmente, sobretudo a partir do De</p><p>constantia, o decisivo redimensionamento da longínqua antiguidade,</p><p>inclusive das nações mais doutas, impedia projetar a obtenção e</p><p>a transmissão de saberes não elementares em uma remotíssima</p><p>antiguidade imersa “na puerícia do mundo”, e que devia responder às</p><p>urgentes exigências da “necessidade” e não, certamente, às solicitações</p><p>do “prazer” ou do “cômodo”.46</p><p>A recordação de aspectos precisos da abordagem das gentes</p><p>do mediterrâneo no Vico do De antiquissima parece oportuna nesse</p><p>discurso, não tanto para evocar uma bem conhecida mudança de</p><p>perspectiva epistêmica e crítica, quanto para manifestar a importância</p><p>de reconstruir acuradamente os materiais, os motivos, as “linguagens”,</p><p>que teriam confluído no complexo arranjo da ciência das nações e dos</p><p>seus caracteres, cuja elaboração havia sido já potentemente preparada</p><p>no Diritto universale, particularmente no De constantia. Nesse sentido,</p><p>os materiais relativos à “propagação cultural” elaborados no tempo</p><p>do De antiquissima foram depois utilizados, mesmo que no interior de</p><p>uma perspectiva crítica bastante remexida, adaptando-se ao objetivo</p><p>“Giornale de’ Letterati d’Italia” (1712). In: ______. Opere filosofiche. Organização</p><p>de Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze: Sansoni, 1971,</p><p>p.147, grifo meu.</p><p>46 VICO, G. Sinopsi del diritto universale (1721). In: ______. Opere giuridiche.</p><p>Organização de Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze:</p><p>Sansoni, 1974, p.7. Tais considerações se apoiavam na meditada formulação dos</p><p>princípios gerais que prefiguravam sucessivas “dignidades” célebres. “A natureza</p><p>dos homens é feita de tal modo que, primeiro, almeja o necessário, depois o</p><p>cômodo, finalmente o prazer”. “A natureza própria dos homens é feita de tal</p><p>modo que, primeiro, advertem as coisas que tocam os nossos sentidos, depois os</p><p>costumes, enfim as coisas abstratas” (Ibid.) Estamos diante já dos elementos de</p><p>uma inalcançada estrutura do dinâmico mundo humano, elementos que confluirão</p><p>na noção madura da “história ideal eterna”.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 113</p><p>de tornar eficazmente plausível o novo quadro de uma história da</p><p>civilização. Nesse complexo quadro, a tese propriamente viquiana do</p><p>“poligenismo cultural”, associada à irrenunciável tese do “monogenismo</p><p>e da monopropagação étnico” (de Adão, de Noé) típica da ortodoxa</p><p>linguagem religiosa cristã, podia encontrar acolhimento apropriado</p><p>no compatível recurso a elementos de “propagação cultural” (alguns</p><p>dos quais difundidos desde o “Oriente sacro”), dos quais se retomarão,</p><p>logo, outras provas, úteis à melhor compreensão da aquisição, por</p><p>determinadas gentes, de “caracteres culturais” particulares.</p><p>O aceno às fundamentais e iniludíveis sequências do humano</p><p>(como aquela que vai do “necessário” ao “cômodo”) nos avizinha,</p><p>pois, à linguagem, por assim dizer, “histórico-cultural”. Enquanto isso,</p><p>dentro da complexa “linguagem</p><p>histórica”, aquela tradicionalmente</p><p>“histórico-política” dos “fundadores” da cidade, das formas políticas,</p><p>é radicalmente posta em jogo pela sua transformação em “caracteres</p><p>poéticos” (como Cadmo, por exemplo, a propósito dos citados fenícios),</p><p>e a esfera dos eventos históricos particulares (mas depois reconduzidos</p><p>a gêneros recorrentes, como as transmigrações, as colônias, as guerras,</p><p>as conquistas) por sua vez, será chamada a explicar, relevantemente, o</p><p>desvio de uma nação do seu “curso natural” de desenvolvimento.</p><p>Decidindo terminantemente o configurar-se dos caracteres pe-</p><p>culiares dos povos (“naturais” e/ou “culturais”), ou pelo menos con-</p><p>tribuindo largamente com a sua explicação, serão continuamente</p><p>evocadas as condições naturais de caráter “geográfico”, “ambientais” e</p><p>“climáticos”. Em relação a isso é oportuno dizer algo acerca da aborda-</p><p>gem de alguns povos, em parte já referidos (caldeus, egípcios, fenícios,</p><p>etruscos, cretenses, gregos, citas etc.), sistematicamente proposta por</p><p>Vico naquele enorme laboratório da sua meditação que foi o Diritto</p><p>universale e, em particular, no De constantia. Mas, antes é preciso de-</p><p>ter-se sobre uma importante página do De uno, na qual aparece uma</p><p>primeira exposição orgânica das causas climáticas da “populorum na-</p><p>tura” e, portanto, da sua influência sobre as formas de governo.</p><p>Tal excursus atesta, pela primeira vez de modo sistemático,</p><p>a importância explicativa assinalada por Vico aos caracteres das</p><p>nações definidos enfim por via “natural”; e ao mesmo tempo atesta</p><p>como o argumento “natural-climático” viria declinado, absorvendo a</p><p>114 • Enrico Nuzzo</p><p>tarefa de afirmar, frente à moleza asiática, a supremacia ético-política</p><p>da “fortaleza” europeia (e particularmente romana) – geralmente</p><p>expressa na forte inclinação aos governos dos optimates ou ao</p><p>“principatus civilis”, mas também articulada em função dos caracteres</p><p>naturais específicos das diversas “gentes”.</p><p>Uma rápida preliminar consideração deve ser elaborada a</p><p>propósito. Observa-se, em primeiro lugar, que o recurso à causalidade</p><p>natural climática se conectava à forte presença, nas páginas do</p><p>De uno, de um interesse bem usual pela investigação das formas</p><p>dos governos, em suma, à atuação daquela tradicional “linguagem</p><p>histórico-política”, cuja presença permanece residual na inovadora</p><p>ciência das nações viquiana, e cuja estruturação de fundo será por</p><p>ela desdita. Em segundo lugar – derivando do complexo discurso</p><p>“topo-etno-psicológico” exposições marcadamente caracterizadas</p><p>pelo nexo entre clima e formas políticas –, Vico, nessa etapa</p><p>da sua meditação, tendia a configurar, com efeito, uma relação</p><p>causal demasiado fechada, unilinear, entre “populorum natura” e</p><p>“rerumpublicarum formae”, como anuncia já o explícito título do</p><p>caput CXLV do De uno, “De formis rerumpublicarum ex populorum</p><p>natura”.47 Em terceiro lugar, ele esboçava uma fenomenologia</p><p>dos caracteres “antropológicos” e “políticos” das nações, na qual</p><p>vislumbra um esforço sistemático, mas também elementos de</p><p>incompletude, ao assumir os tradicionais pares opositivos “topo-</p><p>etno-psicológicos”. Desses, ele retomava os pares essenciais de</p><p>caráter “antropológico” “fortis-mollis” e “acutus-rudis” (pares ou</p><p>termos que serão colocados por Vico também em uma perspectiva</p><p>diacrônica, como veremos no final deste texto) e a sua conexão</p><p>com aqueles pares opositivos “geográficos” “europeus-asiáticos”</p><p>(ocidentais-orientais). Mas só tacitamente fazia florescer o outro</p><p>par setentrional-meridional, indicado para as experiências de uma</p><p>moleza também meridional (como no caso dos “Sículos”), além da</p><p>“asiática”, da qual não teria sido fácil indicar as causas climáticas</p><p>peculiares: porque foi tradicionalmente modulado a partir da</p><p>47 De uno, CXLV, p.179. Como é conhecido, já em Hipócrates estava presente um</p><p>tipo de explicação de “condicionamento reciproco” entre fatores naturais e</p><p>institucionais.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 115</p><p>tripartição “setentrional-temperado-meridional” (deixando aqui de</p><p>lado a doutrina ptolomaica dos sete climas etc.). Assim, no De uno, era</p><p>proposta primeiramente uma bipartição geral entre quase todos os</p><p>“europeus” e os “asiáticos”, depois, com efeito, uma quadripartição</p><p>que consentia, em seu interior, as variadas configurações dos nexos</p><p>entre naturezas dos povos, com as suas aptidões às formas políticas,</p><p>e as formas políticas propriamente ditas, tal como se deram entre</p><p>os antigos povos europeus habitantes das regiões do Mediterrâneo.</p><p>Uma primeira distinção fundamental era posta entre as gentes</p><p>fortissimae, representadas por quase todos os europeus (“tales fuere</p><p>europaei ferme omnes”), e então dispostas a formas de governo potentes</p><p>ou monarquias temperadas (“principatus civilis”), e vice-versa aquelas</p><p>“moles e rudes”, representadas pelos “asiáticos”, facilmente subjugadas</p><p>por uma monarquia pura e levados a viverem “sub regnis meris”. Logo,</p><p>em um discurso orientado a sustentar a natureza “ética” do verdadeiro</p><p>direito e caracterizar os romanos como povo cuja história era, por isso</p><p>mesmo, exemplar, um aspecto bastante relevante é que a fortaleza das</p><p>gentes de que se fala não resida na sua mera potência guerreira ou</p><p>supremacia nas guerras, pois que a verdadeira fortitudo é dirigida “ad</p><p>tutelam, non ad iniuriam”.48</p><p>Entre os ocidentais, contudo, ao seu redor existiam gentes</p><p>“acutissimae et molles, quales siculi”, por conseguinte, subjacentes</p><p>tyrannis; “acutissimae et fortes”, “ut cretenses, athenienses, cartha-</p><p>ginienses” que souberam encontrar “leges et libertatem”; enfim “for-</p><p>tissimae, non tam acutae”, “ut romani” que conquistaram mais len-</p><p>tamente “libertatem”. Como se vê – sem que o autor sentisse, porém,</p><p>a necessidade de uma explicação teórica das premissas de suas as-</p><p>serções –, na agudeza nativa vinha definido, de certo modo afirma-</p><p>do, um fator positivamente dinâmico, mas perigosamente disposto</p><p>a assumir diversas e opostas conformações: como aquela – própria</p><p>dos cretenses, atenienses, cartagineses – da agudeza associada à</p><p>força, operante, a princípio, na conquista de um viver civil e livre,</p><p>da libertas, ou como aquela – própria dos Sículos – da agudeza as-</p><p>sociada à moleza e então, vice-versa, facilmente disposta ao modo</p><p>48 De uno, CXLV, [1-2], p.179.</p><p>116 • Enrico Nuzzo</p><p>de vida obediente sob a tirania. Os primeiros, gentes “acutissimae et</p><p>fortes invenere leges et libertatem”, enquanto os segundos, “acutissi-</p><p>mae […] sed molles […] statim tyrannis cessere”.49</p><p>Muito interessante nesse quadro é o posto ali reservado aos</p><p>romanos, cuja história, no Diritto universale, adquiria plena função de</p><p>“povo campeão” da humanidade e um firme caráter paradigmático: seja</p><p>como privilegiado repertório de um enorme material histórico, seja</p><p>pelo exemplar e gradual curso dos fatos humanos rumo à conquista</p><p>do verdadeiro-justo.50 Os romanos aqui se apresentam como exemplo</p><p>único de um povo que não se destaca por agudeza de engenho e que,</p><p>por isso, tardiamente, após longo caminho, atinge um viver civil livre,</p><p>exemplo único, portanto, de gentes “fortissimae, non tam acutae, sero</p><p>libertatem experti”.51</p><p>Não pretendo superexpor criticamente este lugar dando a ele o</p><p>peso muito importante de um genérico “imaginário da medida” (radi-</p><p>cado numa bastante sólida tradição “pré-moderna”, clássico-humanis-</p><p>ta) que de longe, ou melhor, da profundeza de uma esfera “imaginati-</p><p>va” substancialmente irreflexiva, governará, de modo significativo, não</p><p>somente a indicação dos romanos como aqueles que paradigmatica-</p><p>mente “caminharam com justo passo”,52 mas, em geral, uma série de</p><p>49 De uno, CXLV, [3-4], p.179. A oposição entre a disposição à tirania, aos “regna</p><p>mera”, “apud asianos” e, por outro lado, o ódio por tais formas de governo por</p><p>aqueles mais “apud occidentales”, mas não entre os “siculi” ou os “aethrusci”,</p><p>retornaria em: VICO, G. De constantia Iurisprudentis (1721). In: ______. Opere</p><p>giuridiche. Organização de Paolo Cristofolini</p><p>e introdução de Nicola Badaloni.</p><p>Firenze: Sansoni, 1974, II, CXXXVIII, [8-9], p.169 (de agora em diante De const.).</p><p>50 Para Vico – conforme um estudo indiscutível sobre o tema –, Roma é “o paradigma</p><p>da história, que ele deve examinar e reexaminar para encontrar as demonstrações</p><p>de sua filosofia”. Entre os “povos privilegiados pela sua investigação” – os Gregos,</p><p>os Romanos, os povos ocidentais constituídos após a queda do Império romano</p><p>de que falava Meinecke – “o povo romano é, por excelência, o ‘povo campeão’</p><p>porque Roma é, por sua natureza, por sua origem e por seu destino histórico,</p><p>cidade fortemente definida e significativamente universalizada: a mais viquiana</p><p>das cidades” (PIOVANI, P. Il debito di Vico verso Roma. Studi romani, Roma, vol.</p><p>XVII, p.1-17, 1969, mas que cito a partir de PIOVANI, P. La filosofia nuova di Vico.</p><p>Organização de Fulvio Tessitore. Napoli: Morano, 1990, p.103, 107).</p><p>51 De uno, CXLV, [5], p.179.</p><p>52 Diferentemente dos gregos e, depois, dos franceses, “os romanos […] caminharam,</p><p>em seus costumes, com justo passo” (Sn44, §158, p.502), “se fazendo regular pela</p><p>providência por meio da sabedoria vulgar […] de modo que, em meio às causas</p><p>internas e externas que destroem tal forma de Estados, puderam humanamente</p><p>resistir” (Sn44, §1.088, p.953-954).</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 117</p><p>posições, expressões de juízo, exposições axiológicas, todas reconduzí-</p><p>veis enfim a uma tácita opção, precisamente, pelas razões do “meio”, do</p><p>“temperado”, disso que se coloca entre os extremos e não se dirige para</p><p>nenhum extremo. Um apreço subterrâneo, quando não um elogio, da</p><p>“bela medida” não abandona nunca o pensamento viquiano, integran-</p><p>do-se, na verdade, dentro de uma meditação que, como poucas, contri-</p><p>buiu com uma visão dinâmica e aberta, genética e historicizante do hu-</p><p>mano. Ora, esse apreço envolve tanto o “natural” quanto o “histórico”,</p><p>tanto o “espaço” quanto o “tempo”: recobre as bem conhecidas expres-</p><p>sões avaliativas das “justas medidas” corpóreas, as quais retornam os</p><p>homens finalmente saídos da desmesura dos corpos gigantescos ad-</p><p>quiridos na errância ferina, ou ainda as expressões, bem menos conhe-</p><p>cidas, da bela medida e originária coloração branca da pele dos povos</p><p>não submetidos às mudanças de caracteres físicos pela prática de cer-</p><p>tos costumes; assim como recobre a justa medida à qual se aferram as</p><p>nações humanas nos processos pelos quais a elas advém a insidiosa</p><p>corrupção dos costumes, a decadência em uma extenuada “delicade-</p><p>za” e o risco de morte (como atestam eloquentemente as temáticas da</p><p>akmé das nações e as sequências descritas por Vico dos fenômenos</p><p>fundamentais pelos quais passam as comunidades humanas).53</p><p>Existe, porém, uma interrogação que define um território</p><p>largamente opaco em Vico: de onde vem realmente – evidentemente</p><p>não de facto, mas de jure – o caráter paradigmático dos romanos? E a</p><p>resposta não pode ser simplesmente: por ter caminhado com “justo</p><p>passo”. Porque isso remete a uma ulterior interrogação: de onde vêm</p><p>os seus “justos passos”? Eis que, para lançar alguma luz sobre este</p><p>espaço opaco, pode então contribuir o escorço do De uno, no qual Vico</p><p>retomava algo do elogio do clima em boa parte temperado da região</p><p>italiana (expresso no período “latino” das reflexões e escritos sobre</p><p>as condições climáticas, por exemplo com Vitrúvio), embora sem</p><p>desenvolver seus aspectos sistemáticos: de resto, difíceis de serem</p><p>53 Sobre as problemáticas do “desmesurado”, do “deformado” e, vice-versa,</p><p>da “medida”, ver NUZZO, E. Tra il corpo “sformato” e l’universale “informe”. L’</p><p>“indiffinita” forma della mente umana in Vico. In: AAVV. Filosofia e storiografia.</p><p>Studi in onore di Giovanni Papuli. L’Età moderna. Galatina: Congedo, 2008, tomo</p><p>III, p.263-277.</p><p>118 • Enrico Nuzzo</p><p>deduzidos de um espaço geográfico no qual haviam convivido etruscos,</p><p>romanos, sículos, e relativamente ao qual vários protagonistas</p><p>da cultura napolitana sublinharam, dali a pouco, a extraordinária</p><p>diversidade dos climas e ambientes, e inclusive dos caracteres das</p><p>populações, específica do Mezzogiorno.</p><p>Em uma investigação sistemática sobre a matéria (em particular</p><p>sobre os romanos), a atenção deveria dirigir-se rápido para o capítulo</p><p>sucessivo, cujo eloquente título (“De iustitia rerumpublicarum ex</p><p>ipsarum natura”) confirma a estreita relação causal “populorum</p><p>natura – rerum publicarum natura – iustitia rerumpublicarum”. Nele,</p><p>a adoção de teorias marcadamente usuais à tratadística política cinco-</p><p>seiscentista (a conformação das repúblicas aristocráticas a uma contida</p><p>extensão territorial e a uma política não expansiva, ao contrário das</p><p>repúblicas populares e das grandes monarquias imperiais) tornava-</p><p>se funcional à tese de que por longo tempo os romanos, regidos por</p><p>governos de patrícios, haviam empreendido somente guerras justas,</p><p>“[bela] pura et pia”, terminadas vitoriosamente com manifestações de</p><p>“mansuetudo et clementia”: visão que, pouco mais tarde, será felizmente</p><p>contradita pela sucessiva denuncia de um heroísmo romano patrício,</p><p>em vez disso, desapiedadamente cruel (como denuncia já a etimologia</p><p>de “pátria”); mas que aqui interessa assinalar, porque acompanhada</p><p>da ideia de que o lento crescimento de Roma aconteceu de modo tal a</p><p>conferir-lhe uma “iustum reipublicae corpus”, um organismo político,</p><p>por sua vez, correspondente à justa medida.54</p><p>Mas é preciso andar rapidamente adiante e observar como,</p><p>no De constantia, Vico assumia mais explicitamente o clima (em</p><p>54 De uno, CXLVI, [1, 3], p.181. O caminhar dos romanos “com justo passo”</p><p>implicava, ao contrário, sua subtração ao inovador juízo viquiano, sucessivamente</p><p>formulado, acerca da natureza brutal das formas de “heroísmo antigo”, como</p><p>aquele personificado pela renomada virtude do patriciado romano. Também</p><p>por ter traçado precedentemente um rápido desenho da identidade pátria em</p><p>Vico, talvez não seja supérfluo recordar a energia teórica, e também ética, da</p><p>desmistificação viquiana da gênese nobre de todas as pátrias. “Pátria” vinha do</p><p>“unir-se em ordens, para resistir às multidões de fâmulos sublevados”, dos “reis das</p><p>famílias”, “polifemos” de “natureza feroz”, “os quais, sem humano discernimento</p><p>ou conselho, perceberam a unidade dos seus interesses privados, comum a cada</p><p>um deles, que se chamou ‘patria’, que [...] quer dizer ‘interesses dos pais’, e assim os</p><p>nobres se disseram ‘patricii’: razão pela qual deveram ser só os nobres os cidadãos</p><p>das primeiras pátrias” (Sn44, §584, p.697).</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 119</p><p>particular a “coeli temperies”) como fundamento da disposição dos</p><p>povos a ser mais ou menos “engenhosos” e, assim, segundo uma</p><p>importantíssima sequência de fatores causais, mais ou menos capazes</p><p>de levar adiante a civilidade. Uma suposição que também pode ser</p><p>considerada, examinada, no quadro do vasto empenho (explicado em</p><p>detalhes precisamente a partir do De constantia, mas não descuidado</p><p>sucessivamente) de reconhecimento e utilização, nas exposições e</p><p>confirmações de suas teses, dos dados e das explicações assimilados</p><p>dos saberes correntes sobre a natureza. Dados, “causas naturais”,</p><p>capazes de explicar, só para oferecer dois exemplos bem conhecidos,</p><p>como teria sido possível aos homens, errantes nas selvas pós-dilúvio</p><p>universal, assumir uma estatura gigantesca por via da potente ação</p><p>dos “nitritos” ou “sais nítricos” sobre os corpos das suas crianças</p><p>revolvidas em suas “fezes”,55 ou porque “as línguas devem ter começado</p><p>por vocábulos monossílabos” e pelo “canto”, a partir de considerações</p><p>atinentes às “fibras do instrumento necessário para articular a fala”,</p><p>“molíssimas” nas crianças, “duríssimas” nos “primeiros homens das</p><p>gentes”.56 Fica claro, no De constantia propriamente, que Vico recorria</p><p>a uma sucessão de usuais explicações “físicas” (que sobre esse aspecto</p><p>não serão retomadas ou desenvolvidas) para dar conta da transmissão</p><p>hereditária dos caracteres</p><p>fisiológicos (como a cor da pele) adquiridos</p><p>“historicamente” por meio da “vis phantasiae” dos genitores (com um</p><p>processo de “naturalização” do costume): caracteres dos povos que</p><p>podiam, portanto, mudar agilmente no tempo, sendo assim possível</p><p>confirmar a tese que da progênie de Noé, toda branca e de belas e</p><p>corretas feições, descendesse também gentes de pele negra e do</p><p>pescoço “inaturalmente” alongado, como os etíopes, verossimilmente</p><p>descendentes dos caldeus, ou dos fenícios, por intermédio dos</p><p>egípcios.57 Esse é um tema relevante – embora isolado na reflexão de</p><p>55 Sn44, §369, p.565.</p><p>56 Sn44, §231, 454, 462, p.518, 620, 622-623.</p><p>57 Cf. De const., II, XVI, [14], p.503. “Aethiopes a primis aegyptiis, continente sibi proximis,</p><p>[…] a chaldeis aut a phoenicibus per aegyptios provenisse verisimilis est”. De fato, de</p><p>uma gente de pele inicialmente branca e de belas feições (“gentem albam pulchram</p><p>principio”) – segundo um preconceito avaliativo “normal” – chegaram à conformação</p><p>corpórea dos Etíopes (a conformação alongada do pescoço, a carne negra) por meio</p><p>da aquisição duradoura, hereditária, de características próprias da prática de certos</p><p>120 • Enrico Nuzzo</p><p>Vico sobre a “natureza” e a “história”, porque fala da experiência na</p><p>qual não a “natureza” das coisas deve ser reconduzida à sua gênese</p><p>histórica, mas na qual o “costume” se transforma em “natureza”.</p><p>Retornando aos nexos entre natureza dos climas e atitudes dos</p><p>povos é relevante, de certo modo, a peremptória afirmação (“nemo</p><p>est qui negaverit”) que se lê no capítulo do De constantia dedicado</p><p>à investigação sobre a origem da língua heroica, ou da própria</p><p>poesia. Com efeito, “humanitatis principiis […] ingeniosae gentes</p><p>facilius induunt”, mas são as temperaturas do céu – desde que ele</p><p>seja mais úmido e frio ou, vice-versa, mais rarefeito e quente – que</p><p>fazem nascer homens de engenho obtuso ou, pelo contrário, agudo.</p><p>“Nemo est qui negaverit esse coeli temperaturas quae gentes alias aliis</p><p>ingeniosiores alant, ut sub crasso frigidoque aëre obtusi, sub magis</p><p>aethereo et aestuoso acuti ingenii nascantur homines”.58 Por outro lado,</p><p>a disposição para o engenho inclui ainda fatores causais constantes,</p><p>que se inscrevem ou no rol dos fatores históricos estruturais (por sua</p><p>vez, evidentemente em interação com as condições materiais, físicas,</p><p>geográficas dos lugares) ou no rol das estruturas e tempos recorrentes</p><p>da vida humana: as solicitações que vêm das formas de necessitas a</p><p>que estão submetidos os homens; a phantasia mais ou menos vívida,</p><p>derivada da agudeza dos sentidos, que, por sua vez, é diversa já entre</p><p>os animais e os homens (“brutis acerrimi sensus sunt natura attributi”),</p><p>costumes (o alongamento artificial e deformante da cabeça, o colorir do vulto negro</p><p>com a crença na maior santidade de tais cores). Isaac Voss (Ad Pomponium Mela) e</p><p>sobretudo Johan Jacob Hoffmann (Lexicon) ofereceram testemunhos importantes</p><p>da doutrina (largamente e correntemente difusa nos ambientes científicos do</p><p>cartesianismo, basta pensar em De la Forge) segundo a qual da possante “vis phantasiae</p><p>generantium” nascem filhos com determinadas características, depois estavelmente</p><p>transmitidas (no caso dos “nigri filii”) e, portanto, que “curatura in naturam conversa</p><p>est”. Como se vê, temos aqui uma esfera de fenômenos que atestam como é possível</p><p>que os costumes se transformem em natureza. Especialmente com as explicações</p><p>de tipo “biológico” da transmissão dos caracteres hereditários baseadas no sangue</p><p>(explicações que começaram a aflorar no final do século XVII e claramente inclinadas</p><p>a empregos de teor racista) resultará debilitada e, então, desmentida a teoria usual da</p><p>transmissão, também, dos caracteres adquiridos.</p><p>58 De const., II, XII, [5,7], p.451-453. No mesmo capítulo aparecem qualificações</p><p>antropológicas dos carácteres dos povos – como a “gens acutíssima” florentina</p><p>ou, pelo contrário, a “stupidissima gens” peruana – que devem ser inscritas num</p><p>registro viquiano dos carácteres das nações e merecedoras de uma acurada</p><p>investigação analítica (De const., II, XII, [32, 35], p.461-463).</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 121</p><p>depois segundo o sexo (“foeminae quam viri sensilia magis advertunt”),</p><p>e da idade, tanto do indivíduo singular quanto de toda as gentes, e da</p><p>humanidade em geral. Eis então que “primos ingeniosos homines […]</p><p>nihil aliud quam ingeniosos pueros fuisse”.59</p><p>O De constantia é o escrito pelo qual é necessário passar a fim</p><p>de acompanhar a primeira sólida configuração de uma vastíssima</p><p>série de temáticas e propostas que encontrarão sua laboriosa</p><p>ulterior sistematização nas versões da Scienza nuova. Não obstante</p><p>os significativos antecedentes sobre os quais nos detemos, isso vale</p><p>também, em larga medida, para a abordagem dos caracteres das</p><p>nações dentro de um novo quadro de história da humanidade e da</p><p>civilização, no qual eram chamados a cooperar as “linguagens” de</p><p>que falamos e o recurso a diversas formas de “causalidade”: “sacra”,</p><p>“histórica” (“histórico-estrutural’ etc.), “natural” (“geográfico-climática”,</p><p>“geográfico-ambiental” etc.), “antropológica” (por sua vez, causalidade</p><p>concernente a formas estruturais da psicologia humana ou a caracteres</p><p>dos povos adquiridos pelos condicionamentos físicos etc.).</p><p>A premissa de onde parte o discurso viquiano sobre as nações</p><p>permanece sempre aquela – atinente à história sacra como “philologica</p><p>dignitas” (a primeira das nove “philologicae dignitates” fixadas nos inícios</p><p>do Capítulo IX da “Pars posterior” do De constantia) – da sua propagação</p><p>por meio das descendências de Noé. “Anno post Diluvium, ante</p><p>babylonicam linguarum confusionem, Sem, Cham, Iaphet exleges terram</p><p>inter se divisisse; et in Assyria mansisse Semum, Chamum in proximam</p><p>Phoeniciam Aegyptumque, Iaphetum in Europam commigrasse”.60</p><p>59 De const., II, XII, [8-11], p.453.</p><p>60 De const., II, IX, [3-4], p.431. As duas “dignitates” sucessivas afirmam que “in</p><p>Oriente […] inter Chaldaeos”, advém a precoce restauração (duzentos anos</p><p>depois do dilúvio) de uma refinada forma de “magia”, que reclamava “astrorum</p><p>observationes”, todavia – claro fator causal ambiental – mais atuante nas extensas</p><p>planícies mesopotâmicas (“in ingentibus camporum aequoribus”); enquanto isso</p><p>“in Occidente genus divinationis natum tam rude quam orientalium eruditum”</p><p>(De const., II, IX, [5-6, 18], p.431, 435). Assim, os primeiros sábios das gentes</p><p>foram os caldeus. Mas “Chami posteritas in Phoenicia ob chaldeorum, et aegyptiii</p><p>ob phoenicium vicinitatem, mature interiores disciplinas invenire potuerunt” (De</p><p>const., II, IX, [18], p.435). Portanto, Cam é apresentado como o fundador das gentes</p><p>habitantes do Egito e, depois, com maior precisão, também daquelas estanciadas</p><p>na África setentrional e, então, no Mediterrâneo meridional; Jafet é o fundador</p><p>daqueles que povoaram a Europa (mas depois também a Ásia setentrional, dos</p><p>122 • Enrico Nuzzo</p><p>Em que vai sublinhada – sobre uma matéria ainda meritória de</p><p>aprofundamentos críticos – a diversa sorte das descendências de Sem e</p><p>Cam em relação àquela de todos os “Japetos”: somente eles, nessa etapa</p><p>da meditação viquiana, destinados a serem por via do trovão extraídos</p><p>para fora do bruto estupor no qual foram afundados, perdendo “omnem</p><p>[…] religionem” e, com ela, a sua “humanitatem”.61</p><p>Dirigindo a atenção, nesse momento, sobretudo para os fatores</p><p>geográficos influentes sobre os caracteres e sobre a história das nações,</p><p>pode ser oportuno partir novamente dos egípcios e do processo que os</p><p>havia levado, bem cedo, a amadurecer a conquista de variadas artes,</p><p>dentre elas a da navegação (como explica, em particular, o Capítulo</p><p>XVII da parte II do De constantia). A conquista precoce daquelas artes</p><p>foi devida a uma série de razões tanto “históricas” quanto “naturais”.</p><p>Uma razão histórica era consequência da sua vantajosa contiguidade</p><p>espacial com as regiões e nações do próximo Oriente investidas da</p><p>gênese “sacra” e da</p><p>persistência e/ou rápida recuperação das artes, como</p><p>se viu. Os egípcios, como os fenícios descendentes de Cam, puderam</p><p>usufruir da vizinhança dos dois fundadores – tendo permanecido Sem</p><p>vizinho a Cam – e dos seus pósteros não dispersos. Desse modo, teriam</p><p>podido aprender rapidamente dos caldeus as “artes” pré-diluvianas</p><p>em geral, que esses não se esqueceriam, e assim sabido avantajar-</p><p>se particularmente à “hereditariedade de Sem”, superando, nisso, os</p><p>próprios fenícios, que parecem ter sido os primeiros intermediários da</p><p>transmissão, entre os camitas, das artes não dispersas pelos pósteros</p><p>de Sem. Mas a singular rapidez de aprendizagem e a capacidade de</p><p>incremento daquelas artes pelos egípcios foi devida também a uma</p><p>dúplice ordem de fatores “naturais”. De fato, produzindo os caracteres</p><p>daquela gens concorria, em primeiro lugar, o fator da “naturalidade</p><p>citas) e, então, o Mediterrâneo setentrional. Noutro estudo observei a discrasia</p><p>que parece surgir do fato de que, embora nas diversas versões da opus magnum</p><p>Vico tenda cada vez mais a identificar as dissidências de Cam e Jafet, mas também</p><p>aquela de Sem, já na “Tábua Cronológica” que aparece nas duas últimas versões</p><p>da Scienza nuova, só “Jafet” é indicado como aquele “de que provêm os Gigantes”</p><p>(Sn30, p.58; Sn44, p.449).</p><p>61 “At Iaphetidae, longe a semitidis et chamitidis dissiti […], ad brutum stuporem</p><p>redacti omnes, fulmine excitandi fuerunt ut caelum crederent deum eiusque</p><p>voluntatem putarent Iovem” (De const., II, IX, [18], p.435).</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 123</p><p>étnica” (quer dizer, um praeclarum, praestans, ingenium, nesse caso,</p><p>em nexo subterrâneo com o clima). Mas esse fator, por conseguinte,</p><p>vinha incrementado por um fator “ambiental”, por uma necessitas</p><p>material, como as periódicas inundationes do Nilo.62 Com um discurso</p><p>que reorganizava, em um tecido conceitual e narrativo inovador,</p><p>variados materiais e “linguagens” (“histórico-teológico”, “histórico-</p><p>erudito”, “etno-geográfico” etc.) se podia então compreender as razões</p><p>da rápida assimilação, por parte dos egípcios, das “artes” tomadas dos</p><p>caldeus, o impetuoso desenvolvimento impresso por eles nos egípcios</p><p>ao adquirirem, entre outras coisas, “navalem et nauticam” e tornando-</p><p>se a primeira “maritima potentia” do Mediterrâneo.63</p><p>Foquei longamente os egípcios, mas os exemplos poderiam ser</p><p>extensivos a diversos povos descendentes do tronco de Noé. Assim,</p><p>se permanecermos no Ocidente que se abre para o mar mediterrâneo</p><p>e olharmos os cretenses e, em geral, a “grecae gentes”, temos a</p><p>confirmação de que também aqueles primeiros, para conseguir a “res</p><p>et militia navalis”, teriam gozado de uma dúplice favorável condição</p><p>natural: aquela da “natureza” étnica (tacitamente ligada ao clima)</p><p>“agudíssima” e aquela “geográfico-ambiental” “insular”.64 Mas, parece-</p><p>me a ocasião de retomar e repropor agora o caso das nações “orientais”</p><p>dos citas, protagonistas, junto dos caldeus e egípcios, da “propagatio</p><p>generis humani” e então progenitora de uma vasta e diversificada série</p><p>de gentes sejam asiáticas ou europeias.</p><p>62 Na realidade, por causa das inundações do Nilo, que constantemente desmarcavam</p><p>os confins dos campos, os egípcios, que haviam recebido dos caldeus as ciências da</p><p>geometria, da aritmética e, derivada delas, a astronomia, para fins práticos “a caelo ad</p><p>terras mathesim revocarunt” (De const., II, XIV, [3-4], p.481). Sobre as consequências</p><p>da “necessitas” representadas pelas inundações do Nilo: Cf. De const., II, XVII, [21],</p><p>p.505-507. O grande rio, com suas inundações, “peracuit” il “praestans ingenium” dos</p><p>egípcios. A mesma pressão ambiental das inundações do Nilo impeliu os egípcios,</p><p>depois, à obtenção de “navalem et nauticam aliis maturius”.</p><p>63 “Ita, his artibus instructi, gentes rudes, inermes et inconditas facile debellabant, et</p><p>cito maritimam Interni maris potentiam adepti sunt” (De const., II, XVII, [21], p.507).</p><p>64 De const., II, XXIX, [11], p.655. A agudeza particular dos cretenses, mas, em geral,</p><p>dos gregos (e em particular da parte ocidental da Grécia) foi logo em seguida</p><p>confirmada. Veja, por exemplo, a celebração do “mirum gentis acumen”, isto é, da</p><p>gente da Grécia ocidental, de Samos, pátria de Homero e de Pitágoras, e que, não</p><p>por acaso, “italicae et grecanicae philosophiae sublimioris magnum incrementum”</p><p>(De const., IV, [18], p.841).</p><p>124 • Enrico Nuzzo</p><p>Segundo o De constantia, os citas, em comparação com os caldeus,</p><p>representaram uma sorte de diretriz “não urbana” da hereditariedade</p><p>de Sem (e aqui, como um “privilégio de Sem”, volta a relevância do</p><p>discurso “antropogônico” de matriz “sacra”), das “inocentes” virtudes</p><p>da frugalidade e da justiça (mais próximas àquelas definidoras</p><p>do povo hebraico) transmitidas pelo menos a algumas das muitas</p><p>gentes descendentes deles. Ao tradicional tratamento da marcante</p><p>rudeza dos citas vinham associados, no De constantia, aspectos</p><p>também presentes no “mito”, “miragem cita” (objeto de consistentes</p><p>investigações historiográficas), tão robusto e difundido até o tardo</p><p>setecentos. Aquele povo de fato destacava-se por costumes assaz</p><p>positivos, produtos da sua religio: por “morum rectitudine, pudicitia,</p><p>simplicitate, iustitia, modestia”, em uma palavra, innocentia, virtude</p><p>ligada à pietas e a hábitos de sustento moderados com a criação de</p><p>gado e a agricultura.65 Esses costumes encontram expressões e,</p><p>principalmente, fundamento no caráter “econômico-social” e então</p><p>“político” da aequalitas de uma sociedade de estrutura patriarcal.66</p><p>Mas esse tratamento repousa decisivamente sobre um fenômeno</p><p>“material-ambiental”: a superabundância de terras fertilíssimas para a</p><p>agricultura e o pastoreio (como confirma o caso dos Sículos).</p><p>Daqui, ou do conjunto desses caracteres e condições, resulta o</p><p>extraordinário emergir de uma condição “oriental” de igualdade e justiça,</p><p>de todo diversa daquela “ocidental” necessariamente desenvolvida</p><p>por meio do instituto das “clientelas”. No oriente não existiu nenhuma</p><p>necessidade da “lex agraria”, em vez disso, “clientelae apud occidentales</p><p>ortae sunt”.67 As causas dos costumes virtuosos dos citas encontram-se</p><p>no enredo de razões “morais” e “materiais”. Para eles,</p><p>65 De const., II, XVII, [4, 8], p.499, 501.</p><p>66 De const., II, XVII, [9], p.501. Surge, neste sentido, um caráter que distingue os</p><p>Citas dos hebreus e dos “orientais” em geral, também representados por Vico,</p><p>anteriormente, como predispostos à obediência, embora, nesse texto, distinguidos</p><p>da tendência a fundar, logo após o dilúvio, “monarchica regna” (De const., II, XI,</p><p>[16], p.449).</p><p>67 De const., II, XVII, [8-9], p.501. Vico já havia observado no De rebus gestis</p><p>Caraphaei a singularidade das estruturas sociais e políticas dos povos da</p><p>Transilvânia, caracterizados por elementos igualitários consistentes.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 125</p><p>religio modestiam innocentiamque fecit, quas virtutes ipsis immensa</p><p>feracissimorum camporum aequora conservarunt: unde gentis aequalitas</p><p>hinc inter ipsas propagata, cum, in tanta camporum abundantia, opus</p><p>lege agraria nullum fuit, unde clientelae apud occidentales ortae sunt.68</p><p>Por causa dessa elementar razão material, das grandes extensões</p><p>das planícies orientais, pelo Oriente não vige o desenho habitual,</p><p>que se tornaria onipresente, do processo de fatigosa recuperação do</p><p>humano mediante a instituição do “ius nexi” da primeira lei agrária.</p><p>Ainda mais relevante no discurso aqui conduzido é, pois, a</p><p>precisa recondução ao fator climático dos diferentes caracteres das</p><p>muitas populações derivadas dos citas e dos seus condicionamentos</p><p>“citicos” de liberdade e igualdade. Deles nascem, de fato, duas diversas</p><p>descendências fundamentais e possibilidades: uma no Ocidente, na</p><p>Europa (segundo uma diretriz articulada em duas linhas), e uma no</p><p>Oriente; uma caracterizada pela fortitudo, a outra pela suavidade e o</p><p>amor pela aequitas (e aberta ao desenvolvimento das letras):</p><p>é esse</p><p>segundo caso aquele dos séres e dos chineses. “Scythia fortissimarum</p><p>mater in Occidentem, mitissimarum et aequissimarum in Orientem”.69</p><p>Tal diversidade dos processos de desenvolvimento encontra sua</p><p>causa explicita no clima.</p><p>Quapropter e Scythia gentes fortissimae prodiere, primum thraces,</p><p>germani parthi; deinde in asperam Europam vandali, hunni, gotthi,</p><p>heruli, longobardi, turcae aliaeque barbarae nationes; in mollem Asiam</p><p>provenere Seres, mitissimi et aequi amantissimi homines.70</p><p>Com efeito, as diferenças climáticas – entre a polaridade do</p><p>“mole” e do “áspero” – marcam as características dos grandes troncos</p><p>da descendência cita. Na realidade, a fonte cita da propagação do</p><p>gênero humano tem dupla ramificação, que tende, porém, a articular-</p><p>68 De const., II, XVII, [8], p.501.</p><p>69 De const., XVII, [10], p.501, grifo meu.</p><p>70 De const., XVII, [10], p.501, grifo meu. Aqui, a moleza oriental assume características</p><p>positivas que não encontrarão espaço na mais madura representação histórica de</p><p>Vico acerca das vicissitudes da “moleza”, da “delicadeza”.</p><p>126 • Enrico Nuzzo</p><p>se em uma tríplice descendência. Assim, na Europa “in Occidente[m]”</p><p>tem-se a descendência das “gentes fortissimae” e “in Oriente[m]”, “in</p><p>molle[m] Asia[m]”, aquela de “mitissimi et aequi amantissimi homines”</p><p>como os “Seres”. Mas no Ocidente é tecida, depois, uma articulação</p><p>que duplica e diferencia a fortitudo bárbara. Primeiro, porque prodiere</p><p>nações igualmente fortíssimas (“thraces, germani, parthi”) entre as</p><p>quais, porém, existiam também algumas daquelas progenitoras de uma</p><p>tendência (germânica) à liberdade depois difundida na Europa cristã.</p><p>Pelo contrário, “in asperam Europam” – uma Europa mais distante e ainda</p><p>mais áspera do que aquela nórdica, pelo que parece – manifestaram-se</p><p>“barbarae nationes” como “hunni, gotthi, heruli, longobardi, turcae”.</p><p>Uma visão semelhante permitia soluções diversas. Por um lado,</p><p>permitia inserir a nação “turca” numa constelação de nações cujas</p><p>características consentiam, pois, retomar a tradicional, canônica,</p><p>oposição “Europa-Ásia”, que o próprio Vico havia utilizado, anos antes,</p><p>na redação do De rebus gestis Antoni Caraphaei. Neste texto, “Ásia” estava</p><p>para império truco como “Europa” para Europa plenamente ocidental e</p><p>cristã: onde podiam ser unificadas potentiae adversárias inclusive, mas</p><p>não radicalmente adversas em religião e em cultura.71 Por outro lado,</p><p>aquela visão consentia dissociar melhor, do Oriente, a propagação da</p><p>humanidade bárbara americana (que Vico teria sempre “subvalorizado”,</p><p>substancialmente, em suas formas mais avançadas de civilização, a</p><p>mexicana e a peruana), aceitando, em vez disso, pelo menos em parte,</p><p>as teses de Grócio da sua imigração por terra através da Groelândia,</p><p>portanto, através das mais “ásperas” e desoladas terras europeias.72</p><p>Como foi várias vezes acenado, a maturação sistemática da</p><p>ciência das nações de Vico teria favorecido a afirmação de um olhar</p><p>unitário substancialmente interessado em encontrar a confirmação</p><p>71 Como acontecia – segundo o De rebus gestis Antonj Caraphaei – no caso da</p><p>“Galliarum potentia”, a qual, embora sempre ocupada com as suas pretensões de</p><p>hegemonia sobre os estados italianos e germanicos, permanecia uma grande nação</p><p>cristã e refinadamente culta (VICO, G. Le gesta di Antonio Carafa. Organização de</p><p>Manuela Sanna. Napoli: Guida, 1997, p.76).</p><p>72 As populações americanas setentrionais, vieram “ex Norvegia […] per</p><p>Groenlandiam terrestri itinere”. Depois, provavelmente, como “é mais crível”, se</p><p>estanciaram por todo o estreito de Magalhães: onde se fixaram – por claras razões</p><p>climáticas – os gigantes patagônicos (De const., II, XVII, [13], p.503).</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 127</p><p>de teses gerais acerca do “curso comum” das nações, e isso por meio</p><p>de procedimentos de tipo comparatista exercitados sobre materiais</p><p>permanentemente sobrepujados pela circulação dos dados relativos</p><p>aos povos não europeus (estranhos à amada e constantemente</p><p>revisitada história romana). Dentro desse procedimento, os fatores</p><p>envolvidos na “causalidade natural” e, em particular, aqueles</p><p>estritamente climáticos foram, com maior razão, repropostos com</p><p>absoluta segurança de sua relevância.</p><p>Iniciando a conclusão de um discurso já bastante prolongado,</p><p>bastará aqui lembrar alguns lugares essenciais sobre a matéria, bem</p><p>conhecidos dos leitores das três edições da Scienza nuova. Em uma</p><p>“regra de interpretação” fundamental, própria da “nova arte crítica”</p><p>definida na Scienza nuova de 1725 (no Capítulo IX do Livro II), vai</p><p>exposta uma cadeia estrita de fatores causais que, das “ações” dos</p><p>povos, por meio das “formas de seus governos” e da “natureza dos</p><p>povos governados”, remonta finalmente ao primeiro fator da “natureza</p><p>dos sitas”, “em conformidade” com os quais os diferentes povos</p><p>assumem suas índoles:</p><p>diversamente nas ilhas e nos continentes, de onde provêm dali os mais</p><p>esquivos, daqui os mais dinâmicos; diversamente nos países mediterrâneos</p><p>e nos costeiros, de onde dali se obtém agricultores, daqui mercadores;</p><p>diversamente sob climas quentes e mais etéreos e sob frios e preguiçosos,</p><p>de onde dali nascem de agudo e daqui de mais obtuso engenho.73</p><p>A esse passo conecta-se, evidentemente, aquele sucessivo (do</p><p>Capítulo LVI, do Livro II) no qual, com termos claros, é destacada a</p><p>73 Sn25, §92, p.1033. O trecho citado integralmente sublinha, em primeiro lugar, a</p><p>operação do princípio demonstrativo de que acima se falou, baseado no repúdio</p><p>à “impossibilidade”, à “torpeza”, que conduz, por outro lado, ao reconhecimento</p><p>do “dever ter”, do “dever acontecer”. Assim, o recurso à teoria dos climas se dá</p><p>aqui no interior de um dos lugares principais da definição e abordagem em</p><p>termos “demonstrativos” da ciência viquiana, mostrando o caráter indubitável</p><p>que, aos olhos do pensador napolitano, reveste o nexo causal “natureza dos</p><p>sitas/natureza dos homens”, dentro do qual se situava, também, a determinada</p><p>doutrina, bem consolidada, sobre a necessidade de que as formas dos governos</p><p>não contradissessem as modalidades pelas quais se dão aquele essencial</p><p>condicionamento causal.</p><p>128 • Enrico Nuzzo</p><p>importância de se reconstruir as formas jurídicas a fim de compreender</p><p>a totalidade dos fenômenos constitutivos das formações socioculturais</p><p>humanas, organizando-os ao longo de uma cadeia, ou disposição</p><p>serial, logicamente e, então, também temporalmente disposta em</p><p>um andamento genético (andamento factual impresso também ao</p><p>conhecimento), e exposta, portanto, em uma ordem inversa àquela</p><p>dada em precedência:</p><p>nada além da lei das XII tábuas, com um sério argumento, nos</p><p>demonstra que, se tivéssemos a história das antigas leis dos povos,</p><p>teríamos a história dos feitos antigos das nações. Porque – nascendo</p><p>da natureza dos homens os costumes, dos costumes os governos,</p><p>dos governos as leis, das leis os hábitos civis, dos hábitos civis os</p><p>fatos públicos constantes das nações, e, com uma certa arte crítica,</p><p>como aquela dos jurisconsultos, à certeza das leis reduzindo os fatos</p><p>de incerta e duvidosa razão – os verdadeiros elementos da história</p><p>parecem ser estes princípios de moral, política, direito e jurisprudência</p><p>do gênero humano, descobertos por esta nova ciência da humanidade,</p><p>sobre os quais se guia a história universal das nações, que narra os seus</p><p>surgimentos, progressos, estados, decadências e fins.74</p><p>Parece patente como, no Capítulo IX, a ordem investigada e</p><p>conquistada cognitivamente deve ser novamente descrita – seguindo</p><p>o desenvolvimento de uma tão difícil e desafiadora empresa</p><p>cognitiva – a partir das configurações do viver mais complexas</p><p>àquelas mais elementares, atingindo a sequência do seu acontecer</p><p>segundo um critério genealógico, que, enfim, deve levar não a um</p><p>fundamento historicamente comum da diversidade das nações, mas</p><p>a um propriamente natural. Uma vez conhecida tal ordem, pode ser</p><p>novamente proposta em sua sequência temporal: no interior</p><p>da qual</p><p>os “dados”, que analiticamente e sincronicamente contribuíram para</p><p>formar, em sua complexidade, a história humana, ou a história de toda</p><p>nação singular desenvolvida, vêm expostos em ordem de comparação</p><p>temporal: precisamente (a partir da natureza física) “moral, política,</p><p>74 Sn25, §208, p.1.083.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 129</p><p>direito e jurisprudência”. Por isso, a “nova ciência da humanidade” é</p><p>uma ciência constitutivamente histórica, uma ciência das nações que</p><p>se dá na forma de uma “história universal das nações”, em suma, de</p><p>uma história da civilização.</p><p>A fundação em chave “naturalística” dos específicos carácteres</p><p>“culturais” das nações (deixando estabelecido que os fenômenos</p><p>religiosos merecem sempre um discurso a parte) – das “diversas</p><p>línguas” aos “tantos costumes diversos”, frequentemente “contrários”</p><p>entre si – não é menos consistente, e acompanhada de indicações</p><p>mais particularizadas, em importantes páginas das duas versões</p><p>sucessivas: ali onde, em primeiro lugar, se estabelece e confirma</p><p>“essa grande verdade: como certamente os povos, pela diversidade</p><p>dos climas, deram vida à várias e diversas naturezas, de onde saíram</p><p>tantos costumes diversos; assim, das suas diversas naturezas e</p><p>costumes nasceram outras tantas diversas línguas”, respondendo, de</p><p>diversos modos, “às mesmas utilidades ou necessidades da vida”.75</p><p>Trata-se das páginas que concluem o Livro V das duas edições da</p><p>grande obra viquiana. Desde o início, com a indicação das razões</p><p>pelas quais, ao contrário de Roma, “esse curso das coisas humanas</p><p>civis não foi feito por Cartago, Cápua, Numância” (nos primeiros</p><p>dois casos, precisamente, por razões “materiais” e, sobretudo,</p><p>estritamente “climáticas”), aquelas páginas parecem um documento</p><p>eloquente do essencial empenho do autor na determinação dos</p><p>caracteres dos povos, dos correlativos costumes e das formas políticas</p><p>correspondentes, por um lado, fundamentado nos fatores geográficos,</p><p>por outro, tendo por base as religiões e o cultivo das artes, das letras</p><p>e das ciências. Assim, pelo menos a segunda dessas duas últimas</p><p>ordens de fatores (para a primeira as coisas permanecem mais</p><p>complicadas) parece dever remeter-se, enfim, à primeira, embora</p><p>Vico não assuma o objetivo de efetuar uma concisa abordagem das</p><p>relações causais entre fatores “naturais” e “culturais”, e de colocar em</p><p>discussão a incidência dos segundos sobre os primeiros.</p><p>Vale retornar, preliminarmente, à fenomenologia das diversas</p><p>influências dos climas: do “frio setentrional” que induz “homens</p><p>75 Sn44, §445, p.613. Este passo se lê já na segunda versão da obra: Sn30, p.168.</p><p>130 • Enrico Nuzzo</p><p>bastante duros e sofridos” (ou “de mentes indolentes”); da “Zona</p><p>temperada, onde nascem homens de ajustada natureza” (com a “relativa</p><p>moleza da Ásia”); do “Mezzogiorno” que abunda em “povos muito</p><p>débeis ou contidos” (onde também o excesso de frugalidade denota</p><p>uma condição de costumes não equilibrados). Observa-se assim uma</p><p>fenomenologia das religiões, distanciada daquela verdadeiramente</p><p>cristã, percorrendo as religiões “brandas” (como a chinesa) e as</p><p>religiões rudes “fantásticas e ferozes” (como a japonesa), ou do cultivo</p><p>das letras (entre os chineses) e das ciências (decisivas, na última versão</p><p>da Scienza nuova, para definir as razões pelas quais somente na Europa</p><p>existem muitas Republicas populares).76 No clima é reconhecido,</p><p>portanto, o fator primigênio e persistente da “diversidade”, que</p><p>deve conjugar-se com aquele “estrutural” das “próprias utilidades</p><p>e necessidades da vida” (que se dão diversamente nos diferentes</p><p>lugares naturais) segundo a sequência: “climas” – “diversas naturezas”</p><p>– “costumes diversos” (“e de tão diversos, por isso, hábitos contrários</p><p>das nações”) – “tantas diversas línguas, quanto são elas [as nações]</p><p>diversas”: línguas que não constituem, porém, horizontes de vida e</p><p>de sentido separados, porque por meio delas se dizem, “com tantos</p><p>diversos aspectos”, as mesmas experiências.77</p><p>A mais geral divisão climática é aquela tradicional, que, na</p><p>última versão da Scienza nuova, torna capital a distinção entre o “frio</p><p>Setentrião”, de onde saem “homens de mente preguiçosa” (como ocorre</p><p>em particular na “Moscóvia”), e a “zona temperada”, de “onde nascem</p><p>76 Sn30, p.367-368, Sn44, §1.088-1.092, p.953-955.</p><p>77 Sn44, §445, p.613. Isso porque – como nos lembra a dignidade XXII – uma mesma</p><p>estrutura mental dinâmica se apresenta em todas as nações, como “uma língua</p><p>mental comum a todas as nações, que uniformemente compreenda a substância</p><p>das coisas factíveis na vida humana sociável, e as explique com tantas diversas</p><p>modificações quanto são diversos os aspectos que essas coisas possam ter”</p><p>(Sn44, §161, p.503). Eis então as formas diversas da análoga representação dos</p><p>fenômenos humanos estruturais (o “histórico-estrutural”). Assim “Júpiter fulmina</p><p>e aterra os gigantes, e toda nação gentia teve um Júpiter”; “Toda nação gentia</p><p>teve um Hércules seu” etc. (Sn44, §193, 196, p.511). Pode-se dizer, portanto, que</p><p>o “dicionário mental” comum à humanidade (gentia) constitui talvez a máxima</p><p>atestação, ao menos na esfera antropológica, do universal que se dá em meio às</p><p>contingências (não absolutas) do mundo histórico, uma das manifestações mais</p><p>eloquentes do “histórico-estrutural”, das estruturas que se dão ou se formam na</p><p>história, do histórico que se deixa reconduzir às formas universais e à “ciência”.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 131</p><p>homens de ajustada medida”, que, voltando para o meridião, favorece a</p><p>“nativa agudeza africana”, como aquela dos cartagineses.78</p><p>Ao fator naturalístico climático soma-se, e com ele intervém, o</p><p>fator naturalístico geográfico-ambiental: como mostra o caso anômalo</p><p>de Cápua, condicionado, além da “moleza do céu”, pela “abundância</p><p>da Campânia feliz” (outro antecedente viquiano dos juízos sobre a</p><p>pluralidade das condições climático-geográficas das terras do Reino,</p><p>que se encontram especialmente nos iluministas napolitanos da</p><p>segunda metade do XVIII, ou em Cuoco). O fato, totalmente contíguo</p><p>aos romanos, de que os capuanos foram prevenidos pela fecundidade</p><p>da terra a não seguir o natural (historicamente natural) “curso das</p><p>coisas humanas”, mostra uma forte influência da “terra”, não segundo o</p><p>“cientístico” modelo explicativo montesquiano (composição “química”</p><p>da terra – elementos antropossomáticos), quanto, em vez disso,</p><p>segundo o modelo: produtividade do solo – abundância de recursos –</p><p>delicadeza dos costumes.79</p><p>Para além da consistência e importância de tais premissas</p><p>“naturalísticas”, a ciência viquiana do mundo das nações as reclamava</p><p>e as reconduzia, todavia, dentro das sequências do curso histórico e</p><p>do retroagir da “história” sobre a “natureza”. Tal curso prevê o mover-</p><p>se de todas as nações na direção da “causa final” de “uma completa</p><p>humanidade” (curso que, por certo, não é uma garantia, mas pode ser</p><p>“interrompido por causas extraordinárias”), mas admite, também, a</p><p>aceleração na obtenção desta “humanidade”, que “parece estar difusa</p><p>por todas as nações, já que poucos grandes monarcas regem esse mundo</p><p>dos povos”, nisso assistidos principalmente por formas “universais”,</p><p>78 Sn44, §1.088-1.091, p.953-954; Sn30, p.367-369.</p><p>79 Sn44, §1.088, p.953. Como foi indicado, Vico recorre largamente às teorias</p><p>relativas à transmissão dos caracteres da composição da “terra” às “fibras” do corpo</p><p>humano. Da tradição “hipocrático-galênica” da teoria dos climas Vico assumia a</p><p>temática essencial da influência do “céu”, do “ar”, largamente retomada e renovada</p><p>no Settecento, deixando à parte a temática dos “ventos” também largamente</p><p>presente nas derivações, do início da modernidade, da teoria dos climas (Bodin</p><p>etc.). No século XVIII, no quadro da retomada e revisitação das teorias climáticas,</p><p>seria adensada a pesquisa sobre as influências dos ares. Mas Vico, ao menos nas</p><p>primeiras duas edições da sua obra prima, não podia ter</p><p>conhecido os ecos da obra</p><p>de Arbuthnot, An Essay Concerning the Effects of Air on Human Body, de 1733, nem</p><p>mesmo pela tradução francesa de Boyer de Pebandrié, Essai des effets de l’airs sur</p><p>le corps humain, de 1742.</p><p>132 • Enrico Nuzzo</p><p>“universalizantes”, de religiões, como aquela cristã, ou aquela “branda”</p><p>dos chineses, assim como, do mesmo modo, o cultivo das “letras” ou das</p><p>“ciências” constitui um análogo fator cultural de extremo relevo.80</p><p>O pensador napolitano imprimia sobre os caracteres das nações,</p><p>em geral, o signo possante da força do “histórico”. Em primeiro lugar, do</p><p>“histórico sacro”, por assim dizer, essencial para se entender a gênese,</p><p>a propagação e a caracterização das nações gentias, em seguida, bem</p><p>mais problematicamente, para se entender a incidência (bastante</p><p>problemática inclusive na modernidade) que tiveram as “verdadeiras”</p><p>religiões monoteístas na vida das nações, mas também as pagãs, como</p><p>aquela branda dos chineses (que enfim se reporta à delicada natureza</p><p>climática daquelas distantes extensões de terra). Em segundo lugar,</p><p>do “histórico evenemencial”, por assim dizer, como eloquentemente</p><p>atestam os exemplos de Numância (logo que “os numantinos, [...] sobre</p><p>o seu primeiro florescer de heroísmo, foram oprimidos pela potência</p><p>romana”) ou aquele mais recente dos Americanos.81 Em terceiro</p><p>lugar, também do “histórico-político”, já que a prudência política, nos</p><p>tempos nos quais pôde reflexivamente se afirmar, pôde contribuir para</p><p>conservar, ou melhor, para dispor, aparelhar e fixar os caracteres dos</p><p>povos. Mas era a “ordem histórica estrutural” do “curso natural das</p><p>coisas civis humanas” isso a que era necessário apelar, e – novidade</p><p>absolutamente admirável – ordem histórica do dar-se e formar-</p><p>se da própria estrutura da mente humana. Porque – como vimos</p><p>precisamente – o “dicionário mental” comum à humanidade, em seu</p><p>acontecer e constituir-se efetivamente sobre o fundamento conativo</p><p>da vis veri, representa, na mais profunda forma comum do humano,</p><p>a presença do universal, do eterno, que só se dá na vicissitude de</p><p>80 Sn44, §1.089, 1.091, p.954-955. Por outro lado, o modelo romano, favorecido</p><p>pelo clima temperado, é um modelo temporal alheio à intervenção dos fatores</p><p>históricos externos, de tal modo que pôde proceder com “justo passo”.</p><p>81 Vale lembrar que Vico assimilava os povos americanos (alguns ao menos) muito</p><p>próximos da maturidade por terem saído do patriarcado, isto é, de uma condição</p><p>de articulação social não conflitiva, em cuja imersão não se pode caminhar em</p><p>direção à “potestade civil”. Vico, como assinalava Landucci, indicando a presença</p><p>de fâmulos-escravos nas “famílias” dos Americanos no tempo da descoberta</p><p>pelos europeus e, portanto, que já haviam abandonado o estado das “famílias só</p><p>de filhos”, tornava “plausível um avanço daqueles povos rumo a ‘potestade civil’”</p><p>(LANDUCCI, S. I filosofi e i selvaggi. 1580-1780. Bari: Laterza, 1972, p.285).</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 133</p><p>acontecimento humano, mesmo assim, alheio à opacidade da insensatez</p><p>e da indecifrabilidade do acidental: acontecimento inacreditavelmente</p><p>objeto de uma ciência segura sobre o mundo das nações.</p><p>Vico confirma-se assim um extraordinário e inovador “pensador</p><p>do tempo”, da ordem do tempo humano. E pode-se dizer com isso que,</p><p>de certo modo, ele “temporaliza” também o “natural” e o “espacial”,</p><p>deslocando-os para uma escala diacrônica: pelo menos aqueles que</p><p>são os caracteres naturais antropológicos, que encontram sua matriz</p><p>originária na naturalidade climática. E, com efeito, a tripartição rude-</p><p>forte-delicado se dispõe como uma das mais gerais e relevantes</p><p>sequências temporais. Nesse sentido, também ela se coloca como um</p><p>objeto primário da ciência do dinâmico mundo civil das nações. Mas</p><p>para tal ciência, enquanto é ela o instrumento de uma filosofia que</p><p>deve “auxiliar o gênero humano”, aquela sequência deve ser objeto e</p><p>ocasião de uma severa e aflita advertência a precaver-se da queda nas</p><p>insidiosas extenuações da moleza (a “moleza dos nossos tempos”82), na</p><p>decadência de uma extrema “delicadeza” desmemoriada da sã rudeza</p><p>de costumes frugais e da virtuosa fortaleza de comunidades civis</p><p>encaminhadas rumo à conquista do verdadeiro-justo. Não reagindo</p><p>às insidias e ameaças daquela decadência, o providencial “remédio”</p><p>último – como bem sabemos – será o regenerar-se da humanidade,</p><p>perdida e dispersa na “natureza” alheia, na “grande selva” da terra.</p><p>Tradução do italiano:</p><p>Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Referências</p><p>Obras de Vico</p><p>VICO, G. Oratio IV (Or. IV). In: ______. Le orazioni inaugurali, I-VI. Organização e tra-</p><p>dução italiana de G. Visconti. Bologna: Il Mulino, 1982, p.146-165.</p><p>VICO, G. Oratio V (Or. V). In: ______. Le orazioni inaugurali, I-VI. Organização e tradu-</p><p>ção italiana de G. Visconti. Bologna: Il Mulino, 1982, p.167-187.</p><p>VICO, G. De nostri temporis studiorum ratione (De rat.). In: ______. Opere. Organiza-</p><p>ção de Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990, p.87-215.</p><p>82 Sn44, §796, p.818.</p><p>134 • Enrico Nuzzo</p><p>VICO, G. Vita di Giambattista Vico scritta da se medesimo (Vita). In: ______. Opere.</p><p>Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990, p.5-85.</p><p>VICO, G. De antiquissima italorum sapientia (De ant.). In: ______. Opere filosofiche.</p><p>Organização de Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze: Sanso-</p><p>ni, 1971, p.55-130.</p><p>VICO, G. Risposta di Giambattista Vico all’articolo X del tomo VIII del “Giornale de’</p><p>Letterati d’Italia” (Risp. II). In: ______. Opere filosofiche. Organização de Paolo Cristo-</p><p>folini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze: Sansoni, 1971, p.145-168.</p><p>VICO, G. Sinopsi del diritto universale (Sin.). In: ______. Opere giuridiche. Organiza-</p><p>ção de Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze: Sansoni, 1974,</p><p>p.3-16.</p><p>VICO, G. De universi iuris uno principio et fine uno (De uno). In: ______. Opere giuri-</p><p>diche. Organização de Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze:</p><p>Sansoni, 1974, p.17-345.</p><p>VICO, G. De constantia Iurisprudentis (De const.). In: ______. Opere giuridiche. Or-</p><p>ganização de Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze: Sansoni,</p><p>1974, p.347-731.</p><p>VICO, G. Le gesta di Antonio Carafa (De reb.). Organização de Manuela Sanna. Na-</p><p>poli: Guida, 1997.</p><p>VICO, G. Princìpj di una Scienza nuova d’intorno alla natura delle nazione (Sn25).</p><p>In: ______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990,</p><p>p.975-1166.</p><p>VICO, G. La Scienza Nuova 1730 (Sn30). Organização de Paolo Cristofolini com a</p><p>colaboração de Manuela Sanna. Napoli: Guida, 2004.</p><p>VICO, G. Princìpj di Scienza nuova d’intorno alla comune natura delle nazione</p><p>(Sn44). In: ______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori,</p><p>1990, p.411-971.</p><p>VICO, G. Epistole (Epist.). Organização de Manuela Sanna. Napoli: Morano, 1992.</p><p>Outras obras</p><p>ANTONI, C. La struttura dell’individuo. In: ______. Commento a Croce. Venezia: Neri</p><p>Pozza, 1955.</p><p>ANTONI, C. Lo storicismo. Torino: Edizioni radio italiana, 1957.</p><p>GALILEI, G. Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo. In: ______. Le opere di</p><p>Galileo Galilei. Edição nacional organizada por A. Favaro. Firenze: G. Barbera, tomo</p><p>VII, 1933, p.21-545.</p><p>LANDUCCI, S. I filosofi e i selvaggi. 1580-1780. Bari: Laterza, 1972.</p><p>NUZZO, E. Mediterraneo e caratteri dei popoli. Paradigmi della misura alle origini</p><p>del modello “etno-geografico-climatico”. In: BUFALO, R.; CANTARANO, G.; COLON-</p><p>NELLO, P. (orgs.). Natura storia società. Studi in onore di Mario Alcaro. Milano-</p><p>-Udine: Mimesis, 2010, p.109-145.</p><p>Os caracteres dos povos na nova ciência das nações de Vico • 135</p><p>NUZZO, E. Tra geografia e storia. Caratteri delle nazioni e identità patrie in Gaetano</p><p>Filangieri. In: AMODIO, P.; D’ANTUONO, E.; GIANNINI, G. (orgs.). L’etica come fonda-</p><p>mento. Scritti in onore di Giuseppe Lissa. Napoli: Giannini Editore, 2012, p.25-32.</p><p>NUZZO, E. Gli “Sciti” e i “Chinesi” di Vico.</p><p>Diana se debruça especificamente sobre a crítica</p><p>de Vico ao cogito, espera, porém, da sua delimitação e do exame das</p><p>consequências que dela decorre, extrair implicações para além de</p><p>Vico e sua época. O filósofo napolitano mostra contra Descartes que</p><p>a “consciência” resultante da experiência do “eu penso” não oferece</p><p>jamais uma ideia clara do meu ser, mas é só um sintoma, mero indício,</p><p>uma vez que, como prescrito pelo princípio do verum-factum, não sou</p><p>eu, no momento do cogito, causa do meu “ser” pensamento, portanto,</p><p>não adquiro daquele modo nenhum conhecimento per causas e</p><p>nem qualquer ciência. Diana considera que Vico, apesar disso, não</p><p>esvazia o significado antropológico e fundamental do cogito, mas o</p><p>despotencializa ao admiti-lo simples “consciência”, ademais, vê nessa</p><p>contração do cogito o signo mesmo do gênio viquiano: um prenuncio</p><p>das discussões da neurociência contemporânea acerca da consciência</p><p>e um prognóstico do efeito dramático de duplicação ou cisão dos</p><p>personagens em Beckett. Sobre esse aspecto o texto de Diana se integra</p><p>perfeitamente àquele de Megale dando prosseguimento à investigação</p><p>Prefácio • 15</p><p>das latências viquianas e, em especial, as da noção de “consciência”</p><p>resultante da crítica a Descartes.</p><p>Na continuação destes três estudos sobre o De antiquissima,</p><p>sobremodo atentos à modernidade da metafísica (dessubstancia-</p><p>lizadora) do verum-factum e às suas latências para o pensamento</p><p>contemporâneo, está o capítulo de Andrey Ivanov sobre os “antece-</p><p>dentes mediaveis” do verum-factum viquiano. O autor indica Filon</p><p>de Alexandria, Agostinho e Tomás de Aquino como fontes cruciais</p><p>do princípio viquiano, ajudando assim a dar forma e volume à con-</p><p>vicção de Vico na “Conclusão” do De antiquissima de que se tratava</p><p>aquela de uma metafísica Christianae pietate commodam (conforme</p><p>à religião cristã). Se o texto de Ivanov, por um lado, contrasta com a</p><p>linha argumentativa dos capítulos precedentes mais interessada no</p><p>Vico “moderno”, por outro lado, coloca-nos diante de um exemplo</p><p>da dialética a partir da qual o napolitano estrutura, em geral, o seu</p><p>filosofar, ou seja, sempre disposto ao exercício da libertas philoso-</p><p>phandi, tal como ensinado pelos cartesinos, mas nunca preparado a</p><p>abandonar a tradição e o exercício enciclopédico de erudição.</p><p>Pierre Girard aparece logo em seguida com seu capítulo</p><p>sobre o cartesianismo e o anticartesianismo de Vico. Escapando às</p><p>formulas convencionais da abordagem do legado cartesiano de Vico,</p><p>discutido geralmente nos termos do anticartesianismo estrito, o</p><p>texto de Girard põe o destaque sobre a dualidade e a bivalência com</p><p>a qual o napolitano se apropria da filosofia de Descartes e estabelece</p><p>uma espécie de equilíbrio dinâmico. Não parece convencional</p><p>também o ângulo pelo qual Girard considera o anticartesianismo de</p><p>Vico: como se o autor da Scienza nuova desse curso e se alinhasse</p><p>aos posicionamentos críticos e de revisão do cartesianismo em</p><p>voga no círculo científico-naturalista dos Investiganti, perspectiva</p><p>analítica que tem por mérito sublinhar as interconexões de Vico com</p><p>a cultura filosófica do seu tempo, da sua Nápoles, e de combater a</p><p>improdutiva pecha do “gênio solitário”, clássica fonte de leituras</p><p>anacrônicas. A hipótese desenvolvida por Girard é a de que a crítica</p><p>a Descartes dar-se-ia a partir de razões genuinamente cartesianas.</p><p>Decorreria do próprio acolhimento das preocupações práticas e</p><p>concretas da ciência cartesiana a razão principal para Vico se opor à</p><p>16 • Humberto Guido | Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>metafísica cartesiana e ao método matemático da física, bem como à</p><p>sua medicina mecanicista; desse mesmo acolhimento sairia o projeto</p><p>de uma Scienza nuova, assimilada, a partir do excelente estudo</p><p>de Girard, como uma espécie de expansão do esforço científico</p><p>cartesiano a novos domínios designados como inerentes ao “confuso”</p><p>e ao “obscuro”.</p><p>O capítulo conclusivo, de Manuela Sanna, compendia para o</p><p>público brasileiro e lusófono seu último estudo sobre a “imaginação”</p><p>publicado na Itália. Os argumentos de Sanna dirigem-se ao estudo</p><p>da “fantasia” em Vico: do seu estatuto de faculdade da mente e das</p><p>relações que ela supõe com outras faculdades como a memória e o</p><p>próprio entendimento. Ainda que se deva reconhecer o problema do</p><p>erro e a possibilidade da distorção do material imaginativo, questão</p><p>sobre a qual Sanna discorre longamente, Vico, em particular, não</p><p>distinguiria de maneira ascendente a relação entre imaginar e entender,</p><p>permitindo presumir que a conquista do pensamento abstrato, de tipo</p><p>intelectual, não representa a superação do saber imaginativo. Segundo</p><p>a autora, estaria sim na complementariedade de imaginar e entender a</p><p>chave da racionalidade para Vico. O trabalho de Sanna ainda se destaca</p><p>na medida em que extrapola o âmbito da filosofia viquiana e toma a</p><p>proporção de uma reflexão global sobre o problema da imaginação</p><p>em âmbito moderno e sobre seus desdobramentos para a filosofia</p><p>contemporânea.</p><p>O livro contou com o financiamento do Programa da CAPES</p><p>destinado ao apoio de eventos no país (PAEP 23038.001483/2012-80)</p><p>e da EDUFU, e faz parte das atividades do Grupo de Estudos sobre a</p><p>filosofia de G. Vico brasileiro, sediado na Universidade Federal de</p><p>Uberlândia, no mister de consolidar os estudos viquianos no Brasil e</p><p>contribuir para que a Língua Portuguesa se torne, também, cada vez</p><p>mais, língua dos estudos viquianos.</p><p>Humberto Guido</p><p>Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Primeira parte</p><p>Natureza e História</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 19</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico</p><p>Alberto Mario Damiani*</p><p>As teorias filosófico-políticas costumam encontrar-se estreita-</p><p>mente conectadas com determinadas concepções antropológicas. No</p><p>começo da modernidade pôde-se registrar uma transformação signi-</p><p>ficativa em tais concepções. Para apresentar esquematicamente essa</p><p>transformação pode-se dizer o seguinte. De modo geral, os antigos</p><p>identificavam o ser humano com um animal político e, portanto, sus-</p><p>tentavam que a pólis é uma realidade natural. Os modernos, em con-</p><p>trapartida, afirmam, por um lado, que o ser humano carece de toda</p><p>obrigação natural de obediência política e, por outro, que o Estado é</p><p>artificial. Mediante essa transformação moderna, o estabelecimento da</p><p>pólis deixa de estar garantido ontologicamente, como o cenário natural</p><p>correspondente à racionalidade humana. A existência do corpo políti-</p><p>co passa a depender de um ato voluntário de indivíduos isolados. Por</p><p>isso, muitos pensadores modernos creem necessário eliminar o pres-</p><p>suposto clássico da politicidade natural ao sustentarem que o Estado</p><p>político é uma obra surgida da vontade humana. Frente a essa tendên-</p><p>cia geral do pensamento político dos Séculos XVII e XVIII, Giambattista</p><p>Vico associa coerentemente a sociabilidade natural dos antigos com o</p><p>estado artificial dos modernos.</p><p>Por meio deste capítulo espero poder contribuir para esclarecer</p><p>a convergência da sociabilidade natural do homem e a artificialidade</p><p>do mundo civil na concepção política do filósofo italiano. Para isso,</p><p>* Professor adjunto de Filosofia Política da Facultad de Filosofía y Letras da</p><p>Universidad de Buenos Aires, professor titular de Historia da Filosofia Moderna da</p><p>Facultad de Humanidades y Artes da Universidad Nacional de Rosario e Pesquisador</p><p>Principal do Conicet.</p><p>20 • Alberto Mario Damiani</p><p>começarei reconstruindo brevemente a posição de Vico dentro da</p><p>polêmica filosófica sobre a sociabilidade natural do ser humano.</p><p>Em seguida, apresentarei e tentarei responder à questão da</p><p>compatibilidade entre as noções de estado selvagem e sociabilidade</p><p>natural. Por último, examinarei o desenvolvimento dessa sociabilidade</p><p>em conexão com a teoria viquiana do governo e suas formas.</p><p>I</p><p>Vico apresenta a polêmica sobre a sociabilidade natural do ser</p><p>humano como uma discussão sobre a existência do direito natural</p><p>no quinto axioma da Scienza nuova (1744).1 Para compreender a</p><p>posição de Vico</p><p>In: ARMANDO, D.; MASINI, F.; SANNA, M.</p><p>(orgs.). Vico e l’Oriente: Cina, Giappone, Corea. Roma: Tiellemedia, 2008, p.301-335</p><p>NUZZO, E. Vico e il “mito veneziano”. In DE MICHELIS, C.; PIZZAMIGLIO, G. (orgs.).</p><p>Vico e Venezia. Firenze: Olschki, 1982, p.199-222.</p><p>NUZZO, E. La tradizione filosofica meridionale. In: AAVV. Storia del Mezzogiorno.</p><p>Napoli: Edizioni del Sole, vol. X, tomo III, 1992, p.17-127.</p><p>NUZZO, E. Tra il corpo “sformato” e l’universale “informe”. L’indiffinita forma della</p><p>mente umana in Vico. In: AAVV. Filosofia e storiografia. Studi in onore di Giovanni</p><p>Papuli. L’Età moderna. Galatina: Congedo, 2008, tomo II, p.263-277.</p><p>NUZZO, E. I segni delle storie in Vico. Il Pensiero, nuova serie, vol. XLI, p.17-30,</p><p>2002.</p><p>NUZZO, E. Dalla storia metafisica alla storia civile. I segni delle storie in Vico. In:</p><p>______. Tra religione e prudenza. La “filosofia pratica” di Giambattista Vico. Roma:</p><p>Edizioni di Storia e Letteratura, 2007, p.1-17</p><p>NUZZO, E. Gli “eroi ossimorici” di Vico. In: ______. Eroi ed età eroiche attorno a Vico.</p><p>Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2004, p.189-216.</p><p>NUZZO, E. Le logiche dell’impossibile e del necessario. Vico e la decifrazione dei</p><p>tempi favolosi attorno al primo ‘700. Bollettino filosofico, Cosenza, v.15, tomo II,</p><p>p.205-233, 1999.</p><p>NUZZO, E. Die Logiken der Unmöglichen und des Notwendigen. Vico und die Ent-</p><p>zifferung der “sagenhaften Zeiten” zu Beginn des 18 Jahrhunderts. In: BEETZ, M.;</p><p>CACCIATORE, G. (orgs.). Die Hermeneutik im Zeitalter der Aufklärung. Köln-Wei-</p><p>mar-Wien: Böhlau Verlag, 2000, p.287-309.</p><p>NUZZO, E. La “critica di severa ragione” nella scienza della storia. Vico e l’ “erme-</p><p>neutica” dei tempi favolosi attorno al primo ‘700. In: ______. Tra ordine della storia</p><p>e storicità. Saggi sui saperi della storia in Vico. Roma: Edizioni di Storia e Lettera-</p><p>tura, 2001, p.57-108.</p><p>NUZZO, E. L’immaginario naturalistico. Criteri e figure della scienza della storia in</p><p>Vico. Bollettino del Centro di Studi Vichiani, Napoli, vol. XXXIV, p.35-56, 2004.</p><p>NUZZO, E. Critères et figures de la science de l’histoire chez Vico. Noesis. La Scienza</p><p>Nuova de Giambattista Vico. Organização de Andre Tosel. Nice, v.8, 2005. Disponí-</p><p>vel em: http://noesis.revues.org/index127.html. Acesso em: 02 março de 2006.</p><p>NUZZO, E. Lo studioso di Vico. In: TESSITORE, F. (org.). L’opera di Pietro Piovani.</p><p>Napoli: Morano, 1990, p.207-312.</p><p>NUZZO, E. Gli studi vichiani di Pietro Piovani. In: ______. Tra ordine della storia e sto-</p><p>ricità. Saggi sui saperi della storia in Vico. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura,</p><p>2001, p.241-326.</p><p>NUZZO, E. Vico, la storia, gli storicismi In: ______. Tra ordine della storia e storicità. Saggi</p><p>sui saperi della storia in Vico. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2001, p.1-55.</p><p>136 • Enrico Nuzzo</p><p>NUZZO, E. Vico, la storia, lo storicismo. In: CACCIATORE, G.; CANTILLO, G.; LISSA, G.</p><p>(orgs.). Lo storicismo e la sua storia. Temi, problemi, prospettive. Milano: Guerini,</p><p>1997, p.50-68.</p><p>NUZZO, E. Between Orthodoxy and Heterodoxy in Italian Culture in the Early</p><p>1700s: Giambattista Vico and Paolo Mattia Doria. In: MORTIMER, S; ROBERTSON,</p><p>J. (orgs.). The Intellectual Consequences of Religious Heterodoxy 1650-1750. Leiden-</p><p>-Boston: Brill, 2012, p.205-234.</p><p>NUZZO, E. L’umanità di Vico tra le selve e le città. Agli inizi della storia della civiltà</p><p>nel “Diritto universale”. In: ______. Tra ordine della storia e storicità. Saggi sui saperi</p><p>della storia in Vico. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2001, p.109-164,</p><p>NUZZO, E. La filosofia pratica di Vico tra religione e prudenza. In: ______. Tra religio-</p><p>ne e prudenza. La “filosofia pratica” di Giambattista Vico. Roma: Edizioni di Storia</p><p>e Letteratura, 2007, p.211-231.</p><p>NUZZO, E. Figuras de la barbarie. Lugares y tiempos de la barbarie en Vico. Cuader-</p><p>nos sobre Vico, Sevilla, v.15-16, p.151-162, 2003.</p><p>NUZZO, E. Lugares e tempos da barbárie em Vico. In: GUIDO, H.; SEVILLA, J. M.; SIL-</p><p>VA NETO, S. A. (orgs.). Embates da Razão: mito e filosofia na obra de Giambattista</p><p>Vico. Uberlândia: EDUFU, 2012, p.35-53.</p><p>NUZZO, E. Spazi e tempi del Mediterraneo nella storia vichiana della civiltà. Il “Di-</p><p>ritto Universale”. Bollettino del Centro di Studi Vichiani, Roma, v.XXXIX, n.2, p.7-69,</p><p>2009.</p><p>PINNA, M. La teoria dei climi. Una falsa dottrina che non muta da Ippocrate a Hegel.</p><p>Roma: Società geografica italiana, 1988.</p><p>PIOVANI, P. Il debito di Vico verso Roma. Studi romani, Roma, v.XVII, p.1-17, 1969.</p><p>PIOVANI, P. La filosofia nuova di Vico. Organização de Fulvio Tessitore. Napoli: Mo-</p><p>rano, 1990.</p><p>SASSI, M. M. La scienza dell’uomo nella Grecia antica. Torino: Bollati Boringhieri,</p><p>1988.</p><p>TRABANT, J. La science de la langue parle l’histoire idéale éternelle. Noesis. La Scien-</p><p>za Nuova de Giambattista Vico. Organização de Andre Tosel. Nice, v.8, 2005. Dispo-</p><p>nível em: http://noesis.revues.org/index127.html. Acesso em: 02 março de 2006.</p><p>VANZULLI, M. Caso e necessità nella nuova scienza vichiana. Quaderni materialisti,</p><p>Milano, v.I, p.7-42, 2002.</p><p>VANZULLI, M. La scienza di Vico. Il sistema del mondo civile. Milano: Mimesis, 2006.</p><p>VASAK, A. Météreologies. Discours sur le ciel et le climat, des Lumières au Roman-</p><p>tisme. Paris: Champion, 2007.</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico • 137</p><p>A eterna república natural:</p><p>direito, natureza e história nas obras de Vico</p><p>Humberto Guido*</p><p>Os escritos filosóficos de Giambattista Vico (1668-1744)1</p><p>oferecem a oportunidade para um primeiro contato com o esforço</p><p>de crítica à confiança incondicional no progresso da razão e de suas</p><p>conquistas científicas. Antes de Hume e Kant, é possível constatar</p><p>nas páginas de Vico a advertência para que se considere os limites</p><p>do conhecimento humano, que não pode ser assumido como a</p><p>expressão definitiva da verdade das coisas.2 A postura de Vico</p><p>ganhou contorno, logo em seus primeiros trabalhos publicados</p><p>em 1709 e 1710, especialmente o livro de 1710 que deveria ser</p><p>o primeiro de uma trilogia ambiciosa intitulada Da antiquíssima</p><p>sabedoria dos italianos, cujas partes seriam: o livro metafísico, o livro</p><p>físico e o livro moral. Apenas o livro metafísico chegou ao público</p><p>naquele ano,3 cabendo-lhe, portanto, o título da obra pensada em</p><p>* Professor titular do Instituto de Filosofia e do Progama de Pós-graduação em</p><p>Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia. Este trabalho teve o apoio do CNPq.</p><p>1 Uma apresentação crítica do perfil filosófico de Vico pode ser encontrada em</p><p>meu livro: GUIDO, H. Giambattista Vico, a filosofia e a educação da humanidade.</p><p>Petrópolis: Vozes, 2004.</p><p>2 Séculos depois, em 1911, Husserl publicou um artigo em que condenava a</p><p>pretensão naturalista positivista de querer reduzir a filosofia à ciência positiva,</p><p>essa motivação prendia-se à ideia de progresso tipicamente iluminista, contudo</p><p>questionável quanto aos seus resultados nas esferas teóricas e práticas, dizia</p><p>Husserl: “Não há, sem dúvida, no mundo contemporâneo uma ideia em que o</p><p>progresso seja mais potente, mais irresistível, do que no ideal científico. Nada</p><p>detém a sua marcha triunfal” (HUSSERL, E. La philosophie comme science rigoreuse.</p><p>Tradução francesa de Marc B. de Launay. Paris: PUF, 1989, p.22).</p><p>3 Conforme Paolo Rossi, o livro físico limitou-se ao esboço redigido por volta de</p><p>1713, intitulado De aequilibrio corporis animantis, porém, tal texto se perdeu;</p><p>o livro moral, acredita-se, nunca chegou a ser escrito (ROSSI, P. Le sterminate</p><p>antichità, studi vichiani. Pisa: Listri-Nischi, 1969, p.32).</p><p>138 • Humberto Guido</p><p>seu conjunto: De antiquissima italorum sapientia ex linguae latinae</p><p>originibus eruenda.4</p><p>O título do livro de 1710 parece sugerir a ênfase na</p><p>sabedoria inatingível dos antigos italianos e na origem erudita da</p><p>língua latina, porém, o que toma corpo na exposição é a crítica ao</p><p>cartesianismo valendo-se de um argumento extraído da tradição</p><p>humanista renascentista. A escolha de Vico não incorreu em um</p><p>tema recorrente da época, a querelle des anciens et</p><p>des modernes,</p><p>em voga principalmente nas disputas literárias. O procedimento</p><p>norteador do livro metafísico foi o confronto entre a ciência divina</p><p>e a ciência humana: a primeira detém a verdade absoluta do mundo</p><p>natural em sua ordem perfeita e eterna, a segunda consiste no</p><p>esforço permanente da mente humana para obter o conhecimento do</p><p>funcionamento da natureza.</p><p>Vico ilustrou a diferença abissal entre as duas ciências</p><p>recorrendo às obras de arte, ele dizia que a verdade divina era um</p><p>plasmar em relevo que produz “a imagem sólida das coisas”, enquanto</p><p>que o conhecimento humano se assemelha a “um monograma ou a</p><p>uma imagem plana, quase uma pintura”.5 Apesar do aparente desdém</p><p>pela ciência humana, Vico foi enfático na exaltação de sua força</p><p>ilimitada, capaz de extrair da natureza o conhecimento necessário</p><p>para a comodidade da vida em sociedade, além do que, a matemática</p><p>e a geometria – os componentes da imagem plana – eram suficientes</p><p>para a criação do mundo físico, ou seja, a quase pintura, isto é, a</p><p>representação rigorosa do mundo natural, cujo critério de verdade é</p><p>a própria mente humana que se encarrega de tais representações. A</p><p>afirmação de Vico trazia consigo o argumento renascentista do verum</p><p>ipsum factum, ou, verum et factum convertuntur.6</p><p>4 VICO, G. De antiquissima italorum sapientia. Organização e tradução italiana de</p><p>Manuela Sanna. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2005 (de agora em diante</p><p>De ant.).</p><p>5 De ant., p.17.</p><p>6 Rodolfo Mondolfo realizou um estudo minucioso a respeito da teoria do verum</p><p>ipsum factum, começando por Marcilio Ficino e culminando em Vico. Contudo, na</p><p>introdução de seu livro, Mondolfo afirma que já na antiguidade a relação entre</p><p>conhecer e fazer ocupava a atenção dos primeiros filósofos (MONDOLFO, R. Il</p><p>“verum-factum” prima da Vico. Nápoles: Guida, 1969, p.9).</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico • 139</p><p>A crítica ao cartesianismo exposta no livro de 1710 não se</p><p>colocava para fora do horizonte racionalista, pois, a teoria do verum-</p><p>factum atestava a dignidade da mente humana, dotada de autonomia</p><p>e capaz de criar o mundo das grandezas matemáticas.7 O argumento</p><p>em questão é fecundo e está apoiado na convicção da força inata da</p><p>mente humana, e, portanto, o critério e a norma da verdade é tê-la</p><p>feito, ou dito de outro modo, só é possível conhecer verdadeiramente</p><p>aquilo que se faz, pois, só se pode admitir como verdadeiro o que “deve</p><p>a sua existência à mente pela qual tem sido conhecido”.8 O princípio</p><p>do verum-factum ficou à margem dos novos intentos viquianos,</p><p>e só retornaria depois de uma década, no momento em que Vico</p><p>abandonava a via negativa dos seus estudos metafísicos, empenhado</p><p>que estava na crítica do cartesianismo.</p><p>Um ano antes do livro metafísico de 1710, Vico havia publicado</p><p>a aula inaugural proferida na Universidade Régia de Nápoles em 18</p><p>de outubro de 1708, cujo argumento-título era De nostri temporis</p><p>studiorum ratione, na quarta seção dessa obra aparece em germe o</p><p>princípio basilar da epistemologia viquiana: “demonstramos as coisas</p><p>da geometria porque as fazemos”.9 Nos dois escritos mencionados,</p><p>o princípio viquiano estava limitado pelo formalismo lógico das</p><p>verdades apodíticas, cuja serventia era a confirmação da exatidão das</p><p>representações matemáticas do mundo natural.</p><p>O factum como explicação das coisas proporciona o conhecimento</p><p>da gênese delas, pois, o ato de conhecer não se limita à representação</p><p>das grandezas físicas, as quais são impressas no intelecto graças às</p><p>ficções matemáticas originadas do ponto e da linha, duas criações</p><p>abstratas da mente humana que eram suficientes para a delimitação</p><p>da realidade metafísica, pela qual a ciência humana conhece a criação</p><p>divina, contudo, sem atingir a essência do ato da criação do mundo</p><p>7 Dez anos antes, em uma aula inaugural do ano letivo da Universidade Régia de</p><p>Nápoles, Vico havia afirmado que “Deus é o criador da natureza; o ânimo [humano],</p><p>me seja consentido dizê-lo, é o Deus criador das artes” (VICO, G. Oratio I. In: ______.</p><p>Le orazioni inaugurali I-VI. Organização e tradução italiana de G. Visconti. Bolonha:</p><p>Il Mulino, 1982, p.81).</p><p>8 De ant., p.29.</p><p>9 VICO, G. De nostri temporis studiorum ratione. In: ______. Opere. Organização de</p><p>Andrea Battistini. Milão: Mondadori, 2007, p.117.</p><p>140 • Humberto Guido</p><p>natural.10 No livro de 1710 o verum-factum limitava-se à constatação</p><p>do movimento ideal do intelecto humano, que se valendo das duas</p><p>grandezas metafísicas constrói a representação física da natureza, na</p><p>mesma operação a mente humana reconhece a perfeição do intelecto</p><p>divino e também a agudeza das operações dela própria, para a qual</p><p>o pensar e o fazer constituem-se em unidade plena, similar à mente</p><p>infinita de Deus. Contudo, naquele livro o fazer humano apenas</p><p>demonstrava a perfeição da ordem natural da criação divina.</p><p>No início da década de 1720, pouco antes da primeira edição</p><p>da Scienza nuova, Vico deu expressão a um novo projeto, dessa vez</p><p>destinado à investigação dos princípios do direito natural das nações</p><p>gentias. O novo projeto obteve êxito e foi publicado integralmente sob o</p><p>título Il diritto universale, com a seguinte estrutura: a Sinopsi del diritto</p><p>universale (1720); o livro primeiro, De universis iuris uno principio et</p><p>fine uno (1720); o livro segundo, De constantia iurisprudentis (1721),</p><p>e o terceiro livro composto de notas aos volumes anteriores (1722).</p><p>A crítica viquiana reconhece no segundo livro do Diritto universale a</p><p>antecipação da obra prima, a Scienza nuova, com suas três edições:</p><p>1725, 1730 e 1744. Portanto, na passagem da obra jurídica para a</p><p>Scienza nuova11 reaparece com melhor aplicação o princípio do verum</p><p>ipsum factum, sendo esse o princípio norteador da pesquisa da verdade</p><p>sobre o mundo civil, uma verdade histórica em conformidade com a</p><p>ordem natural do entendimento humano. A investigação das origens</p><p>do direito natural das gentes, feita a partir da reconstituição do direito</p><p>romano, proporcionou a potencialização daquele princípio, indo</p><p>além do dualismo demonstração-representação, para se constituir</p><p>em explicação da gênese e do desenvolvimento do mundo civil.</p><p>Finalmente, o fazer mostra-se como a verdade das coisas civis públicas</p><p>10 Nicola Badaloni comentou essa articulação entre a criação divina e a ciência</p><p>humana: “O impulso do conatus da alma do mundo sobre a nossa mente dá lugar</p><p>à ordem que esta pode criar no âmbito da aritmética, da geometria, da mecânica,</p><p>[...]. Quando se tem consciência da finitude do nosso cigitare, que é ‘sinal’ do nexo</p><p>entre movimentos ideais e realidade, o fingir [ficcionar], o compor, equivalem ao</p><p>fazer que cria as condições da ciência” (BADALONI, N. Introduzione a Vico. 5ed.</p><p>Bari: Laterza, 2001, p.25).</p><p>11 VICO, G. Princìpi di scienza nuova d’intorno alla comune natura delle nazioni. In:</p><p>______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milão: Mondadori, 2007 (de agora</p><p>em diante Sn44).</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico • 141</p><p>e atesta a capacidade inata da mente humana para criar o mundo civil,</p><p>algo possível graças à força do entendimento – mesmo que bárbaro –</p><p>para a moderação do ânimo humano.</p><p>O momento da elaboração da Scienza nuova foi também o da</p><p>plena aplicação da teoria do verum-factum, naquele momento o agir</p><p>humano não ficava limitado às operações formais, responsáveis</p><p>pelas grandezas matemáticas da aritmética e da geometria,</p><p>detendo-se na representação científica da natureza. A ação humana</p><p>passa a ser a instância responsável pela criação e manutenção</p><p>do mundo civil. Outra diferença crucial na mudança do objeto de</p><p>investigação é a constatação do antagonismo entre o pensar e o</p><p>fazer. Se na prática da geometria nota-se a convergência do pensar</p><p>humano e do fazer divino, na construção do mundo civil o pensar e</p><p>o fazer humanos são forças antitéticas, pois, a mente humana, em</p><p>sua condição de herdeira do intelecto divino, possui em si o germe</p><p>da ideia da ordem, porém, o seu fazer depende do ânimo humano</p><p>que segue – historicamente – na direção contrária da ideia.12 Aqui</p><p>fica evidente a concepção dialética da história, com a qual eram</p><p>refutadas as visões tradicionais, tanto da predestinação divina do</p><p>curso da história,13 quanto da perspectiva inspirada nas filosofias</p><p>do helenismo que apontavam o destino (filosofia estoica) e o acaso</p><p>(filosofia epicurista) como sentidos para a história.</p><p>12 Enrico Nuzzo destaca essa novidade da Scienza nuova para a epistemologia das</p><p>ciências humanas, ressaltando a primazia de Vico na introdução da concepção</p><p>dialética da história, que surgiu no momento em que estudava a evolução das</p><p>formas de governo, para o filósofo ficava nítida nas diferentes configurações</p><p>históricas o antagonismo entre “ordo civilis” e “ordo naturalis” (NUZZO, E. Tra</p><p>religioni e prudenza. La “filosofia pratica” di Giambattista Vico. Roma: Edizioni di</p><p>Storia e Letteratura, 2007, p.289).</p><p>13 Habermas em seu livro Teoria e práxis de 1978, dizia que a filosofia da história</p><p>começou com Vico, em seguida ele reconhece a novidade de Vico na autonomia</p><p>do curso da história que pela primeira vez se apresenta independente da história</p><p>universal cristã que “construiu o início e o fim na qualidade de origem e meta,</p><p>e a extensão entre ambos enquanto acontecimento de desgraça e salvação [...]</p><p>a história estava projetada de uma só vez na forma de totalidade e processo de</p><p>crise”; Vico introduziu a nova concepção de história: “a filosofia da história precisa</p><p>estar desprovida daqui em diante da hipótese de Deus como sujeito da história;</p><p>mas em seu lugar [do sujeito da história] Vico retém [inseriu] na verdade a espécie</p><p>humana” (HABERMAS, J. Teoria e práxis, estudos de filosofia social. Tradução</p><p>portuguesa de Rúrion Melo. São Paulo: Editora da Unesp, 2013, p.417, 419).</p><p>142 • Humberto Guido</p><p>Aquilo que é negado à mente humana nos domínios do</p><p>conhecimento da natureza torna-se a certeza da criação humana: o</p><p>mundo civil. No segundo parágrafo da edição definitiva da Scienza</p><p>nuova Vico foi enfático na afirmação da univocidade do mundo das</p><p>mentes humanas, ou mundo metafísico, e o mundo civil, ou mundo</p><p>das nações,14 o que confirma o agir histórico como o único critério de</p><p>verdade para o conhecimento das coisas humanas. Essa contribuição</p><p>de Vico para a formação de novos domínios científicos era estranha</p><p>à atmosfera das investigações filosóficas, porém, é perceptível a</p><p>proximidade do expediente viquiano com a epistemologia das ciências</p><p>humanas proposta por Foucault no Século XX.</p><p>O pensador francês iniciou o último capítulo do livro As palavras</p><p>e as coisas, aquele capítulo dedicado às ciências humanas, com a</p><p>seguinte frase “O modo de ser do homem”; nisso consiste a condição</p><p>humana, está aí o “fundamento de todas as positividades” e o “elemento</p><p>de todas as coisas empíricas”.15 A posição de Foucault não difere em</p><p>substância da filosofia da história de Vico, pois, em uma passagem vital</p><p>da Scienza nuova consta a seguinte descrição do homem: “o homem,</p><p>propriamente, outra coisa não é que mente, corpo e fala”,16 estando a</p><p>fala entre a mente e o corpo.17 A capacidade comunicativa do homem o</p><p>distingue no plano da natureza e lhe confere a condição de homem civil.</p><p>A linguagem contém uma força modeladora capaz de retirar o homem</p><p>natural da sua animalidade para conduzi-lo à vida em sociedade.</p><p>14 Sn44, §2, p.415. Quando Max Horkheimer se deteve nos escritos de Vico ele</p><p>percebeu o vínculo entre a mente humana e a realidade social, dizia Horkheimer</p><p>que se tratava do movimento sincrônico da ontogênese e da filogênese: “Vico</p><p>foi o primeiro a reconhecer, de modo consciente e explícito, a analogia existente</p><p>entre os primeiros povos históricos e os primitivos da atualidade, assim como a</p><p>identidade que se dá entre a mentalidade dos primitivos e a das crianças, ou seja,</p><p>a correspondência entre ontogênese e filogênese humanas” (HORKHEIMER, M.</p><p>Los comienzos de la filosofia burguesa de la historia. In: ______. História, metafísica</p><p>y escepticismo. Tradução espanhola de Maria del Rosario Zurro. Madri: Alianza</p><p>Editorial, 1982, p.110).</p><p>15 FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, uma arqueologia das ciências humanas.</p><p>Tradução portuguesa de Salma Tannús Muchail. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes,</p><p>1990, p.361</p><p>16 No original: favella, tanto pode ser língua ou fala, realçando o aspecto</p><p>comunicativo, portanto com ênfase na fala.</p><p>17 Sn44, §1.045, p.930.</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico • 143</p><p>Para finalizar esse paralelo entre a filosofia da história de Vico</p><p>e a epistemologia das ciências humanas de Foucault, é oportuno dizer</p><p>que a capacidade comunicativa do homem confirma a sua natureza</p><p>sociável e racional, pela qual são materializadas as “coisas empíricas”</p><p>de que falava Foucault, a saber: a linguagem, o trabalho e a vida.</p><p>A linguagem, essa força moderadora é, portanto, conatural ao</p><p>homem. A partir dessa primeira tese, Vico avançou em sua pesquisa</p><p>filológica18 para demonstrar que na investigação das coisas humanas</p><p>é possível encontrar a existência de uma língua mental comum às</p><p>nações, que explica a passagem da mais crua barbárie para o mundo</p><p>civil, cujo início se deu com a sociedade das famílias. Tal língua narra a</p><p>história ideal eterna das nações com as suas sucessões temporais que</p><p>coincidem com o aperfeiçoamento da mente humana e evidenciam um</p><p>movimento progressivo. A percepção da força progressiva da história</p><p>não era o assentimento à unilateralidade do pensamento iluminista</p><p>que acreditava ser possível apenas um resultado do progresso: o</p><p>melhor dos mundos. O filósofo italiano não considerava essa categoria</p><p>suficiente para evitar a recaída dos homens e das nações em novas</p><p>situações de barbárie.</p><p>A posição de Vico não sugeria a monótona repetição dos</p><p>ciclos históricos, ou o pior, o catastrofismo milenarista do fim dos</p><p>tempos e a consumação do mundo no apocalipse. A manifestação</p><p>contida nas últimas páginas da Scienza nuova de 44, o temor da</p><p>barbárie da reflexão,19 queria soar como um alerta para os riscos do</p><p>embrutecimento do comportamento humano, que historicamente traz</p><p>consigo a regressão da condição humana às situações de intolerância</p><p>e injustiça social, em uma palavra: a desigualdade que põe a perder as</p><p>conquistas advindas com o progresso, dentre elas a mais valiosa é a</p><p>equidade civil.20 Embora tal diagnóstico fosse desanimador, o otimismo</p><p>18 O leitor de Vico sabe que a filologia significou para o filósofo muito mais do que</p><p>o estudo linguístico, no sétimo parágrafo da Scienza nuova de 1744 ele definiu a</p><p>filologia da seguinte maneira: “a doutrina de todas as coisas que dependem do</p><p>arbítrio humano, como são todas as histórias das línguas, dos costumes, dos feitos</p><p>tanto da paz quanto da guerra dos povos” (Sn44, p.419, §7).</p><p>19 Sn44, p.967, §1.106.</p><p>20 Habermas, além de Horkheimer, teve a oportunidade de se deter na leitura das</p><p>obras de Vico; a respeito dessa situação de barbárie da reflexão gerada pela razão</p><p>144 • Humberto Guido</p><p>de Vico não esmorecia e por isso na mesma conclusão o filósofo acena</p><p>com a ideia de uma eterna república natural.</p><p>A refutação das concepções da história inspiradas no</p><p>estoicismo e no epicurismo dá autonomia à ação humana, são os</p><p>homens, com o livre arbítrio, que fazem a história21 e, portanto,</p><p>o mundo civil é uma obra determinada unicamente pelo fazer</p><p>humano isento de quaisquer forças sobrenaturais, sejam elas o</p><p>destino ou o acaso. Como foi dito, há uma oposição entre a ideia da</p><p>ordem e o fazer humano, por isso, nos primórdios do mundo civil os</p><p>homens encontravam-se em uma situação de indigência não apenas</p><p>material, mas principalmente do uso da capacidade de abstração</p><p>para conceber a ordem natural que deveria conduzir a sociedade</p><p>nos limites da razão rumo à conquista das comodidades da vida civil.</p><p>Esse raciocínio expressa a convicção iluminista que acreditava na</p><p>superação formal dessa oposição entre a ordem natural</p><p>e a ordem</p><p>civil. Essa cognição era dada a poucos e deixava na ignorância a</p><p>maior parte do corpo social,22 por isso Vico insistiu ao longo da sua</p><p>vida filosófica na necessidade de uma educação civil indispensável</p><p>instrumental, há o seguinte comentário em Teoria e práxis (primeiro capítulo,</p><p>primeira seção) que resgata o começo da filosofia de Vico, o livro de 1709: “essa</p><p>objetivação ‘científica’ (muito mais tarde se deverá dizer: objetivação de uma</p><p>ciência estritamente experimental) se separou de tal modo da práxis da vida</p><p>que a própria aplicação dos discernimentos obtidos permanece incontrolável”</p><p>(HABERMAS, 2013, p.89).</p><p>21 A afirmação de Vico é veemente, nela é perceptível a sua pretensão de estabelecer</p><p>o cogito do homem civil: “Mas em tal densa noite de trevas onde está encoberta a</p><p>primeira e de nós distantíssima antiguidade, aparece este lume eterno, que não se</p><p>põe, desta verdade, a qual não se pode de modo algum coloca-la em dúvida: que</p><p>este mundo civil ele certamente foi feito pelos homens, e neles se pode, porque se</p><p>deve, encontrar os princípios nas modificações da nossa própria mente humana”</p><p>(Sn44, p.541, §331).</p><p>22 Na seção segundo do Livro primeiro da Scienza nuova de 1744 há uma sequência</p><p>de axiomas que chamam a atenção para a abdicação da filosofia do século XVII</p><p>no tratamento das questões políticas para deter-se nos estudos formais da</p><p>demonstração da existência de Deus e da exploração da natureza; Vico advertia</p><p>o seu leitor para essa deficiência da grande filosofia moderna e, primeiro, insistia</p><p>na tarefa da filosofia desde Platão: “A filosofia para auxiliar o gênero humano,</p><p>deve levantar e sustentar o homem caído e fraco, sem distorcer a natureza nem</p><p>abandoná-lo em sua corrupção” (Sn44, p.496, §129); depois criticava abertamente</p><p>o formalismo da filosofia: “A filosofia considera o homem como deve ser, e assim</p><p>não pode desfrutar senão de pouquíssimos que queiram viver na república de</p><p>Platão, ao invés de se refocilarem nas fezes de Rômulo” (Sn44, p.496, §131).</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico • 145</p><p>à celebração e conservação da idade dos homens e das suas formas</p><p>de governo em conformidade com a reta razão.</p><p>A diferença da postura de Vico e aquela da filosofia da história</p><p>do século das luzes (que se estendeu até o idealismo hegeliano)</p><p>pode ser notada quando se considera a leitura formal do curso</p><p>da história promovida pelos filósofos iluministas, convictos na</p><p>necessária superação da oposição entre a ideia, uma situação possível</p><p>de ser esperada graças à uma razão que ultrapassa os indivíduos e,</p><p>paradoxalmente, se faz razão histórica que se manifesta primeiramente</p><p>como fato da consciência. Somente essa certeza autorizava a admissão</p><p>do desaparecimento da velha oposição, que daria lugar à identidade do</p><p>povo-espírito-do-tempo com a razão absoluta.</p><p>Vico não era partidário do fim da história, ele considerava o seu</p><p>tempo não somente pelas novas conquistas da ciência e da técnica, ele</p><p>advertia para o equilíbrio frágil da última idade do ciclo histórico, a</p><p>idade dos homens, assentada na razão plenamente explicada, porém,</p><p>insuficiente por si só para abolir em definitivo o risco da recaída na</p><p>barbárie. Contudo, a atitude teórica de Vico não se encerrava com o</p><p>pessimismo, por esse motivo, ele concluiu a obra maior afirmando</p><p>que o curso temporal percorrido pelas nações não acaba, pois, elas</p><p>estão inseridas em uma história ideal eterna. Todos os momentos</p><p>dessa história conservam a humanidade dentro da ordem civil que</p><p>se mostra como uma eterna república natural. A força providente do</p><p>entendimento humano, mesmo dos primeiros homens, é dotada de</p><p>um pensamento fundamental: a imortalidade,23 essa crença comum é</p><p>também o princípio indubitável da verdadeira natureza humana, de</p><p>que os homens naturalmente são levados a viverem em sociedade e a</p><p>se conservarem com as ordens civis que eles mesmos criaram.</p><p>A posição historicista de Vico não pode ser vista como precursora</p><p>ou, se quiser, idêntica às novas conjecturas que ilustravam a dinâmica</p><p>histórica com expedientes abstratos: a mão invisível de Adam Smith</p><p>23 Um passo significativo a respeito da ideal república natural como o plano da</p><p>história, um plano imanente, era anunciado no livro de 1710: “e porque o ânimo</p><p>se move livremente, deseja o infinito e igualmente a imortalidade” (De ant., p.98);</p><p>esse é o argumento que diferencia o homem saído da natureza daquele que ainda</p><p>permanece nela, com as religiões os primeiros homens acreditaram ter um ânimo</p><p>imortal e com isso eles almejavam o infinito.</p><p>146 • Humberto Guido</p><p>associada à justificação da divisão do trabalho, para apresentá-la como</p><p>determinação natural,24 ou, a astúcia da razão de Hegel para justificar</p><p>a positividade do Estado como manifestação absoluta da razão.25 O</p><p>argumento de Vico é simples e efetivo: o que se constata na história</p><p>é a heterogeneidade das ações humanas (a ordem civil) em relação ao</p><p>ideal da razão (a ordem natural). A simplicidade explicativa de Vico</p><p>vai além, ele afirma que os primeiros homens da gentilidade foram as</p><p>crianças do gênero humano, como tais, eram incapazes de entender</p><p>a reta razão, porque possuíam os sentidos vigorosos e a imaginação</p><p>muito viva, e graças à essa capacidade humana original eles criaram a</p><p>sociedade das famílias com a fábula de Júpiter,26 essa cognição divina</p><p>24 Certamente o cientista econômico não deixa de apresentar os fatores que</p><p>garantem o êxito da nascente produção capitalista: “o aumento da aptidão de</p><p>cada trabalhador em particular; segundo, à economia do tempo que comumente</p><p>se perde ao se passar de um tipo de ocupação para outro; e, finalmente, à invenção</p><p>de um grande número de máquinas que facilitam e abreviam o trabalho, e</p><p>permitem que um homem realize a tarefa de muitos” (SMITH, A. A mão invisível.</p><p>Tradução portuguesa de Paulo Geiger. São Paulo: Penguin; Companhia das</p><p>Letras, 2013, p.12). Contudo, a divisão do trabalho não tem fundamentação em</p><p>uma lei natural, tal procedimento decorre unicamente das práticas associativas</p><p>que a comunidade humana cria para suprir as suas necessidades tendo em vista</p><p>a conservação da sociedade.</p><p>25 Há uma proximidade lexical entre a afirmação de Hegel e o segundo parágrafo</p><p>da Scienza nuova de 1744, porém, a semelhança cessa na forma literal porque na</p><p>obra de Vico são as práticas sociais que erigem o Estado e as sucessivas formas</p><p>de governo, sem nenhuma teleologia, o que para Hegel, em contrapartida, é</p><p>fundamental: “Nesse contexto, percebemos que, na história universal, resulta das</p><p>ações humanas algo além do que foi intencionado. Por meio de suas ações os seres</p><p>humanos conseguem o que querem de imediato. Porém, ao concretizar os seus</p><p>interesses, eles realizam algo mais abrangente; algo que se oculta no interior de</p><p>suas ações”, e, “Pois é também da atividade do particular e de sua negação que</p><p>resulta o universal. É o particular que se desgasta em conflitos, sendo em parte</p><p>destruído. Não é a ideia geral que se expõe ao perigo na oposição e na luta. Ela se</p><p>mantém intocável e ilesa na retaguarda. A isso se deve chamar astúcia da razão”</p><p>(HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Tradução portuguesa de Maria Rodrigues</p><p>e Hans Harden. 2ed. Brasília: Editora da UnB, 1998, p.31 e 35, respectivamente,</p><p>grifos do autor). Apenas para reforçar a diferença entre os dois pensadores, Vico</p><p>não se dedicou à história universal, o seu objeto foram as histórias das nações.</p><p>26 Júpiter para os romanos, assim como Zeus para os gregos, Thoth (Hermes</p><p>Trimegisto) para egípcios, enfim, toda nação gentia criou para si – sem que uma</p><p>soubesse nada das demais – a sua divindade salvadora que a submeteu à vida</p><p>social e cujo temor conservou-a, essa uniformidade de ideias atesta a existência</p><p>“na natureza das coisas humanas uma língua mental comum a todas as nações”</p><p>(Sn44, p.503, §161), segundo Vico, tal língua confirma a história ideal eterna.</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras</p><p>de Vico • 147</p><p>produzida pelos homens deu início ao processo histórico. A verdade</p><p>humana não é a adequação do feito (a fábula de Júpiter) à ideia, mas</p><p>antes, a sua oposição, que fica explicitada logo no segundo parágrafo</p><p>da Scienza nuova de 1744:</p><p>os homens, caídos da inteira justiça pelo pecado original, entenderam</p><p>de fazer quase sempre tudo diferente e, frequentemente ainda, tudo ao</p><p>contrário [...], por essas mesmas suas vias diferentes e contrárias, eles</p><p>pelas mesmas utilidades [as utilidades comuns] foram levados como</p><p>homens a viverem com justiça e conservarem-se em sociedade.27</p><p>Ainda nas páginas da Scienza nuova de 1744, há um axioma</p><p>(Livro primeiro, seção segunda, axioma LXIV) que oferece o caminho</p><p>para a compreensão da realidade antitética que opõe a ideia ao feito:</p><p>“a ordem das ideias deve proceder segundo a ordem das coisas”.28</p><p>Essa manifestação de Vico tomou de empréstimo a afirmação de</p><p>Espinosa contida na sua Ética (Segunda parte, sétima proposição).29</p><p>Porém, há uma diferença crucial entre os dois filósofos, Vico havia</p><p>abandonado o debate metafísico e se distanciou do pensador</p><p>holandês, não havia mais a figura de Deus no horizonte das</p><p>investigações de Vico. O novo momento das suas pesquisas elegia</p><p>o homem e o mundo civil como objetos dos estudos que o levariam</p><p>à proposição de uma nova ciência do mundo das nações. Por esse</p><p>motivo, o axioma citado acima constava na Scienza nuova de 1730</p><p>reforçando que as ideias e as coisas são aquelas criadas pela mente</p><p>humana.30 Posteriormente, na edição de 1744 Vico suprimiu os</p><p>adjetivos, pois o conteúdo da obra tornava evidente que o esforço</p><p>da pesquisa estava circunscrito às criações humanas.</p><p>27 Sn44, p.416, §2.</p><p>28 Sn44, p.519, §238.</p><p>29 “A ordem e a conexão das ideias é o mesmo que a ordem e conexão das coisas”</p><p>(ESPINOSA, B. Ética. Tradução portuguesa de Tomaz Tadeu. 2. ed. Belo Horizonte:</p><p>Autêntica, 2013, p.55).</p><p>30 Na edição de 1730, Livro primeiro, seção segunda, axioma LX: “A ordem das</p><p>ideias humanas deve proceder segundo a ordem das coisas humanas” (VICO, G.</p><p>La Scienza nuova 1730. Organização de Paolo Cristofolini com colaboração de</p><p>Manuela Sanna. Nápoles: Guida, 2004, p.107).</p><p>148 • Humberto Guido</p><p>A assimilação sui generis feita por Vico da máxima de Espinosa é</p><p>valiosa também para separar as linhas mestras das filosofias da história</p><p>de Vico e de Hegel, pois, para o primeiro não se tratava apenas de uma</p><p>razão que ultrapassa as mentes individuais para se constituir no Absoluto</p><p>valendo-se de sua astúcia. Vico considerava a natureza associativa como</p><p>a disposição do ânimo humano, sem com isso sugerir algo a priori31 que</p><p>carecia de concretude histórica, como se um conceito extraído da ordem</p><p>natural – a posteriori – fosse suficiente para instaurar a ordem civil à</p><p>revelia das ações humanas, como se a vida em sociedade pudesse ser</p><p>explicada apenas e tão somente pela utilidade que o indivíduo pode</p><p>extrair da vida em sociedade. É preciso lembrar as críticas de Vico ao</p><p>utilitarismo que despontava com a modernidade, essas críticas o opunha</p><p>a Espinosa, da mesma maneira que o afastará de Hegel. A utilidade,</p><p>dizia Vico, é circunstancial para a vida em sociedade, logo, não é o seu</p><p>fundamento, isto é, o seu princípio gerador. Somente a utilidade comum</p><p>– uma utilidade recíproca entre os homens32 – pode ser pensada como o</p><p>princípio causal da sociabilidade, o qual é a igualdade civil.</p><p>A igualdade é concebida como equidade civil e esteve presente</p><p>na obra jurídica de Vico, naquele momento o filósofo havia percebido</p><p>que a vida em sociedade sofre as constantes mudanças decorrentes da</p><p>evolução das práticas sociais que ocasionam as mudanças das formas</p><p>de governo, porém, a equidade civil é a constante desse processo, por</p><p>mais que as utilidades mudem a igualdade é eterna, essa afirmação</p><p>aparece logo nas primeiras páginas da sinopse da obra jurídica,33</p><p>31 Ernesto Grassi destaca a posição historicista de Vico, pois, o filósofo italiano</p><p>“não parte do problema dos entes [metafísicos] nem de nenhuma concepção a</p><p>priori, mas da manifestação da realidade na sua historicidade concreta através da</p><p>palavra” (GRASSI, E. Vico e l’umanesimo. Milão: Guerini & Associati, 1992, p.194,</p><p>grifos do autor).</p><p>32 CRISTOFOLINI, P. Vico pagano e barbaro. Pisa: ETS, 2001, p.58.</p><p>33 No anúncio da obra jurídica (Il diritto universale) Vico deixou clara a sua posição</p><p>no debate moderno, advertindo para o fato de que os pensadores políticos e os</p><p>jusnaturalistas do século XVII: “não perceberam que outras são as causas, outra</p><p>as ocasiões das coisas, as utilidades mudam, mas a igualdade daquelas coisas é</p><p>eterna; e, não podendo o temporal ser a causa do eterno, nem o corpo produzir o</p><p>abstrato, a utilidade é a ocasião pela qual desperta na mente do homem a ideia da</p><p>igualdade, que é a causa eterna do justo” (VICO, G. Sinopsi del diritto universale. In:</p><p>______. Opere giuridiche. Organização de Paolo Cristofolini e introdução de Nicola</p><p>Badaloni. Florença: Sansoni, 1974, p.6).</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico • 149</p><p>apesar da sua expressão sintética o argumento é fecundo, porque deixa</p><p>entrever o que Vico intuía quando empregava o adjetivo eterno-eterna,</p><p>essa locução sinalizava a distinção entre o que é perene e aquilo que é</p><p>transitório, assim é possível encontrar elementos nas obras anteriores</p><p>que auxiliam na compreensão das expressões empregadas na Scienza</p><p>nuova: história ideal eterna e eterna república natural. Marco Vanzulli</p><p>foi muito feliz ao afirmar que “O eterno viquiano é a legalidade ou</p><p>tipificação do curso evolutivo de uma sociedade que se move sob o</p><p>nome de história ideal eterna”;34 de acordo com esse autor, Vico lançou</p><p>um olhar antropológico sobre as histórias das nações e percebeu traços</p><p>comuns e que por isso podiam ser aceitos como universais fantásticos,</p><p>isto é, nascidos da fantasia dos primeiros homens. Essa constatação</p><p>confirma os princípios comuns das nações, apesar de que no começo</p><p>essas nações encontravam-se isoladas umas das outras, portanto, sem</p><p>que uma soubesse qualquer coisa das demais.</p><p>O mais importante dessa defesa do nascimento autóctone das</p><p>nações e de suas instituições,35 é a distância que se estabelece entre Vico</p><p>e Hegel, porque não dá lugar à filosofia do espírito, que assevera ser a</p><p>razão aquilo que é desde sempre,36 para Vico trata-se simplesmente</p><p>do agir humano, sem nenhuma transcendência, pois, tudo que os</p><p>homens fazem está inscrito na história, a razão é o ideal eterno dessas</p><p>histórias das nações, o seu princípio constitutivo é uma construção</p><p>coletiva permanente, que nunca termina, que nunca supera a perfeita</p><p>oposição entre a ordem natural e a ordem civil. O curso temporal que</p><p>se desenvolve entre um polo e outro é a ideal república natural, para</p><p>34 VANZULLI, M. La scienza nuova dele nazioni e lo spirito dell’idealismo. Sul Vico,</p><p>Croce e Hegel. Milão: Guerini & Associati, 2003, p.85.</p><p>35 De acordo com Badaloni: “As leis que regulam a constituição e o desenvolvimento</p><p>da humanidade ‘gentia’, são, pois, autônomas, autossuficientes, totalmente</p><p>independentes da história sagrada e dão lugar para uma série ideal-eterna”</p><p>(BADALONI, 2001, p.75).</p><p>36 Outra diferença importante que não permite vincular a filosofia de Vico com a</p><p>de Hegel é a ausência no pensador italiano de qualquer menção à essência, para</p><p>Vico só a história se apresenta aos olhos do pesquisador do mundo civil. Em Hegel</p><p>ainda é relevante se valer da razão como essência: “O verdadeiro é o todo. Mas o todo</p><p>é somente a essência que se implementa através de seu desenvolvimento. Sobre o</p><p>absoluto deve-se dizer que é essencialmente resultado; que só no fim é o que é na</p><p>verdade” (HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Tradução portuguesa de Paulo</p><p>Menezes. 7ed. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes; Editora da USF, 2002, p.36).</p><p>150 • Humberto Guido</p><p>a qual Vico reservou as últimas páginas da Scienza nuova nas edições</p><p>de 1730 e 1744.</p><p>A certeza da visão da história</p><p>de Vico, ou seja, considerar as</p><p>histórias das nações na perspectiva da formação e perpetuação de</p><p>uma ideal república natural demandou o emprego do conceito de</p><p>providência, que propositalmente obscurece a exposição, mas não sem</p><p>motivo. Vico em sucessivas passagens da Scienza nuova em sua última</p><p>edição insistiu na possibilidade da descida da mente civilizadíssima</p><p>do presente até aquela, pequena-rude-obscuríssima, dos primeiros</p><p>homens da mais crua barbárie,37 que no curso das nações corresponde</p><p>aos tempos obscuros. A saída da natureza para a barbárie dependia do</p><p>auxílio da providência, uma ajuda natural38 assegurava Vico ao defini-la</p><p>como “uma mente divina legisladora”.39 A ação da providência, embora</p><p>seja natural, não é totalmente explicada por Vico, provavelmente por</p><p>causa da obscuridade do objeto de investigação da nova ciência, que no</p><p>momento de apresentá-la o filósofo se serviu de uma gravura40 e nela a</p><p>matéria consta a matéria da sua pesquisa, ou seja, “as trevas ao fundo</p><p>da gravura, incerta, informe, obscura”.41</p><p>Se fosse lícito utilizar aqui do procedimento fenomenológico</p><p>seria possível dizer que a providência não está nem na alma, nem no</p><p>ânimo, ela é a força racional própria dos homens que se faz linguagem</p><p>desde o início da existência civil deles, como bem lembrou um dos</p><p>críticos viquianos familiarizado com a fenomenologia – Enzo Paci</p><p>– para quem a linguagem é antes de tudo imagem, que está entre a</p><p>existência e a ideia “entre o finito do homem e a sua perfeição racional”,</p><p>37 Sn44, p.495, §123.</p><p>38 O homem é dotado de livre arbítrio, essa prerrogativa o distingue dos brutos</p><p>sem sociedade, mas, nos tempos obscuros e mesmo nos tempos fabulosos, o livre</p><p>arbítrio era fraco “para fazer das paixões virtudes; mas que por Deus é ajudado</p><p>naturalmente com a providência divina” (Sn44, p.497, §136).</p><p>39 Sn44, p.497, §133.</p><p>40 A gravura deviria servir “ao leitor para conceber a ideia desta obra antes de lê-la,</p><p>e para conserva-la mais facilmente na memória, com a ajuda que lhe subministre a</p><p>fantasia, depois de tê-la lido” (Sn44, p.415, §1). Quatro elementos se destacam na</p><p>referida gravura: um triângulo luminoso com um olho vidente (Deus), uma mulher</p><p>com têmporas aladas (a metafísica), a estátua de um ancião (Homero), e ao fundo</p><p>densas trevas (o objeto da nova ciência, isto é, o mundo civil).</p><p>41 Sn44, p.446, §41.</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico • 151</p><p>é a força da linguagem42 que permite ao homem “pensar e construir o</p><p>seu mundo histórico, o seu mundo espiritual, o seu mundo social”.43</p><p>A capacidade humana de fabular com imagens – o que para Vico é a</p><p>linguagem poética que antecede e sobrevive à linguagem convencional</p><p>e epistolar – permite a criação das coisas divinas e humanas,44 como</p><p>Vico gostava de afirmar quando dava orientação à sua investigação:</p><p>“Assim esta Nova Ciência, ou seja a metafísica, sob a luz da providência</p><p>divina medita a natureza comum das nações, tendo descoberto tais</p><p>origens das coisas divinas e humanas entre as gentes”.45</p><p>A história da humanidade é, pois, essa ideal república natural,</p><p>o motivo para não empregar a designação mais usual – história da</p><p>humanidade – é coerente com o pertencimento da nova ciência à</p><p>filosofia política, esse vínculo foi explicitado na segunda seção do</p><p>Livro primeiro da Scienza nuova de 1744, essa passagem é uma crítica</p><p>aos filósofos solitários ou monásticos, pois, eles não entenderam</p><p>a república e as leis. Vico evocou Platão para inserir a escola da sua</p><p>ciência no âmbito da filosofia política, cujo príncipe é o ateniense.46 A</p><p>conclusão da obra apela novamente ao filósofo antigo: “Concluamos,</p><p>42 A linguagem como imagem se materializa no mito e na fantasia (PACI, E. Ingens</p><p>sylva, saggio sulla filosofia di G. B. Vico. Milão: Mondadori, 1949, p.61).</p><p>43 PACI, 1949, p.61. O argumento de Paci contrasta com a interpretação sartreana do</p><p>método fenomenológico, na primeira nota de L’être et le neant o filósofo invalida a</p><p>experiência do verum-factum, ao dizer que “toda tentativa de substituir o percipere</p><p>por uma outra atitude da realidade humana seria igualmente infrutífera. Mesmo</p><p>que se queira admitir que o ser se revela no ‘fazer’, ainda assim seria preciso</p><p>assegurar o ser do fazer fora da ação” (SARTRE, 2001, n.1, p.17). O erro de Sartre</p><p>reside em considerar uma frustração a pretensão de obter o conteúdo total da</p><p>experiência da consciência quando investiga o mundo da vida, o que não é possível</p><p>por causa da obscuridade que envolve o objeto tanto quanto a consciência. Vico</p><p>combateu a pretensão dos doutos, admitindo a obscuridade da mente humana,</p><p>mas que não invalida o seu esforço permanente de desvelamento do real, ao</p><p>contrário, permite o constante aperfeiçoamento do homem.</p><p>44 Ernesto Grassi é outro nome dentre os poucos que fazem uma leitura</p><p>fenomenológica da Scienza nuova, a sua postura é valiosa porque não funde a</p><p>filosofia de Vico com o idealismo alemão; Grassi esteve mais próximo de Heidegger,</p><p>embora o filósofo alemão desconhecesse a obra viquiana; mesmo assim Grassi foi</p><p>categórico ao afirmar que a obra de Vico “é uma verdadeira fenomenologia, uma</p><p>descrição que paulatinamente faz aparecer (phainesthai) o real humano. [...] a</p><p>palavra e mesmo os mitos na sua origem engenhosa são as formas originárias do</p><p>desvelamento do real” (GRASSI, 1992, p.195, grifo do autor).</p><p>45 Sn44, p.438, §31.</p><p>46 Sn44, p.496, §130.</p><p>152 • Humberto Guido</p><p>pois, esta obra com Platão”.47 Em seguida é atribuída à providência a</p><p>saída do estado de natureza, ela conduz as coisas humanas desde a</p><p>origem das nações. Ainda a respeito da obscuridade do emprego do</p><p>conceito de providência, é sugestivo o vínculo estabelecido no final</p><p>da obra entre providência e conato. Nas páginas precedentes foi</p><p>mencionada a importância da linguagem para a pesquisa do mundo</p><p>civil, ela tem importância similar à ação da providência, pois, a matéria</p><p>da nova ciência são as provas filológicas, das quais em seu tempo, Vico</p><p>dizia que só se podia encontrar vestígios dispersos, porque “com o</p><p>correr dos anos e com o mudar das línguas e costumes, nos chegam [as</p><p>provas filológicas] recobertas do falso”,48 por isso o exercício filosófico é</p><p>indispensável para a reconstituição da origem do mundo civil, somente</p><p>o pensamento pode estabelecer uma conexão com o ambiente bárbaro</p><p>que coincidiu com o começo das nações gentias.49</p><p>A existência perene da comunidade humana, organizada em</p><p>sociedade, foi pensada por Vico na perspectiva da ideal república</p><p>natural, sustentada que é pela providência, ou o conato, ou a força</p><p>comunicativa e comutativa do entendimento humano. Pois, o conato é</p><p>47 Sn44, p.961, §1097.</p><p>48 Sn44, p.500, §150. Vico foi leitor de Francis Bacon, o lorde de Verulamo é um</p><p>dos quatro autores paradigmáticos enumerados por Vico em sua autobiografia</p><p>(VICO, G. Vita scritta da se medesimo. In: ______. Opere. Organizadas por Andrea</p><p>Battistini. Milão: Mondadori, 2007, p.30), Bacon foi uma das inspirações para a</p><p>De antiquissima de 1710; Vico ao falar das provas filológicas parece refazer à sua</p><p>maneira um passo baconiano extraído do pequeno livro A sabedoria dos antigos,</p><p>ali Bacon se reportava à filosofia, na crença de uma arcana sabedoria filosófica</p><p>desaparecida, restando da mesma apenas os “fragmentos, dispersos aqui e ali como</p><p>destroços de naufrágio” (BACON, F. A sabedoria dos antigos. Tradução portuguesa</p><p>de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Editora da Unesp, 2002, p.49).</p><p>49 A experiência do pensamento é o que garante o estatuto científico da obra,</p><p>assim pensava Vico, quando reiteradamente insistia no passo metodológico,</p><p>designado como a nova arte crítica, que ao invés da suspensão de juízo sugerida</p><p>por Descartes, na nova ciência tratava-se da descida, uma primeira proposição</p><p>da rememoração do sujeito como chave explicativa do comportamento humano;</p><p>dentre as cinco passagens da Scienza nuova de 1744 que fazem esse apelo à</p><p>experiência do pensamento, é oportuno citar a que segue:</p><p>“assim agora nos é</p><p>naturalmente negado de poder adentrar na vasta imaginação daqueles primeiros</p><p>homens, cujas mentes em nada eram abstratas, em nada eram sutilizadas, em nada</p><p>espiritualizadas, porque estavam todas imersas nos sentidos, todas dobradas pelas</p><p>paixões, todas sepultadas nos corpos: por isso dizíamos acima que agora apenas</p><p>podemos entender, de fato imaginar não se pode, como pensaram os primeiros</p><p>homens que fundaram a humanidade gentia” (Sn44, p.572, §378).</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico • 153</p><p>o refrear dos corpos com o domar das paixões ferinas para transformá-</p><p>las em virtudes públicas. Foi a ação do conato-providência que fez</p><p>com que os primeiros homens, todos ímpios-vagabundos-fracos, se</p><p>servissem da força da sua primeira natureza,50 deixando para trás o</p><p>isolamento e a infelicidade para galgarem o estado das famílias e assim</p><p>se tornarem “pios, sábios, castos, fortes e magnânimos”.51</p><p>A partir da sociedade das famílias, as primeiras comunidades</p><p>humanas passaram a submeter-se à potestade paterna durante a</p><p>idade dos deuses, sendo que a família propriamente dita era composta</p><p>pelos filhos e pelos fâmulos, esses últimos são aqueles mais fracos</p><p>que permaneciam no vaguear ferino e que para fugir à ameaça mortal</p><p>representada pelos outros tantos ímpios que os sobrepujavam em força</p><p>física. Assim, os fracos foram acolhidos pelas potestades paternas na</p><p>condição de sócios e consolidaram a sociedade das famílias e juntos –</p><p>potestades paternas e fâmulos – deram início à sociedade civil, com os</p><p>feudos rústicos e sob o governo das potestades. Muito tempo depois,</p><p>esses fâmulos se sublevaram para reivindicar os direitos que eram</p><p>privativos das potestades paternas, esse evento provocou não apenas</p><p>a reação violenta dessas potestades, mas também as levaram a unir-se</p><p>e fundar as cidades heroicas e nelas instalaram os primeiros senados</p><p>reinantes com o estabelecimento das repúblicas aristocráticas, em que</p><p>os fâmulos se tornaram a plebe das cidades e as potestades paternas</p><p>os patrícios, assim foi a humanidade na idade dos heróis. Essa situação</p><p>perdurou por longo tempo, até que nova revolta popular, dessa vez</p><p>melhor organizada pela plebe, fez com que fosse finalmente celebrada</p><p>a igualdade civil com as leis positivas das repúblicas populares e das</p><p>monarquias, que são as duas formas de governo da idade dos homens.</p><p>A ideal república natural é o curso histórico das nações que</p><p>compreende aquela sucessão das formas de governo. Ideal república</p><p>natural e história ideal eterna porque, como foi dito, a história não acaba,</p><p>pois, no momento em que as nações entram em crise a providência</p><p>subministra o remédio amargo para purgar os males sociais e</p><p>restabelecer a ordem civil. Quando não é possível esse reordenamento</p><p>50 Sn44, p.427, §18.</p><p>51 Sn44, p.963, §1.099.</p><p>154 • Humberto Guido</p><p>político porque os povos se fazem “escravos por natureza das suas</p><p>paixões”,52 então, eles são dominados pelas nações melhores. Mas, se</p><p>nem o monarca nativo e nem as nações melhores podem reverter o</p><p>estado de degradação dos povos, resta apenas o remédio extremo do</p><p>desaparecimento das nações completamente corrompidas pelos vícios</p><p>privados e públicos.</p><p>Mesmo nessa situação de indigência absoluta, Vico ainda</p><p>professava o seu otimismo lembrando de que sempre haverá os</p><p>pouquíssimos, os homens “verdadeiros e fiéis”, que farão retornar “a</p><p>piedade, a fé, a verdade, que são os fundamentos da justiça e são as</p><p>graças e as belezas da ordem eterna de Deus”,53 porque “esta grande</p><p>cidade das nações”54 assiste a sucessão dos tempos e das formas de</p><p>governo – aristocracia, democracia, monarquia – e contudo ela não</p><p>termina nunca, não pode ser aniquilada pela ação humana, pois é a sede</p><p>da providência divina que naturalmente edifica ao invés de destruir;</p><p>somente um decreto de Deus pode pôr fim ao mundo civil, mesmo assim</p><p>a esperança humana é alimentada pela infinita bondade divina.</p><p>Contudo, o otimismo de Vico vencia os seus dois temores: o da</p><p>aniquilação do mundo e dos homens por força de um decreto divino,</p><p>ou a ação humana destruidora encampada pela barbárie da reflexão.</p><p>Teimosamente Vico acreditava na ação humana, ela sempre será a</p><p>maior esperança do homem civil quanto à perenidade do mundo das</p><p>nações, pois, “[o] universo dos povos ordenado com tais ordens55</p><p>e assentado em tais leis, que pelas suas próprias corruptelas toma</p><p>aquelas formas de Estado, com as quais unicamente possa em toda</p><p>parte conservar-se e perpetuamente durar”.56</p><p>52 Sn44, p.966, §1.105.</p><p>53 Sn44, p.968, §1.106.</p><p>54 Expressão muito próxima daquela de Leibniz em sua Monadologie, que por sua</p><p>vez reproduz a locução de Agostinho: a cidade de Deus, mas com sentido próprio,</p><p>dizia Leibniz: “Esta Cidade de Deus, esta Monarquia verdadeiramente universal, é</p><p>um Mundo Moral dentro do mundo Natural, e ele tem o que há de mais elevado e</p><p>de mais divino dentre as obras de Deus” (LEIBNIZ, 2005, p.188).</p><p>55 “[l’] universo de’ popoli, ordinato con talli ordini”, a redundância de Vico tem a</p><p>finalidade de reforçar a capacidade legisladora da mente humana.</p><p>56 Sn44, p.968, §1.107.</p><p>A eterna república natural: direito, natureza e história nas obras de Vico • 155</p><p>Referências</p><p>Obras de Vico</p><p>VICO, G. Oratio I (Or. I). In: ______. Le orazioni inaugurali I-VI. Organização e tradu-</p><p>ção italiana de G. Visconti. Bolonha: Il Mulino, 1982, p.72-95.</p><p>VICO, G. De nostri temporis studiorum ratione (De rat.). In: ______. Opere. Organiza-</p><p>ção de Andrea Battistini. Milão: Mondadori, 2007, p.87-215.</p><p>VICO, G. De antiquissima italorum sapientia (De ant.). Organização e tradução ita-</p><p>liana de Manueal Sanna. Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2005.</p><p>VICO, G. Sinopsi del diritto universale (Sin.). In: ______. Opere giuridiche. Organizada</p><p>por Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Florença: Sansoni, 1974,</p><p>p.3-16.</p><p>VICO, G. La Scienza nuova 1730 (Sn30). Organização de Paolo Cristofolini com cola-</p><p>boração de Manuela Sanna. Nápoles: Guida, 2004.</p><p>VICO, G. Princìpi di scienza nuova d’intorno ala comune natura delle nazioni</p><p>(Sn44). In: ______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milão: Mondadori, 2007,</p><p>p.411-971.</p><p>VICO, G. Vita scritta da se medessimo (Vita). In: ______. Opere. Organizadas por An-</p><p>drea Battistini. Milão: Arnoldo Mondadori, 2007, p.3-85.</p><p>Outras obras</p><p>BACON, F. A sabedoria dos antigos. Tradução portuguesa de Gilson César Cardoso</p><p>de Souza. São Paulo: Editora da Unesp, 2002.</p><p>BADALONI, N. Introduzione a Vico. 5ed. Bari: Laterza, 2001.</p><p>CRISTOFOLINI, P. Vico pagano e barbaro. Pisa: ETS, 2001.</p><p>ESPINOSA, B. Ética. Tradução portuguesa de Tomaz Tadeu. 2ed. Belo Horizonte:</p><p>Autêntica, 2013.</p><p>FOUCAULT, M. As palavras e as coisas, uma arqueologia das ciências humanas. Tra-</p><p>dução portuguesa de Salma Tannús Muchail. 5ed. São Paulo: Martins Fontes, 1990.</p><p>GRASSI, E. Vico e l’umanesimo. Milão: Guerini & Associati, 1992.</p><p>GUIDO, H. Giambattista Vico, a filosofia e a educação da humanidade. Petrópolis:</p><p>Vozes, 2004.</p><p>HABERMAS, J. Teoria e práxis, estudos de filosofia social. Tradução portuguesa de</p><p>Rúrion Melo. São Paulo: Editora da Unesp, 2013.</p><p>HEGEL, G. W. F. Filosofia da História. Tradução portuguesa de Maria Rodrigues e</p><p>Hans Harden. 2ed. Brasília: Editora da UnB, 1998.</p><p>HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Tradução portuguesa de Paulo Menezes.</p><p>7ed. Petrópolis; Bragança Paulista: Vozes; Editora da USF, 2002.</p><p>156 • Humberto Guido</p><p>HORKHEIMER, M. Los comienzos de la filosofia burguesa de la historia. In: ______.</p><p>História, metafísica y escepticismo. Tradução espanhola de Maria del Rosario Zurro.</p><p>Madri: Alianza Editorial, 1982, p.13-118.</p><p>HUSSERL, E. La philosophie comme science rigoreuse. Tradução francesa de Marc B.</p><p>de Launay. Paris: PUF, 1989.</p><p>LEIBNIZ, G. W. La monadologie. Organização de Émile Boutroux. Paris: Delagrave,</p><p>2005.</p><p>MONDOLFO, R. Il “verum-factum” prima da Vico. Nápoles: Guida, 1969.</p><p>NUZZO, E. Tra religioni e prudenza. La “filosofia pratica”</p><p>di Giambattista Vico.</p><p>Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2007.</p><p>PACI, E. Ingens sylva, saggio sulla filosofia di G. B. Vico. Milão: Mondadori, 1949.</p><p>ROSSI, P. Le sterminate antichità, studi vichiani. Pisa: Listri-Nischi, 1969.</p><p>SMITH, A. A mão invisível. Tradução portuguesa de Paulo Geiger. São Paulo: Pen-</p><p>guin; Companhia das Letras, 2013.</p><p>VANZULLI, M. La scienza nuova dele nazioni e lo spirito dell’idealismo. Sul Vico, Cro-</p><p>ce e Hegel. Milão: Guerini & Associati, 2003.</p><p>Vico e a natureza poética primitiva • 157</p><p>Vico e a natureza poética primitiva</p><p>Sertório de Amorim e Silva Neto*</p><p>Um breve trecho da primeira parte do Discurso do método (1637)</p><p>nos ajuda a situar o novo lugar da poética na modernidade. Descartes não</p><p>escondeu o apreço pela poesia naquelas páginas de revisão do currículo</p><p>humanista do ensino jesuítico recebido em La Flèche: “tem delicadezas</p><p>e doçuras muito encantadoras [...] estava enamorado da poesia”,1 mas</p><p>logo finaliza o elogio ponderando se tratar de um dom do espírito, em vez</p><p>de fruto do estudo ou do aprendizado dos preceitos estilísticos da arte</p><p>poética: “aqueles cujas invenções são as mais agradáveis e que sabem</p><p>exprimi-las com o máximo de ornamento e doçura não deixam de ser os</p><p>melhores poetas, ainda que a arte poética lhes fosse desconhecida”.2 O</p><p>filósofo desvinculava, assim, a excelência poética – a aptidão em inventar</p><p>o agradável e exprimir-se com ornamento e encanto – do aprendizado</p><p>de uma arte, interpelando ao mesmo tempo o sentido de um ciclo de</p><p>estudos composto, entre outras disciplinas, pela poética, como as studia</p><p>humanitatis do Renascimento.3</p><p>Qual a serventia de todas aquelas teorizações sobre a metáfora,</p><p>a mimese, a natureza do trágico, do épico e do cômico, entre tantas</p><p>* Professor adjunto do Instituto de Filosofia e do Progama de Pós-graduação em</p><p>Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia.</p><p>1 DESCARTES, R. Discurso do método: para bem conduzir a própria razão e procurar</p><p>a verdade nas ciências. Tradução portuguesa de J. Guinsburg e Bento Prado Junior.</p><p>São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.68.</p><p>2 DESCARTES, 1996, p.69.</p><p>3 Questionava-se, desse modo, um dos pilares do humanismo do Renascimento, isto</p><p>é, a crença na oportunidade de se tornar Poeta mediante o estudo e a imitação dos</p><p>modelos clássicos (KRISTELLER, P. O. Los antecedentes medievales del humanismo</p><p>renacentista. In: ______. Ocho filósofos del renacimento italiano. Tradução espanhola</p><p>de Maria Peñaloza. México: Fondo de Cultura Econômica, 1996, p.197).</p><p>158 • Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>outras meditações típicas da poética clássica, se não podem mais</p><p>pretender formar o poeta? Descartes deixou a pergunta no ar; não se</p><p>ocupou jamais em respondê-la, embora suas ponderações no Discurso</p><p>indicassem já um caminho: ele anuncia a ideia – que não chegou a</p><p>desenvolver – de que a poesia está no íntimo do poeta, em seu ser ou</p><p>em seu modo de ser, algo, portanto, que não se adquire com a disciplina,</p><p>mas se é ou possui, sugerindo, com isso, outra serventia e um novo</p><p>lugar para a poética e os seus temas. Sem que tivesse em vista ir além</p><p>da crítica das “Letras”, Descartes proporcionaria, ainda, uma moderna</p><p>chave interpretativa para a arte poética, permitindo descobrir nela,</p><p>mais que o gênero literário: o próprio homem e sua natureza. Embora</p><p>a crítica da primeira parte do Discurso coloque bem a questão, jamais</p><p>interessou a Descartes investigar essa natureza poética da mente ou</p><p>dom do espírito. Muito pelo contrário, ele dá o assunto por concluído na</p><p>medida em que essa natureza se reporta à imaginação e às sensações,</p><p>duas fontes inesgotáveis de erros, merecendo ser investigada, quando</p><p>muito, só preventivamente, ou com o fito, parafraseando o Discurso, de</p><p>conhecer-lhe o justo valor e evitar ser por ela enganado.4</p><p>Coube ao pensador napolitano Giambattista Vico levar</p><p>adiante isso que aparecia no Discurso somente indicado. Vico</p><p>foi poeta, escrevendo uma infinidade de versos em latim e em</p><p>italiano, mas, além disso, nutriu um elevado interesse filosófico</p><p>pelo assunto, abordando a poética frequentemente em suas obras</p><p>e, em geral, com um tom peculiar: sempre acreditando que a arte</p><p>não poderia esperar criar sozinha o poeta, já que sua verdadeira</p><p>fonte é o íntimo dos homens, sua natureza ou índole. Em uma de</p><p>suas primeiras obras, lemos que “o gênio poético, sendo dom de</p><p>Deus ótimo máximo, não se pode procurar com outro meio”.5 Uma</p><p>observação semelhante podemos encontrar no De Constantia</p><p>Iurisprudentis (1721): “A poesia nasceu da necessidade natural,</p><p>apesar de até hoje todos pensarem nascida do intencional propósito</p><p>dos homens”,6 e também na dignidade LI da Scienza nuova (1744),</p><p>4 DESCARTES, 1996, p.70.</p><p>5 VICO, G. De nostri temporis studiorum ratione. Organização e introdução de</p><p>Fabrizio Lomonaco. Napoli: ScriptaWeb, 2010, p.145 (de agora em diante De rat.).</p><p>6 VICO, G. De constantia Iurisprudentis. In: ______. Opere giuridiche. Organização di</p><p>Vico e a natureza poética primitiva • 159</p><p>segundo a qual “Em toda a faculdade para a qual os homens não</p><p>têm a natureza, alcançam-na com obstinado estudo da arte; mas em</p><p>poesia é absolutamente negado alcançar com a arte aquilo para o</p><p>qual não se tem a natureza”.7 Se prestarmos atenção nessa dignidade</p><p>percebermos que Vico não esvazia ali a função clássica da poética,</p><p>seu aspecto técnico, não obstante, para ele, o escopo dessa arte não</p><p>ultrapasse jamais os desígnios da natureza e seu êxito dependa</p><p>necessariamente dos dons da natureza poética. No seu Comentário</p><p>à Arte Poética de Horácio – que veio a público só postumamente</p><p>– Vico situou exemplarmente a questão ao expor assim a origem</p><p>das artes: “homens de engenho agudo pesquisaram as causas pelas</p><p>quais a natureza operou bem ou mal, e assim descobriram as artes”.8</p><p>Os preceitos da poética não seriam senão as lições da natureza ou as</p><p>causas pelas quais ela opera transformadas em regras, de modo que</p><p>essas regras nada podem realizar sem o concurso mesmo disso que</p><p>elas imitam: a natureza. Isso se depreenderia da própria etimologia</p><p>dos termos. Vico dirá que a nossa natureza nos confere a “faculdade”</p><p>poética, palavra que em latim se escreve “facultas” e é derivada</p><p>do termo “faculitas” do qual supostamente se origina “facilitas”</p><p>(facilidade), demonstrando, pelo viés etimológico, que a facilidade</p><p>para a poesia é uma vocação do artista e espontaneidade de sua</p><p>natureza. Insistindo nesse gênero de provas Vico dirá ainda que de</p><p>“facultas” (faculdade) se origina o termo “facundia” designando a</p><p>“capacidade de expressão, graças a qual as coisas ditas parecem</p><p>surgir não de quem as pronuncia, mas espontaneamente, de per se</p><p>e, assim, naturalmente”,9 designando, portanto, uma certa facilidade</p><p>de dizer as coisas, de tal espécie que parecem espontaneamente</p><p>saltar do espírito de quem as escuta e, por ser algo assim tão fácil</p><p>(facilitas), “consiste mais de natureza que de arte”.10</p><p>Paolo Cristofolini e introdução de Nicola Badaloni. Firenze: Sansoni, 1974, p.470.</p><p>7 VICO, G. Princìpj di Scienza nuova d’intorno alla comune natura delle nazione.</p><p>Organização de Fausto Nicolini. Milão: Ricciardi, 1992, §213 (de agora em diante</p><p>Sn44).</p><p>8 VICO, G. Commento all’arte poetica di Orazio. Organização e tradução italiana de</p><p>Guido De Paulis. Napoli: Guida, 1998, p.95, grifo meu (de agora em diante Ars).</p><p>9 Ars, p.101.</p><p>10 Ars, p.101.</p><p>160 • Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>Que natureza é essa cuja espontaneidade dá origem à poesia? A</p><p>resposta de Vico aparece já numa breve passagem da Oração de 1708,</p><p>onde se lê que os melhores poetas “são seres da fantasia e têm como</p><p>numes peculiares a Memória e as suas filhas, as Musas”.11 Assim, floresce</p><p>espontaneamente a poesia em uma mente repleta de memória e fantasia,</p><p>faculdades que ocorrem sempre juntas: a primeira armazenando as</p><p>sensações e disponibilizando-as para o trabalho das faculdades, a outra</p><p>formando imagens a partir dos dados disponíveis na memória, trama</p><p>essa confirmada pelos antigos gregos que chamavam as Musas,</p><p>filhas</p><p>da Memória, divindades inspiradoras dos poetas, “seres da fantasia”.</p><p>Fica evidente, ao mesmo tempo, uma tensão e permanente oposição</p><p>entre essa natureza da mente e a mentalidade típica dos filósofos e</p><p>homens de ciência; de fato, Vico insistirá numa espécie de relação de</p><p>proporcionalidade inversa regendo as diferentes “naturezas”, dos poetas</p><p>e dos filósofos; segundo ele, “A fantasia tanto é mais robusta quanto é</p><p>mais débil o raciocínio”,12 o que lhe permite dizer, também, “que por um</p><p>defeito do raciocínio humano nasce a poesia”.13</p><p>I</p><p>Nas primeiras elaborações filosóficas de Vico, e me refiro</p><p>especificamente ao De nostri temporis studiorum ratione (1709),</p><p>as reflexões sobre a poesia ajudaram a apoiar a tese de cunho</p><p>pedagógico segundo a qual as disciplinas do currículo de formação (a</p><p>ratio studiorum) deviam seguir as idades dos aprendizes, “sem fazer</p><p>violência à natureza”,14 tese com a qual combatera polemicamente</p><p>a popularização, nas escolas, da art de penser de Arnauld e Nicole:</p><p>método de ensino responsável por exaltar o aprendizado precoce da</p><p>crítica e sugerir a aplicação da razão na investigação da verdade desde</p><p>tenra idade, quando as crianças ainda se acham imersas nos sentidos e</p><p>na fantasia e é demasiado vivo o engenho e a memória fecundando no</p><p>espírito infantil, com extrema facilidade, o verossímil e o senso comum.</p><p>11 De rat., p.145.</p><p>12 Sn44, §185.</p><p>13 Sn44, §384.</p><p>14 De rat., p.69, grifo meu.</p><p>Vico e a natureza poética primitiva • 161</p><p>A art de penser de Arnauld e Nicole resumia a teoria cartesiana do</p><p>conhecimento – e sua prevenção em relação aos sentidos, à imaginação</p><p>e tudo aquilo que nos enganou pelo menos uma vez – na moderna</p><p>ratio studiorum, deixando à margem a ordem imposta, pela índole</p><p>das idades, às matérias de estudo e ensinado “a verdade primeira [...]</p><p>muito prematuramente aos jovens”.15 O risco contido nisso era perder</p><p>de vista aquilo mesmo que se buscava: o conhecimento da verdade.</p><p>Primeiro, porque “a verdade primeira” acabava sendo ensinada numa</p><p>idade imprópria, para infantes imaturos, sem a natureza requerida</p><p>para assimilá-la. Ao mesmo tempo, sufocava a natureza peculiar à</p><p>infância, comprometendo, na opinião de Vico, o desenvolvimento pleno</p><p>das faculdades que preparam, na criança, o bom exercício da crítica e,</p><p>o que é ainda mais grave, o aprendizado da prudência civil, “para que,</p><p>alcançada a maturidade, no tempo da ação prática, não incorram em</p><p>ações estranhas e inabituais”.16</p><p>Na infância e na adolescência forma-se no indivíduo o senso</p><p>comum agenciado pelas verossimilhanças que naturalmente</p><p>predominam em seu espírito e cuja fonte copiosa são as faculdades</p><p>conaturais ao frescor da idade: a fantasia, a memória e o engenho. Essa</p><p>não é, para Vico, uma etapa da formação que se pode negligenciar, pois</p><p>é ela que determinará, na idade adulta, além da norma ética, também</p><p>o zelo na pesquisa da verdade. Não obstante o horizonte pedagógico</p><p>estreito dos racionalistas de Port-Royal, poder-se-ia interrogar se</p><p>Descartes chegaria aonde chegou se, na sua infância e adolescência,</p><p>não tivesse sido nutrido nas Letras, na gramática, na história, na poesia,</p><p>como ele próprio admitiu no Discurso: “penso ter tido muita felicidade</p><p>de me haver encontrado, desde a juventude, em certos caminhos,</p><p>que me conduziram a considerações e máximas, de que formei um</p><p>método”.17 Ali é que é fecundada a eloquência, aquela facilidade de</p><p>percorrer com a mente os lugares dos argumentos e de descobrir o que</p><p>há neles de verossímil e persuasivo e que Vico estima desejável não</p><p>só no enfrentamento das arengas públicas, mas, inclusive, na prática</p><p>da ciência. Afinal, interpela Vico, que certeza se pode ter de conhecer</p><p>15 De rat., p.67.</p><p>16 De rat., p.65.</p><p>17 DESCARTES, 1996, p.66.</p><p>162 • Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>a verdade se a inteligência primeiramente não percorreu os vários</p><p>lugares de um mesmo argumento? Ao mesmo tempo, são a desenvoltura</p><p>do senso comum e a contiguidade da verdade com o verossímil as</p><p>responsáveis pela acomodação da ciência às circunstâncias imediatas</p><p>de vida dos homens.</p><p>Desse modo, o senso comum, como observa Lomonaco, “é a</p><p>verdade tal qual pode aparecer ao homem [...] a verdade nas suas</p><p>formas não reflexivas, mas preceptivas e tópicas”.18 Vico defendia</p><p>assim, contra o intelectualismo difuso nos círculos cartesianos, o</p><p>amoldamento dos universais da razão científica a um vero comune</p><p>adequado ao entendimento e à comunicação vulgar, e acreditava que</p><p>isso seria possível somente se os púberes, antes de qualquer coisa,</p><p>cultivassem neles mesmos, ajudados pelos mestres, o verossímil,</p><p>mediante “aquelas artes que reclamam memória ou fantasia, ou</p><p>ambas, como a pintura, a poesia, a oratória e a jurisprudência”.19</p><p>Reencontramos assim, o nosso tema e o lugar ocupado por ele no</p><p>De ratione: a poesia e a poética aparecem nessa obra na forma de</p><p>uma disciplina conforme à natureza infantil repleta de fantasia e de</p><p>memória, e apta a desenvolver as potencialidades dessa idade: as</p><p>verossimilhanças e o senso comum, conquistas essas indispensáveis</p><p>ao exercício pleno da vida adulta, seja à conversação civil, seja à</p><p>investigação da verdade e à ciência dos filósofos.</p><p>Insistindo em seu argumento, Vico enlaça de modo surpreen-</p><p>dente o melhor exemplo do rigor filosófico moderno, o método geo-</p><p>métrico, e as “ficções poéticas”, que, por outro lado, evocavam, no</p><p>imaginário comum da época, a imaginação sem freios dos antigos. A</p><p>intrincada cadeia dedutiva de razões, transferida por Descartes da ge-</p><p>ometria para tudo o que pode ser humanamente conhecido, de fato só</p><p>se processaria tendo por base a faculdade poética, engenhosa e me-</p><p>tafórica de “bem conectar certas imagens a certas outras”, de modo</p><p>que “as segundas pareçam derivar das primeiras, e as terceiras das</p><p>segundas”.20 Vico entendia que a facilidade em processar as deduções</p><p>18 LOMONACO, F. Introduzione. In: VICO, G. De nostri temporis studiorum ratione.</p><p>Organização e introdução de Fabrizio Lomonaco. Napoli: ScriptaWeb, 2010, p.17.</p><p>19 De rat., p.69.</p><p>20 De rat., p.147.</p><p>Vico e a natureza poética primitiva • 163</p><p>pressupunha necessariamente, como condição, outra faculdade – ge-</p><p>nuinamente poética e, diga-se, própria da infância – de reunir os ob-</p><p>jetos na inteligência e ligá-los intimamente, estabelecendo entre eles</p><p>laços de necessidade, sem o que não seria possível qualquer encadea-</p><p>mento dedutivo. Por isso tudo, a ratio studiorum dos modernos, con-</p><p>trariamente ao que pregava a educação jansenista, devia se basear na</p><p>compreensão de que o conhecimento da verdade também é vocação</p><p>do poeta – pois “os poetas visam a verdade ideal e universal”21 – e de</p><p>que o bom uso do raciocínio depende do cultivo da natureza fantasiosa</p><p>e do engenho das crianças por meio do ensino e do exercício delas em</p><p>artes como a poética.</p><p>A concepção de poesia que encontramos no De ratione,</p><p>apesar de bastante elaborada, demonstrando já o grande interesse</p><p>filosófico de Vico pelo assunto, não é ainda, seguramente, um retrato</p><p>fiel da sua ideia mais acabada. Entretanto, certas conclusões do</p><p>De ratione indicam, com precisão, tendências que conformariam</p><p>fundamentalmente a concepção madura de poesia presente no De</p><p>constantia, e que ele desenvolveria até a redação definitiva da Scienza</p><p>nuova. É justo afirmar que na Oração de 1708 encontramos esboçadas</p><p>as marcas características da natureza poética do homem, tal como</p><p>a entenderia Vico na sua produção filosófica posterior, em suma, as</p><p>faculdades que lhe dão sustentação são a fantasia e a memória, o seu</p><p>momento oportuno é o mais original e primordial da vida humana, a</p><p>infância, e dela emerge efusivamente uma sabedoria vulgar, que, em</p><p>seus traços essenciais, se distingue e é, por isso, negada por aquela</p><p>sabedoria dita filosófica.</p><p>II</p><p>Vico destinou sua Scienza nuova aos filósofos políticos, em</p><p>oposição àqueles ditos monásticos ou solitários, assim chamados</p><p>por não reconhecerem em suas teorias sobre a natureza humana, a</p><p>política e a história, a real</p><p>importância da sociabilidade: o fato de os</p><p>homens conviverem toleravelmente em sociedade desde que se tem</p><p>21 De rat., p.149.</p><p>164 • Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>deles alguma notícia. Sua ciência se situa, portanto, no âmbito da</p><p>discussão clássica do jusnaturalismo ou da doutrina do direito natural.</p><p>Na trilha de Grócio, Pufendorf e Hobbes, a Scienza nuova intentou</p><p>compreender o surgimento da política partindo da evidência de uma</p><p>natureza humana. A novidade de Vico estava precisamente no modo</p><p>de conceber essa natureza. Ele discordava do jusnaturalismo da época</p><p>que somente “especulava” sobre a natureza humana, concebendo o</p><p>homem como deve ser e não como realmente é: “A filosofia considera</p><p>o homem como deve ser e assim não pode aproveitar senão</p><p>pouquíssimos que queiram viver na república de Platão”.22 Semelhante</p><p>filosofia, valendo-se mais de hipóteses do que dos indícios históricos</p><p>esparsos da humanitas, abandona as coisas, assim, “fora de seu estado</p><p>natural”.23 Contrapondo-se a esse marco analítico, a nova ciência de</p><p>Vico ancoraria suas teorizações sobre o direito natural na memória da</p><p>humanidade, nos registros históricos, começando pela mitologia, e é</p><p>nesse contexto investigativo, precisamente, que a Poética encontra seu</p><p>lugar próprio. O papel dela é fundamentalmente hermenêutico: dar-</p><p>nos acesso aos documentos ancestrais da humanitas, dar-nos acesso,</p><p>portanto, ao sentido histórico dos mitos primitivos fundadores das</p><p>primeiras religiões pagãs e das primeiras famílias: as sementeiras das</p><p>repúblicas, conforme Vico.</p><p>Vico descobre nos mitos uma natureza humana essencialmente</p><p>racional, porém, considera que no início dos tempos, na infância da</p><p>humanidade, os homens não foram racionais como hodiernamente:</p><p>possuidores de uma racionalidade lógica e matemática, comprometida</p><p>com o cálculo, com a exatidão e a verdade, em vez disso, teriam</p><p>sustentado uma forma de racionalidade, como eles próprios, rude e</p><p>bárbara, ensinada inteiramente pelo corpo, logo, presa às sensações</p><p>e às inconstâncias e reveses das paixões. Quando essa razão bárbara</p><p>se arvora a explicar o cosmo (natural e social) acaba finalmente</p><p>poetizando e dando vida à mitologia, às fábulas dos deuses e dos heróis,</p><p>acaba dando vida a</p><p>22 Sn44, §131.</p><p>23 Sn44, §134.</p><p>Vico e a natureza poética primitiva • 165</p><p>uma metafísica, não raciocinada e abstrata, como a de agora dos doutos,</p><p>mas sentida e imaginada como deve ter sido de tais primeiros homens,</p><p>pois aqueles, desprovidos de qualquer raciocínio, eram dotados de</p><p>sentidos robustos e vigorosíssimas fantasias.24</p><p>Frequentador dos salões literários napolitanos e poeta de</p><p>ocasião, Vico produziria com a sua Scienza nuova uma revolução no</p><p>terreno da poética, a saber, de técnica ou arte da obra literária, esforço</p><p>do pensamento na organização das regras que norteiam a criação</p><p>artística, tal como vinha sendo concebida classicamente25, a poética</p><p>transforma-se em uma teoria do conhecimento que reconstitui os</p><p>aspectos do pensar bárbaro e recupera a mitologia e o paganismo como</p><p>memória do que era então imemorial: os começos da humanitas, “nossa</p><p>desconhecida longínqua antiguidade”,26 aquilo que aproximadamente</p><p>corresponderia ao estado de natureza jusnaturalista. A poética deixava</p><p>de ser simplesmente técnica de composição literária para se tornar</p><p>metafísica da mente: investigação meta-física da alma humana em sua</p><p>etapa primitiva, infantil, e de sua lógica poética. Vico não estabeleceu</p><p>desse modo, antecipando Baumgarten, a estética, como quiseram</p><p>alguns críticos, Croce como é notório. Não lhe caberia, portanto, a</p><p>repreensão pela confusão dos domínios da poética e da filosofia da</p><p>arte, negligência metodológica que, segundo Luigi Pareyson, produziu</p><p>lamentáveis resultados.27 A singularidade do enfoque viquiano – é o que</p><p>parece – está sim em investigar na poética uma teoria do conhecimento</p><p>consoante à filosofia civil, que concebe a razão problematicamente,</p><p>24 Sn44, §375.</p><p>25 Aristóteles, na primeira frase da Poética, define assim a natureza do seu livro:</p><p>“Falemos da natureza e espécies da poesia, do condão de cada uma, de como se</p><p>hão de compor as fábulas para o bom êxito do poema” (ARISTÓTELES. Poética.</p><p>In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. Poética clássica. Tradução portuguesa de</p><p>Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2005, p.19). Também a Arte Poética de Horácio</p><p>pretende orientar a composição literária: “ensinarei as regras do mister, as fontes</p><p>de recursos, o que nutre e forma o poeta, o que fica bem, o que não, aonde leva</p><p>o acerto, aonde o erro” (HORÁCIO. Arte poética. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO,</p><p>LONGINO. Poética clássica. Tradução portuguesa de Jaime Bruna. São Paulo:</p><p>Cultrix, 2005, p.64).</p><p>26 Sn44, §121</p><p>27 PAREYSON, L. Estética e Poética. In: ______. Os problemas da estética. Tradução</p><p>portuguesa de Maria Helena Nery Garcez. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p.15-19.</p><p>166 • Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>quer dizer, historicamente ou como modificação, e não uma estética,</p><p>como esperamos demonstraremos nas páginas seguintes.28</p><p>III</p><p>Vico dedicou todo o segundo livro da Scienza nuova, intitulado</p><p>Della sapienza poetica – algo próximo da metade das páginas que</p><p>compõem a sua Scienza – à sistematização daquela metafísica da</p><p>mente.29 Vejamos detalhadamente como Vico, partindo da tradição</p><p>poética clássica, elabora essa sua metafísica. Um primeiro aspecto</p><p>central da lógica poética viquiana que evoca diretamente os manuais</p><p>de arte poética é o conceito clássico de mimese, ou o fato de a poesia</p><p>operar fundamentalmente com base na imitação. Só que diferentemente</p><p>do literato e do poeta por profissão, que, dentre os expedientes estéticos</p><p>disponíveis, elege a mimese, o poeta por natureza, a criança ou o bárbaro,</p><p>não encontra alternativa, somente pode imitar, condicionado como está</p><p>por uma mentalidade imatura, inteiramente ensinada pelo corpo; razão</p><p>pela qual, disse Vico, “os sentidos são as únicas vias pelas quais pode</p><p>conhecer as coisas”.30 Em vez de uma teoria empirista do conhecimento,</p><p>ou uma “reprodução, mesmo que defeituosa, da verdade empírica”,31</p><p>Vico pretendia explicar com esse conceito, sobretudo, a gênese histórica</p><p>da sabedoria, cujo começo é a imitação das propriedades concretas e</p><p>sensíveis dos objetos do conhecimento, formando as ideias corpulentas</p><p>do gênio poético, ideias que podem ser assim nomeadas pelas suas</p><p>flagrantes semelhanças com os corpos particulares ideados.</p><p>28 Conforme Pareyson, a poética teria “um caráter programático e operativo”,</p><p>tratar-se-ia das instruções de uma arte em particular e, por isso, seria incapaz de</p><p>exprimir uma reflexão sobre a arte em geral, o “caráter filosófico e especulativo” da</p><p>estética (PAREYSON, 2001, p.15), o que certamente não constituía um problema</p><p>para Vico, pois, em vez de uma filosofia da arte, a poética orientaria uma precisa</p><p>epistemologia, que sequer almejava o conhecimento em geral, mas as operações</p><p>pelas quais a mente primitiva constrói o seu conhecimento, diga-se, poético.</p><p>29 Os argumentos do Libro Secondo seguem uma ordem sistemática: versam</p><p>detidamente sobre a metafísica e a lógica e, em seguida, tratam da moral, da</p><p>economia, da política, da história, da física, da cosmografia, da astronomia, da</p><p>cronologia e da geografia, todas poéticas.</p><p>30 Sn44, §374.</p><p>31 BOTTURI, F. La sapienza della storia: Giambattista Vico e la filosofia pratica.</p><p>Milano: Vita e Pensiero, 1991, p.359.</p><p>Vico e a natureza poética primitiva • 167</p><p>Nesse caso, as ideias das coisas se confundem com as próprias</p><p>percepções dessas coisas, transformando, por exemplo, a onomatopeia</p><p>– habitualmente considerada uma figura de linguagem, de estilística,</p><p>em que um som é imitado por uma palavra – expressão de uma</p><p>lógica poética, do modo pelo qual a mente infantil representa e pensa</p><p>seus objetos. Seria essa, supostamente, a causa daquelas que foram</p><p>as primeiras e mais fundamentais ideias da humanitas europeia, as</p><p>divindades maiores Júpiter e Zeus, originariamente, segundo Vico,</p><p>imitações dos sons da natureza,</p><p>nessa polêmica é necessário reconstruir brevemente</p><p>os argumentos dos interlocutores. Em primeiro lugar, os argumentos</p><p>do cético Carnéades, que nega a existência de um direito natural e do</p><p>caráter social da natureza humana. Em segundo lugar, os argumentos</p><p>do naturalista Hugo Grócio, que pretende refutar os céticos apelando</p><p>a um suposto desejo gregário e aos princípios da reta razão. E em</p><p>terceiro lugar, os argumentos de Vico, que aponta a debilidade dos</p><p>argumentos de Grócio e propõe uma nova refutação do ceticismo.</p><p>Carnéades é o adversário a quem Grócio atribuiu as seguintes</p><p>teses nos Prolegomena de seu De iure Belli ac Pacis:2 (I) o direito se</p><p>reduz a um conjunto de convenções aceitas voluntariamente pelos</p><p>membros de uma comunidade política; (II) a ameaça do uso da força é</p><p>o meio mais eficaz para alcançar o consentimento e (III) a utilidade é o</p><p>motor exclusivo da ação humana. Dessas teses segue-se o rechaço cético</p><p>da ideia de um direito natural, obrigatório para todo o gênero humano,</p><p>independente do assentimento voluntário e derivado exclusivamente da</p><p>razão humana. Grócio, por sua vez, pretende refutar os céticos mediante</p><p>o seguinte argumento. De um lado, os céticos reduzem o direito às</p><p>normas do direito positivo, ou voluntário, obedecidas pelos súditos das</p><p>1 VICO, G. Principi di Scienza Nuova d’intorno alla comune natura delle nazioni</p><p>(1744). In: ______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori,</p><p>1990, §135 (de agora em diante Sn44).</p><p>2 GROCIO, H. Prolegomena. In: ______. Del derecho de presa. Del derecho de la guerra</p><p>y de la paz (1680). Edição bilíngue com tradução espanhola P. M. Gómez,. Madrid:</p><p>Centro de Estudios Constitucionales, 1987.</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 21</p><p>diversas nações. Essas normas positivas, aponta Grócio, pressupõem a</p><p>observância de um conjunto de normas universais, ditadas pela reta razão</p><p>e independentes do consentimento humano. Por exemplo, aqueles que</p><p>estabelecem qualquer convenção e podem-na fazer valer como norma</p><p>do direito positivo dentro de um Estado necessitam admitir, ao menos</p><p>implicitamente, a norma do direito natural que ordena que se devem</p><p>cumprir os pactos. De outro lado, os céticos sustentam que a satisfação</p><p>da utilidade privada é o único móbil da ação humana. Grócio adverte que</p><p>a satisfação do interesse privado pressupõe a satisfação do desejo de</p><p>viver em uma sociedade pacífica e organizada em conformidade com o</p><p>entendimento (appettitus societatis). Esse desejo gregário não depende</p><p>do capricho contingente dos indivíduos, mas está inscrito na natureza</p><p>humana e opera não só nos casos de filantropia, bem como, também,</p><p>quando o móbil da ação parece ser somente a utilidade privada. Grócio</p><p>sustenta, portanto, que não é possível, como querem os céticos, perseguir</p><p>a própria utilidade sem desejar ao mesmo tempo viver em sociedade,</p><p>nem tampouco obedecer à norma do direito positivo sem pressupor a</p><p>validade de uma norma do direito natural.3</p><p>No axioma citado, Vico sustenta, por sua vez, que a polêmica</p><p>acerca da sociabilidade natural ainda não foi resolvida porque</p><p>o argumento de Grócio não refuta os céticos, os quais poderiam</p><p>coerentemente admitir as premissas do argumento de Grócio e</p><p>rechaçar suas consequências. A tese, segundo à qual a ideia de uma</p><p>convenção pressupõe sempre a expectativa de seu cumprimento,</p><p>poderia ser admitida sem reconhecer que essa expectativa se deduz</p><p>racionalmente de uma norma do direito natural. O cético pode sempre</p><p>entender a norma que exige o cumprimento das promessas como uma</p><p>parte da expressão “convenção voluntária”. Por outro lado, o desejo</p><p>de viver em sociedade poderia ser reconhecido como um desejo</p><p>comum aos seres humanos sem a necessidade de atribui-lo a uma</p><p>suposta natureza humana. O cético pode sempre entender esse desejo</p><p>como simples meio de perseguição da utilidade privada. Ele pode</p><p>admitir que se deva cumprir as promessas e que é desejável viver em</p><p>3 Cf. ROBERT, S. Grotius on Scepticism and Self-Interest. Archiv für Geschichte</p><p>der Philosophie, Berlin, n.78, p.27-47, 1996; RICHARD, T. Grotius, Carneades and</p><p>Hobbes. Grotiana, Leida, n.4, p.43-62, 1983.</p><p>22 • Alberto Mario Damiani</p><p>sociedade, sem admitir a ideia de um direito natural nem outro móbil</p><p>da ação humana que não a utilidade privada. Essa parece ser a razão</p><p>para Vico sustentar que nem sequer Grócio pôde resolver a disputa</p><p>sobre a sociabilidade natural do ser humano.</p><p>Vico propõe uma refutação alternativa do ceticismo jurídico-</p><p>político, um pouco mais complexa que a ensaiada por Grócio. Sua</p><p>complexidade consiste em Vico conceder aos céticos suas premissas,</p><p>para rechaçar suas conclusões. Igual ao cético, Vico sustenta que a</p><p>ideia de um direito natural racional não pode explicar a origem do</p><p>mundo civil. Essa ideia é concebida pelos jusnaturalistas como um</p><p>conjunto de regras práticas, obrigatórias para todo ser humano</p><p>porque resultam evidentes à razão. Como tentarei mostrar mais</p><p>adiante, Vico afirma que a racionalidade é um resultado tardio no</p><p>desenvolvimento histórico da natureza humana e do mundo civil.</p><p>Por isso, regras dependentes exclusivamente da razão não poderiam</p><p>ter orientado os autores do mundo civil no estabelecimento das</p><p>primeiras instituições domésticas e políticas.</p><p>A debilidade do jusnaturalismo racionalista deriva da suposição</p><p>de uma concepção unilateral da natureza humana. Essa concepção</p><p>parece representar somente o ser humano tal como o conhecemos na</p><p>atualidade, isto é, quando já foi domesticado pelas religiões, civilizado</p><p>pelas leis e humanizado pelas instituições republicanas. A ideia</p><p>perfeita de justiça, pressuposta nos ditames da reta razão, só pode ser</p><p>admissível para seres humanos capazes de concebê-la racionalmente,</p><p>e essa capacidade, afirma Vico, só pode surgir sob determinadas</p><p>condições institucionais. Por isso, a ideia de um direito natural evidente</p><p>para a razão humana não pode ser utilizada para justificar a origem do</p><p>mundo civil. O vício metodológico cometido pelos teóricos modernos</p><p>do direito natural, denominado por Vico “a vaidade dos doutos”,4</p><p>consiste em projetar, ilegítima e anacronicamente, uma ideia de direito</p><p>racional, válida para nós, sobre as origens do direito e do humano. Os</p><p>autores do mundo civil não poderiam ter sido “homens iluminados</p><p>pela razão natural completamente desenvolvida”,5 tal como os imagina</p><p>4 Sn44, §127.</p><p>5 Sn44, §394.</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 23</p><p>o moderno jusnaturalismo racionalista. As vontades que sustêm o</p><p>estabelecimento das primeiras instituições sociais e políticas precisam</p><p>ter sido determinadas por intermédio de certezas independentes de</p><p>toda concepção racional da justiça e do direito.</p><p>Vico concede também aos céticos que a utilidade é o único</p><p>móbil da ação humana. A tese racionalista que atribui ao ser humano</p><p>um desejo gregário não atentaria para a natureza corrupta do homem,</p><p>representada teologicamente pela figura do pecado original. Como</p><p>consequência desta corrupção originária da natureza humana, a</p><p>satisfação das próprias necessidades e a busca do que cada um crê útil</p><p>para si mesmo são os únicos motores da ação humana. Por isso, Vico</p><p>sustenta que a necessidade e a utilidade são as únicas duas fontes do</p><p>direito natural6. Esse direito só pode ser demonstrado tomando-se</p><p>a sério o caráter auto-interessado da ação humana e rechaçando as</p><p>ilusões antropológicas do racionalismo jusnaturalista. Essas premissas</p><p>baseiam-se na imagem errônea de um homem simples que deseja</p><p>naturalmente viver em sociedade. Por isso, em diversas passagens</p><p>de seus escritos Vico critica a antropologia de Grócio, acusando-o de</p><p>defender a tese sociniana do homem simples e inocente, ou seja, livre</p><p>das consequências do pecado original.7</p><p>Portanto, Vico parece encarar a questão da sociabilidade</p><p>natural do seguinte modo. Junto com os céticos, se nega a atribuir</p><p>à natureza humana um desejo inato de associação e um conjunto de</p><p>normas racionais do direito natural, e sustenta que</p><p>do estrondo dos trovões e do silvo dos</p><p>raios respectivamente.32</p><p>A dignidade LII da Scienza nuova estabelece que “Os infantes</p><p>são excelentes na imitação, porque os observamos frequentemente</p><p>imitar isso que são capazes de aprender”,33 e conforme explica</p><p>Vico: “Esta dignidade demonstra que o mundo infantil foi de nações</p><p>poéticas, não sendo a poesia outra coisa que imitação”.34 Tal passagem</p><p>esclarece, de uma só vez, a aproximação e o distanciamento da Scienza</p><p>nuova de 1744 em relação à poética clássica, especialmente àquela</p><p>de Aristóteles.35 Tudo indica que Vico, de certo modo, parodia ali as</p><p>palavras do Estagirita, em particular aquelas sobre as causas naturais</p><p>da poesia: “Imitar é natural ao homem desde a infância — e nisso</p><p>difere de outros animais em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os</p><p>primeiros conhecimentos por meio da imitação”.36</p><p>Aristóteles fez a poesia partir da natural habilidade humana</p><p>de imitar e de aprender desse modo, bem como acentuou a presença</p><p>dessa natural habilidade na infância, responsabilizando-a pelos nossos</p><p>conhecimentos iniciais. Portanto, de acordo com aquela passagem da</p><p>Poética, a imitação e a poesia instaurariam um tipo de conhecimento</p><p>“infantil”, “primeiro”, antecipando as considerações modernas</p><p>32 Sn44, §447.</p><p>33 Sn44, §215.</p><p>34 Sn44, §216.</p><p>35 Cf. LOLLINI, M. Le Muse, Le Maschere e il sublime: G. B. Vico e la poesia nell’età</p><p>della “ragione speigata”. Napoli: Guida, 1994, p.136-138. Como notou Lollini há</p><p>um anti-intelectualismo na poética viquiana que a distingue radicalmente daquela</p><p>aristotélica; isso não é suficiente, porém, para desligá-lo daquela influência, como,</p><p>em substância, defendemos nesse nosso texto.</p><p>36 ARISTÓTELES, 2005, p.21 et seq.</p><p>168 • Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>da Scienza nuova.37 Entretanto, avançando em relação ao cânone</p><p>clássico, Vico introduziria nesse contexto argumentativo o fator</p><p>histórico, entendendo o conhecimento por imitação típico da infância,</p><p>instaurador da poesia, desde o horizonte da história das nações. A poesia</p><p>seria vista por ele, então, como uma natureza humana, a infantil, tosca</p><p>e bárbara da humanitas nascente, instauradora das primeiras idades</p><p>das nações e contrastante, no plano da história, com a maturidade</p><p>dos filósofos que se amontoam nas Repúblicas. Segundo uma tal visão</p><p>histórica, esse contraste não se baseia simplesmente na distinção das</p><p>naturezas do bárbaro e do civilizado, mas numa distinção mesma de</p><p>épocas: a infância, as origens pequenas, e o apogeu dos povos. Assim</p><p>como começamos crianças, pueris, também a história dos povos teve</p><p>a sua infância, seus começos, e a prova disso encontramos entre os</p><p>gregos que, antes de se encantarem com a razão discursiva de Sócrates</p><p>e Platão, reverenciaram a sabedoria poética e não-filosófica, vulgar,</p><p>de Homero. Há que se considerar sempre no conhecimento a variável</p><p>histórica e, em último caso, a filosofia “não como uma possibilidade</p><p>permanente do homem, mas como uma possibilidade histórica”.38</p><p>As tais ideias corpulentas do gênio poético não são, para Vico,</p><p>absolutamente redutíveis às impressões sensíveis, mas baseiam-se</p><p>já na composição de uma vigorosíssima fantasia, resultando, assim,</p><p>de certas operações da mente: dos transportes ou metáforas, e da</p><p>invenção das semelhanças (a inventio). São ideias, representações,</p><p>e não meras sensações, embora uma coisa leve à outra recíproca e</p><p>necessariamente. Vico nomeará essas ideias, também, como universais</p><p>ou gêneros fantásticos, colocando o leitor diante do desafio de abstrair o</p><p>sentido unívoco de um conceito que reúne duas noções aparentemente</p><p>37 A afirmação da Poética evoca aquela das primeiras linhas da Metafísica onde</p><p>lemos que “Todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento”</p><p>(ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução portuguesa de Edson Bini. Bauru:</p><p>EDIPRO, 2006, p.43). Segundo Marcello Zanatta, Aristóteles, com sua teoria da</p><p>mimese poética, “reivindica a verdade da poesia”, ou seja, “indica à poesia uma</p><p>natureza cognitiva e o fim do conhecimento é alcançar a verdade” (ZANATTA,</p><p>M. Introduzione. In: ARISTOTELE. Retorica e poética. Organização de Marcello</p><p>Zanatta. Torino: UTET, 2006, p.459).</p><p>38 SEVILLA, J. M. Universalismo fantástico: ragione poetica e ragione narrativa. In:</p><p>CACCIATORE, G et al. (orgs). Il sapere poetico e gli universali fantastici. La presenza</p><p>di Vico nella riflessione filosofica contemporânea. Napoli: Guida, 2004, p.247.</p><p>Vico e a natureza poética primitiva • 169</p><p>contraditórias: universal e fantasia, levando-se em consideração que a</p><p>matéria prima dessa última são os dados particulares da sensibilidade,</p><p>que ela compõe, depois, em imagens igualmente particulares. Ele</p><p>acredita que o poeta por natureza, dotado de fantasia vigorosa e de</p><p>robustos sentidos, está irremediavelmente preso ao particular, de</p><p>modo que canta as aventuras e desventuras de um Aquiles ou de um</p><p>Ulisses. Entretanto, na realidade, não passam de “falsos” particulares,</p><p>pois são indivíduos que definem, para além de suas singularidades,</p><p>qualidades comuns a seres semelhantes, predicando-os.</p><p>Na opinião de Vico, no mundo infantil das nações poéticas,</p><p>Aquiles e Ulisses não foram meros personagens individuais de uma</p><p>narrativa, mas desempenharam principalmente a função de gêneros,</p><p>aptos a unificar uma série de fenômenos de um mesmo tipo, de modo</p><p>que, no mundo poético das primeiras gentes gregas, todos os fortes</p><p>foram Aquiles e todos os prudentes, Ulisses. Insistindo no caráter</p><p>cognitivo e representativo da poesia, Vico definiu os universais</p><p>fantásticos como nomes próprios que, engendrando identidade</p><p>lógica não em termos de proporção e igualdade de relações, mas sim</p><p>em termos de predicação, ou procedendo a partir da extensão dos</p><p>predicados desses sujeitos, “significam as diversas espécies ou os</p><p>diversos indivíduos compreendidos nesses gêneros [...] como Aquiles,</p><p>uma ideia de valor comum a todos os fortes; como Ulisses, uma ideia</p><p>de prudência comum a todos os sábios”.39 Pode-se dizer, portanto, que</p><p>a meta do labor poético primitivo era essencialmente intelectual: a</p><p>“produção do tipo ideal [...] do singular que é indivíduo universal”,40 ou</p><p>ainda, nos termos de Vico, de “certos modelos” ou “retratos ideais”.41</p><p>Novamente a chave interpretativa dos conceitos de Vico</p><p>encontra-se no clássico de Aristóteles, nesse caso, na conhecida e</p><p>bastante fecunda distinção do nono livro da Poética entre a obra do</p><p>poeta e a do historiador. Elas diferem-se não pelo metrificar, mas,</p><p>nota Aristóteles, pelo fato de que “a Poesia encerra mais filosofia e</p><p>elevação”. O trabalho do historiador é “contar o que aconteceu”, ou seja,</p><p>ele “relata fatos particulares”, conta, por exemplo, “o que Alcebíades</p><p>39 Sn44, §403.</p><p>40 BOTTURI, 1991, p.153, grifo meu.</p><p>41 Sn44, §209, grifo meu.</p><p>170 • Sertório de Amorim e Silva Neto</p><p>fez ou o que fizeram a ele”. O poeta, por outro lado, “enuncia verdades</p><p>gerais” e não particulares como faz o historiador, entendendo que</p><p>“Enunciar verdades gerais é dizer que espécie de coisas um indivíduo</p><p>de natureza tal vem a dizer ou fazer verossímil ou naturalmente; a isso</p><p>visa a poesia, ainda quando nomeia personagens”.42 Não se trata, para</p><p>o poeta, de representar o que fez ou pensou Alcebíades, mas sim de</p><p>representar os atos e pensamentos próprios à pessoa de uma natureza</p><p>determinada; sua representação, por conseguinte, ultrapassa os</p><p>limites de uma realidade singular, efetiva, e se debruça sobre a natureza</p><p>humana em geral, evidenciando, sobretudo, a coerência existente entre</p><p>certos comportamentos e homens de uma certa espécie: quais os atos</p><p>convêm melhor à pessoa de uma determinada natureza. Não obstante</p><p>dê nomes próprios às suas personagens, não é intenção do discurso</p><p>poético copiar fielmente o real empírico, as semelhanças externas,</p><p>mas ele tem por objetivo um fim mais elevado, metafísico, a saber, a</p><p>representação da estrutura ideal e da ordem genética das coisas.43 Eis o</p><p>sentido que uma vasta tradição interpretativa, que vai de Castelvetro</p><p>o auto-interesse é</p><p>o único móbil da ação humana e que a obediência às normas do direito</p><p>voluntário não depende, necessariamente, de uma compreensão</p><p>racional da ideia perfeita de justiça. Vico, todavia, não segue</p><p>Carnéades e Epicuro no repúdio da ideia de um direito natural e de</p><p>uma natureza humana sociável. O peculiar da argumentação de Vico</p><p>reside justamente em pretender demonstrar a necessidade de um</p><p>direito natural e do caráter sociável da natureza humana partindo dos</p><p>6 Sn44, §141.</p><p>7 Cf. VICO, G. Princìpi di una scienza nuova intorno alla natura delle nazioni (1725).</p><p>In: ______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990, §16,</p><p>47, 134, 482; também Cf. VICO, G. Lettera a Monsignor Filippo María Monti. In:</p><p>______. Opere. Organização de Andrea Battistini. Milano: Mondadori, 1990, p.306,</p><p>e Sn44, §338, 553.</p><p>24 • Alberto Mario Damiani</p><p>pressupostos céticos. O argumento de Vico contra os céticos jurídico-</p><p>políticos questiona a possibilidade de justificar o estabelecimento e a</p><p>conservação das instituições somente com base no interesse egoísta</p><p>que motiva toda ação humana. Se os indivíduos seguem apenas seus</p><p>próprios interesses e se se descarta o pressuposto racionalista de</p><p>um desejo gregário, parece faltar algum elemento que aglutine os</p><p>indivíduos nas instituições, ou, em outras palavras, que os obrigue</p><p>a obedecer.</p><p>Os céticos imaginam que as instituições são somente meios para</p><p>satisfazer interesses egoístas, convenções dependentes de vontades</p><p>auto-interessadas. Se assim fosse, parece apontar Vico, as instituições</p><p>se reduziriam a acordos precários e inseguros que não permitiriam</p><p>a conservação do gênero humano. Os céticos haviam interpretado</p><p>incorretamente o axioma que qualifica as necessidades e utilidades</p><p>das fontes do direito. Segundo Vico, os interesses egoístas seriam</p><p>somente ocasiões (ou razões necessárias) para o estabelecimento</p><p>das instituições, porém não causas (ou razões suficientes) para</p><p>seu estabelecimento.8 Enquanto os céticos pretendem reduzir as</p><p>instituições em meios para satisfazer os interesses dos indivíduos,</p><p>Vico sustenta que esses interesses são meios para estabelecer e</p><p>conservar as instituições. Essas, por sua vez, garantem a realização</p><p>de um objetivo que excede o interesse individual: a conservação do</p><p>gênero humano nesta terra.9</p><p>II</p><p>Tendo reconstruído até aqui, ao menos de maneira breve e</p><p>esquemática, a posição de Vico dentro da polêmica filosófica sobre</p><p>a sociabilidade natural do ser humano, gostaria, na continuação, de</p><p>8 VICO, G. De universi iuris uno principio et fine uno liber unus (1720). In: ______.</p><p>Diritto universale. Organização de Fausto Nicolini. Bari: Laterza, 1936, vol.I (de</p><p>agora em diante De uno). No Diritto universale, Vico atribui também a Grócio</p><p>a opinião cética de que a utilidade é a causa do direito. Esta atribuição resulta</p><p>surpreendente, porque Grócio havia intentado explicitamente refutar essa opinião,</p><p>que ele atribuía ao cético Carnéades (De uno, XLVI, I, p.54-55); Cf. GROCIO, 1987,</p><p>§16. Sobre este erro momentâneo da leitura viquiana de Grócio, não repetido nas</p><p>obras posteriores Cf. FASSÒ, G. Vico e Grozio. Napoli: Guida, 1971, p.44.</p><p>9 Sn44, §1.108.</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 25</p><p>examinar a questão da compatibilidade entre as noções de estado</p><p>selvagem e sociabilidade natural. Essa questão prontamente se</p><p>apresenta quando Vico afirma, por um lado, que o ser humano é por</p><p>natureza sociável e, por outro, que ele recaiu e pode sempre recair na</p><p>anomia provocada pela completa dissolução das instituições sociais.</p><p>Noutro lugar busquei reconstruir a mudança de perspectiva que</p><p>a Scienza nuova introduz no desenvolvimento da concepção viquiana</p><p>acerca da natureza humana.10 Nessa obra Vico formula uma concepção</p><p>histórica da natureza humana. Essa concepção propõe, como ponto de</p><p>partida, a descrição das condições extremas nas quais se desenvolve</p><p>a vida humana sem instituições, quer dizer, as condições próprias</p><p>do estado selvagem. Com essa descrição Vico participa do debate</p><p>moderno sobre as características de um estado que precede a vida</p><p>social e civil dos seres humanos. Vários elementos distinguem o estado</p><p>selvagem descrito por Vico das versões mais correntes do estado de</p><p>natureza imaginadas pelos filósofos dos Séculos XVII e XVIII. Em</p><p>primeiro lugar, Vico não concebe esse estado como uma mera hipótese</p><p>de sua doutrina política, antes, pretende demonstrar que os seres</p><p>humanos efetivamente viveram nesse estado durante um período</p><p>determinado de tempo. Por isso, encarrega-se de delimitar geográfica</p><p>e cronologicamente os alcances do estado selvagem. A autoridade</p><p>das escrituras serve a Vico como marco de sua descrição. O dilúvio</p><p>universal transformou as condições físicas da terra, cobrindo-a de uma</p><p>espeça selva. Nela haviam embrenhado os descendentes dos filhos de</p><p>Noé que renegaram a religião revelada.</p><p>O estado selvagem viquiano se diferencia do hipotético</p><p>estado de natureza delineado por outros autores por uma segunda</p><p>característica, derivada da mesma referência bíblica. Não se trata</p><p>da situação originária do gênero humano e sim do resultado do</p><p>isolamento voluntário de alguns indivíduos. O recurso às Escrituras</p><p>não deve entender-se, aqui, como uma maneira de garantir</p><p>sistematicamente que a condição originária do ser humano seja social</p><p>e que essa condição somente pode perder-se pela própria vontade</p><p>10 Cf. DAMIANI, A. M. Domesticar a los gigantes. Sentido y praxis en Vico. Rosario:</p><p>UNR Editora, 2005, p.19-107.</p><p>26 • Alberto Mario Damiani</p><p>do ser humano. Tal como ele havia defendido explicitamente em suas</p><p>Orações inaugurais, Vico parece reiterar aqui que o ser humano é</p><p>senhor da determinação de sua própria natureza, ao ponto que suas</p><p>ações voluntárias podem conduzi-lo a perdê-la por completo.</p><p>Por isso, somente os membros da sociedade pós-diluviana, que</p><p>se afastaram voluntariamente da fé em Jeová, haviam caído no estado</p><p>selvagem. Isso nos indica uma terceira nota distintiva desse estado:</p><p>segundo Vico, nem todo o gênero humano caíra nele. Os hebreus</p><p>conservaram suas instituições no decorrer de toda a sua história, tal</p><p>como atestam as Escrituras. Os problemas que a Scienza nuova busca</p><p>resolver se referem à origem do conjunto de nações que abraçaram</p><p>religiões pagãs na antiguidade, e à história dos povos desde a queda do</p><p>império romano até a modernidade contemporânea a Vico.</p><p>Se se considera o problema da natureza humana e seu caráter</p><p>social, o estado selvagem pode ser entendido como uma situação na qual</p><p>os seres humanos perdem quase todas as propriedades que os distinguem</p><p>dos animais. O isolamento os privou da linguagem e dos costumes que</p><p>compartilhavam com os demais membros de sua comunidade. Essas</p><p>perdas conduzem necessariamente a uma muito mais grave e radical:</p><p>os selvagens tornam-se incapazes de controlar voluntariamente o</p><p>movimento de seus corpos, que começa a ser determinado pelas paixões</p><p>e pelos impulsos corporais e sensoriais. Essas sensações movem os</p><p>corpos dos selvagens para escapar do perigo, satisfazer a libido e buscar</p><p>alimento.11 A vida na selva pós-diluviana é apresentada, portanto, como</p><p>um movimento incontrolado de corpos físicos no espaço. Nesse sentido,</p><p>o selvagem já não se distingue da selva, na qual seu corpo é movido pelos</p><p>impulsos e paixões que o afetam. Anterior a toda consciência e a toda</p><p>ação voluntária, a selva se apresenta como uma paisagem originária, em</p><p>que a natureza humana se fundiu à natureza física.</p><p>Do ponto de vista antropológico, pode-se apontar que o conjunto</p><p>articulado de capacidades cognitivas, volitivas e práticas, com as quais</p><p>Vico caracterizava a natureza humana em seus primeiros escritos,</p><p>tornam-se paulatinamente atrofiadas no estado selvagem. A natureza</p><p>humana reduz-se na selva à natureza meramente física. Esse aspecto do</p><p>11 Sn44, §369.</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 27</p><p>estado selvagem afigura-se decisivo para compreender a solução que</p><p>Vico propõe para o</p><p>problema da sociabilidade natural do ser humano.</p><p>Afirmar que o ser humano é por natureza sociável não significa aqui</p><p>que a associação entre os seres humanos segue necessariamente da</p><p>natureza que têm em comum, nem tampouco que exista um desejo</p><p>gregário inscrito na essência do homem. Com sua descrição do estado</p><p>selvagem Vico parece querer demonstrar o caráter social da natureza</p><p>humana por meio de uma via negativa: a natureza humana não</p><p>subsiste sem instituições. O homem isolado é incapaz de conservar</p><p>as propriedades que o distinguem dos animais: uma mente capaz de</p><p>pensar a realidade que o rodeia, uma vontade capaz de contrapor o</p><p>poder das paixões e um poder capaz de dirigir os movimentos de seu</p><p>corpo. Fora da sociedade o homem interior funde-se no corpo e esse se</p><p>expande até adquirir dimensões gigantescas.12</p><p>No estado selvagem o corpo ganha primazia sobre o aspecto</p><p>interior do ser humano. Essa primazia deve ser entendida literalmente</p><p>como o crescimento desmesurado do corpo dos selvagens.13 Com</p><p>efeito, Vico argumenta que as condições físicas nas quais os gigantes</p><p>deviam sobreviver os obrigaram a esforços cujos efeitos foram</p><p>mudanças nas dimensões físicas. Em apoio à hipótese da existência</p><p>histórica dos gigantes, Vico apresenta provas de naturezas diversas.</p><p>Um primeiro tipo de provas pode ser catalogado de filológicas. Os</p><p>gigantes mencionados no Antigo Testamento e pela mitologia pagã</p><p>são, por exemplo, os titãs de Hesíodo e o Polifemo de Homero. Vico</p><p>alega também supostas provas paleontológicas: “enormes crânios e</p><p>ossos de tamanho descomunal”,14 que foram encontrados nos cumes</p><p>dos montes.15 Por último, os relatos de viajantes permitem-lhe</p><p>12 Sobre a noção de “homem interior”, ver: De uno. Examinei esta noção em:</p><p>DAMIANI, A. M. La idea de animus en las primeras obras de Giambattista Vico.</p><p>Revista Latinoamericana de Filosofía, Buenos Aires, vol. XXVI, n.1, 2000, p.85-109.</p><p>13 Sobre a gigantologia viquiana, ver: MAZZOLA, R. I giganti in Vico. Bollettino del</p><p>Centro di Studi Vichiani, Napoli, vol.XXIV-XXV, p.29-78, 1994-1995; BOSCHETTO, L.</p><p>Vico e i figliuoli di Dio. Ricerche sui giganti nel “Diritto Universale” e nella “Scienza</p><p>Nuova Prima”. Bollettino del Centro di Studi Vichiani, Roma, vol.XXIV-XXV, p.79-95,</p><p>1994-1995.</p><p>14 Sn44, §369.</p><p>15 ROSSI, P. I segni del tempo. Storia della terra e storia delle nazioni da Hooke a</p><p>Vico. Milano: Feltrinelli, 1979, p.100-109.</p><p>28 • Alberto Mario Damiani</p><p>reforçar sua gigantologia. Dentro desse grupo encontram-se tanto as</p><p>descrições dos antigos germânicos, formuladas por César e Tácito,</p><p>quanto as crônicas dos viajantes modernos, que testemunham a</p><p>estatura dos patagônicos nas cercanias do Estreito de Magalhães. A</p><p>importância dessas fontes na argumentação de Vico varia de uma obra</p><p>à outra. Quiçá o mais relevante para nosso atual propósito é indicar</p><p>que mediante essas provas, Vico pretende oferecer uma explicação</p><p>científica das causas que produziram a existência de gigantes em</p><p>algum momento da história da humanidade, isto é, que modificaram</p><p>radicalmente a existência do gênero humano.</p><p>Somente a descrição do estado selvagem permite entender a</p><p>mudança de perspectiva operada em nosso autor. Na Scienza nuova</p><p>não seria possível formular a antropologia das obras anteriores, de</p><p>onde se fazia abstração das condições institucionais da vida humana.</p><p>Por isso, a questão da compatibilidade entre as noções de estado</p><p>selvagem e sociabilidade natural pode resolver-se do seguinte modo.</p><p>A natureza do ser humano é sociável porque depende das instituições</p><p>estabelecidas pelo ser humano. Se essas desaparecem, desaparece</p><p>também o ser humano e sua diferença com o mundo físico. Portanto,</p><p>seria impossível incluir nessa concepção a ideia de uma vida humana</p><p>na natureza, tal como a descrevem outros teóricos modernos do</p><p>direito natural. Os selvagens de Vico não são desprendidos somente da</p><p>obrigação de obediência institucional, conservando a vontade e a razão</p><p>que caracterizam a natureza humana. A dissolução das instituições</p><p>implica a degradação da natureza humana em um corpo hipertrofiado</p><p>que reage ante estímulos físicos.</p><p>Encontramos em Vico, portanto, uma nova concepção do cará-</p><p>ter social da natureza humana. A novidade reside justamente em Vico,</p><p>como outros autores modernos, postular um estado anterior a toda</p><p>associação, porém, contra esses autores, em tal estado não pôde en-</p><p>contrar nada de propriamente humano. Nos selvagens desapareceram</p><p>as faculdades cognitivas que permitem formar representações. A au-</p><p>sência de relações comunitárias e de costumes humanos repercute na</p><p>constituição interna da mente humana, anulando a razão, a memória,</p><p>a fantasia e o engenho. Os sentidos, que em situações normais ofere-</p><p>cem à mente humana o material elaborado pelas outras faculdades,</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 29</p><p>se reduzem no corpo dos gigantes pós-diluvianos a meros condutos</p><p>de estímulos físicos que provocam reações corporais. A ausência de</p><p>instituições degrada também o aspecto prático do homem interior. A</p><p>capacidade humana de dirigir voluntariamente o movimento do pró-</p><p>prio corpo rebaixa-se, com a dissolução das instituições, à desenfreada</p><p>liberdade bestial do estado sem lei.</p><p>Uma vez que Vico rechaçou a atribuição de um desejo gregário</p><p>(appetitus societatis) à natureza humana e afirmou um momento pré-</p><p>social, de condições muito mais extremas do que as que encontramos</p><p>na ideia contratualista do estado de natureza, não parece haver dúvida</p><p>do caráter moderno de sua argumentação acerca da sociabilidade</p><p>natural do ser humano. Essa argumentação completa-se mediante</p><p>uma apresentação da dependência recíproca entre a natureza humana</p><p>e o estabelecimento das instituições que compõem o mundo civil. As</p><p>modificações que se produzem no âmbito institucional transformam a</p><p>natureza humana e vice-versa. O resultado desse processo é um ciclo</p><p>histórico no qual se desenvolve, por um lado, a natureza interior do ser</p><p>humano e, por outro, as instituições do mundo civil.</p><p>A tese clássica da sociabilidade natural vem acompanhada,</p><p>na obra de nosso autor, por uma ideia tipicamente moderna: o ser</p><p>humano é o autor do mundo civil. Vico apresenta essa ideia como</p><p>primeiro princípio de sua ciência, como uma verdade que não pode</p><p>ser posta em dúvida.16 Dessa maneira, pode-se apontar que Vico</p><p>pretende compatibilizar duas teses que, em outros contextos teóricos,</p><p>poderiam parecer contraditórias: a natureza humana é sociável e a</p><p>sociedade é uma obra humana. O ser humano é autor das instituições</p><p>que possibilitam a subsistência de sua constituição antropológica.</p><p>A compatibilidade das duas teses mencionadas pode ser expressa,</p><p>por um lado, afirmando que a natureza humana é sociável porque só pode</p><p>conservar-se sob as condições impostas pela vida social e, por outro, que o</p><p>novo estabelecimento das instituições modifica a natureza dos selvagens</p><p>e restitui gradualmente as propriedades constitutivas da natureza</p><p>humana que se haviam perdido no estado selvagem. Dessa maneira, as</p><p>propriedades que definem o ser humano como sociável por natureza e</p><p>16 Sn44, §331.</p><p>30 • Alberto Mario Damiani</p><p>como autor do mundo civil conduzem a uma nova versão de uma tese</p><p>humanista defendida por Vico em suas primeiras Orações: o ser humano é</p><p>o senhor de sua própria determinação. As condições sob as quais subsiste</p><p>e se desenvolve a natureza humana são resultado da ação humana.</p><p>Pode-se talvez destacar a originalidade de Vico a respeito des-</p><p>sa questão dizendo o seguinte. Para sustentar a ideia clássica de so-</p><p>ciabilidade natural nosso autor adota uma estratégia moderna: toma</p><p>como ponto de partida a situação do ser humano sem instituições. As</p><p>condições desse estado são, na descrição de Vico, tão extremas que,</p><p>para apresentar o estabelecimento humano das primeiras institui-</p><p>ções sociais, Vico deve renunciar à representação de seres humanos</p><p>com capacidades totalmente formadas que calculem os custos e os</p><p>benefícios de uma possível associação. Os selvagens</p><p>de Vico não são</p><p>seres humanos em estado de natureza, mas, antes, seres humanos</p><p>que justamente perderam sua natureza ao dissolver as instituições</p><p>que a mantinham.</p><p>Vico não só afirma que os seres humanos são autores do mundo</p><p>civil, como também que as instituições têm efeitos sobre a constituição</p><p>antropológica de seus autores. O estabelecimento das instituições</p><p>e o ressurgimento da natureza humana são dois aspectos de um</p><p>mesmo processo cujas condições iniciais se encontram no estado</p><p>selvagem. Vico denomina esses aspectos, respectivamente, mundo</p><p>dos ânimos humanos (o mundo civil) e mundo das mentes humanas</p><p>(mundo metafísico).17 O primeiro consiste nas ordens institucionais</p><p>que orientam as ações dos seres humanos, substituindo os impulsos</p><p>sensoriais e as paixões que determinavam o movimento dos corpos na</p><p>selva. O segundo consiste num conjunto de ideias que se apresentam</p><p>certas aos autores do mundo civil e que induzem seus ânimos a obedecer</p><p>às instituições que eles estabelecem. Graças ao estabelecimento das</p><p>instituições, o ser humano sai do mundo meramente físico e vive num</p><p>mundo regido por elas.</p><p>O mundo dos ânimos humanos consiste num conjunto de</p><p>instituições que os autores do mundo civil vão estabelecendo</p><p>17 Sn44, §2. Discuti esta questão em: DAMIANI, A. M. Orden civil y orden metafísico</p><p>en la “Scienza Nuova”. Cuadernos sobre Vico, Sevilla, v.11-12, p.97-105, 1999/2000.</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 31</p><p>sucessivamente. Como os ânimos só podem ser induzidos à ação pelas</p><p>ideias, cada instituição estabelecida e conservada voluntariamente</p><p>pelos autores do mundo civil deve ser correlata de uma ideia concebida</p><p>por suas mentes. As primeiras ideias que a poderosa fantasia dos</p><p>gigantes imagina são as de um deus providente, de dever moral e</p><p>imortalidade da alma.18 Essas três ideias constituem os princípios</p><p>de uma metafísica que começa tão rudimentar quanto as mentes</p><p>que as concebem. A ideia de um deus providencial não é mais que a</p><p>imagem de um céu rugidor que atemoriza os selvagens. Essa ideia</p><p>dá origem à primeira instituição humana: a religião. Os primitivos</p><p>intentam decifrar os signos que creem receber da natureza animada e</p><p>comunicar-se com as forças sobrenaturais sob as quais creem viver. A</p><p>idolatria, a adivinhação e os sacrifícios são as características comuns</p><p>que Vico atribui às primeiras religiões pagãs. A ideia de um deus</p><p>providente induzira os ânimos humanos à aceitação do dever moral:</p><p>a obrigação de transformar as paixões animais em paixões humanas.</p><p>Essa ideia seria o núcleo da segunda instituição: o matrimônio. Por</p><p>último, a ideia de imortalidade da alma seria a base metafísica da</p><p>terceira instituição: a sepultura dos antepassados, a qual, por sua vez,</p><p>motiva a apropriação originária da terra.</p><p>O ressurgimento de ideias e instituições recompõe os</p><p>distintos aspectos que constituem a natureza humana. A mente</p><p>projeta sobre a selva primitiva um sentido sobrenatural que induz o</p><p>ânimo a governar os movimentos do corpo. Uma ordem institucional</p><p>substitui a ordem física a que estão sujeitas as demais criaturas. A</p><p>natureza humana começa a recompor-se interiormente à medida</p><p>que a vida dos homens começa a se desenvolver em um mundo</p><p>com sentido humano, regido por uma rede de direitos e obrigações.</p><p>A sociabilidade natural do ser humano se entende, desse modo,</p><p>mediante duas teses complementares: o mundo civil é obra humana</p><p>e a natureza humana somente se conserva dentro do mundo civil. As</p><p>capacidades que definem o homem interior só existem exercitando-</p><p>se: a mente criando ideias e o ânimo estabelecendo e conservando</p><p>instituições. Dessa maneira, a sociabilidade natural do ser humano</p><p>18 Sn44, §332-337.</p><p>32 • Alberto Mario Damiani</p><p>se entende de maneira análoga à ideia de natureza humana tal</p><p>como se apresentava no contexto das primeiras obras de nosso</p><p>autor. A natureza do homem não é algo dado como a das demais</p><p>coisas naturais porque depende do estabelecimento humano de</p><p>instituições. As instituições não só liberam os movimentos corporais</p><p>de seus autores da regularidade natural, como também modificam</p><p>radicalmente tanto o caráter das ideias e das paixões quanto das</p><p>contexturas corporais.</p><p>Da instituição do matrimônio segue-se a da família, pela</p><p>qual os pais reconhecem, com certeza, seus filhos e assumem a</p><p>responsabilidade de educá-los. Essa educação primitiva tem por</p><p>resultado a produção da forma humana do ânimo e dos corpos, ou</p><p>seja, a redução dos temperamentos ferozes e os corpos gigantescos</p><p>à medidas humanas.19 Vico sustenta que, assim como as condições</p><p>físicas do estado selvagem tiveram por consequência o crescimento</p><p>desmesurado dos corpos, as condições sociais da vida econômica</p><p>primitiva reduzem o tamanho dos corpos humanos às dimensões</p><p>justas que se dão na atualidade. Desse modo, Vico considera a</p><p>natureza humana como uma realidade que depende das instituições</p><p>que os seres humanos estabelecem, conservam e transformam. A</p><p>tese da sociabilidade natural do ser humano significa, portanto,</p><p>que a natureza humana se vê modificada pelas instituições. Tanto o</p><p>aspecto interior do ser humano quanto o seu aspecto exterior são</p><p>moldados pelas instituições do mundo civil. A natureza do homem</p><p>não é considerada, por Vico, como uma essência estável que não se</p><p>vê afetada pelas formas de sua realização, visto que concebê-la como</p><p>social significa necessariamente concebê-la como histórica.</p><p>A diferença entre estado selvagem e mundo civil é, então,</p><p>uma diferença antropológica. No estado selvagem o homem interior</p><p>encontra-se enterrado nos corpos dos selvagens. A primazia da</p><p>corporeidade se verifica na função determinante da sensorialidade</p><p>e das paixões. Com o estabelecimento das primeiras instituições,</p><p>o homem interior começa a recuperar sua primazia natural, que</p><p>corresponde à diferença específica do homem. Somente quando a</p><p>19 Sn44, §520-524.</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 33</p><p>corporeidade se encontra governada pelo homem interior pode-se</p><p>falar de natureza humana. Esse governo só se realiza por meio das</p><p>instituições estabelecidas pelos autores do mundo civil.</p><p>III</p><p>Com o que antecede, espero ter respondido à questão da</p><p>compatibilidade entre as questões de estado selvagem e sociabilidade</p><p>natural. Por último, quero terminar minha conferência examinando o</p><p>desenvolvimento dessa sociabilidade em conexão com a teoria viquiana</p><p>do governo e suas diversas formas. Para a concepção antropológica</p><p>apresentada por Vico em sua última obra, a natureza humana é social</p><p>porque suas propriedades dependem das instituições estabelecidas,</p><p>conservadas e transformadas pelos seres humanos. Essas instituições</p><p>não são sempre as mesmas, mas variam no decorrer do curso histórico</p><p>que as nações percorrem. O estabelecimento de novas instituições</p><p>implica o surgimento de novas propriedades na natureza humana. Vico</p><p>postula a existência de um esquema ideal de sucessão de instituições que</p><p>poderia ser verificado na história das nações antigas e modernas. Esse</p><p>esquema consta de três idades sucessivas: a idade dos deuses, a idade dos</p><p>heróis e a idade dos homens. Em cada nação particular esse esquema se</p><p>daria de maneira diversa. A duração de cada uma das instituições varia</p><p>em cada nação de acordo com as características particulares de cada uma.</p><p>O caráter gradual das transformações históricas tem, por consequência,</p><p>que em etapas posteriores se conservem sempre restos das anteriores.</p><p>Para determinar a idade de desenvolvimento histórico em que uma nação</p><p>se encontra, Vico aplica critérios provenientes da teoria das formas de</p><p>governo.20 O governo patriarcal pré-político é próprio da idade dos deuses,</p><p>a república aristocrática é a forma de estado da idade heroica, a república</p><p>popular e a monarquia são as formas políticas da idade humana.</p><p>20 Cf. BOBBIO, N. Vico e la teoria delle forme di governo. Bollettino del Centro di Studi</p><p>Vichiani, Napoli, vol.VIII, 1978, p.5-27, publicado também em versão espanhola:</p><p>BOBBIO, N. Vico. In:</p><p>______. La teoría de las formas de gobiero en la historia del</p><p>pensamiento político. Tradução espanhola de J. F. Santillán. México: FCE, 1992,</p><p>p.108-121; HART, A. C. La teoria vichiana sulla successione delle forme di stato e le</p><p>sue implicazione politiche. Bollettino del Centro di Studi Vichiani, Napoli, vol.XVII-</p><p>XVIII, p.153-162, 1987-1988.</p><p>34 • Alberto Mario Damiani</p><p>A teoria das formas de governo contém, na concepção de Vico,</p><p>uma dimensão antropológica inelutável. A necessidade da sucessão das</p><p>formas de governo dentro do curso histórico justifica-se pelo processo</p><p>de transformações sucessivas que afetam a natureza humana. Pode-se</p><p>dizer que cada forma de governo é necessária em seu momento para</p><p>modificar a natureza humana conforme um padrão de desenvolvimento</p><p>ideal. Os governos patriarcais pré-políticos domesticam a natureza</p><p>humana primitiva, logo os governos aristocráticos a civilizam e, por</p><p>último, os governos republicanos e monárquicos a humanizam. A</p><p>transformação gradual da natureza humana depende, portanto, dos</p><p>tipos de governo que necessariamente se sucedem no decorrer da</p><p>história das nações.</p><p>O primeiro estado de desenvolvimento da natureza social do</p><p>homem dá-se dentro de comunidades familiares sedentárias, que se</p><p>apropriam do território por meio da agricultura e do enterro solene</p><p>de seus antepassados. Essa família primitiva encarrega-se de extirpar</p><p>do gênero humano os restos de selvageria. Por um lado, mediante</p><p>a educação dos filhos, que consiste na tenaz disciplina das religiões</p><p>sanguinárias e cujo fim é preparar o ser humano para obedecer. Essa</p><p>educação transmite de geração em geração o temor que os primeiros</p><p>gigantes sentiam ante o trovão. Seu resultado é a redução dos corpos e</p><p>dos ânimos à dimensões humanas. Por outro lado, a família primitiva</p><p>confronta aqueles gigantes que permanecem no estado selvagem,</p><p>matando os violentos que transgridem os limites territoriais do oíkos</p><p>e protegendo os débeis em troca de trabalho e obediência.21 Essa</p><p>proteção amplia a estrutura da família ao incorporar os fâmulos. Tanto</p><p>os filhos quanto os fâmulos encontram-se nesse estado de natureza</p><p>submetidos ao poder monárquico do pai de família. Todavia, enquanto</p><p>os primeiros se convertem em pais de outras famílias, os segundos</p><p>encontram-se submetidos por toda a vida ao pai. Esse, por sua vez,</p><p>atua conforme uma moral poética, cujas virtudes são a piedade e o</p><p>pudor, motivadas pelo temor ao trovão, pela prudência apoiada na</p><p>adivinhação, pela justiça que consiste em não cobiçar domínios alheios</p><p>21 Sn44, §553.</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 35</p><p>e pela temperança ou fidelidade matrimonial.22 A domesticação da</p><p>natureza primitiva é um efeito do governo patriarcal e afeta tanto a</p><p>natureza do pai de família quanto a de seus subordinados.</p><p>Durante o processo de domesticação, as diferenças sociais entre</p><p>pais e fâmulos são compreendidas como uma diferença ontológica</p><p>entre duas naturezas hierarquicamente distintas: a natureza divina</p><p>dos pais e a natureza animal dos fâmulos. Essa diferença funda-se</p><p>no fato de que os pais de família legitimaram, mediante cerimônias</p><p>religiosas, a certeza de sua descendência, a propriedade e a herança</p><p>de seus domínios. Os fâmulos, em troca, vivem dentro do oíkos com</p><p>a mesma carência de certezas que caracterizava a vida na selva. Os</p><p>fâmulos são percebidos por seus amos como monstros civis: seres</p><p>que têm o aspecto físico de seres humanos, mas que se comportam</p><p>como animais.23</p><p>Dois fatores dissolvem a estrutura de governo própria do oíkos</p><p>primitivo: o desgaste da moral patriarcal e o caráter permanente da</p><p>subordinação dos fâmulos. A tenção dentro da comunidade familiar,</p><p>resultante desses fatores, leva à insurreição dos fâmulos, denominado</p><p>por Vico contendas agrárias.24 Esse enfrentamento dos pais de família</p><p>com seus fâmulos domésticos motiva a união dos primeiros em uma</p><p>ordem nobiliária armada, que exige a passagem do estado de natureza</p><p>ao estado político. Vico concebe a origem do estado como a união de</p><p>pais de família independentes, que movidos pelo medo da sublevação</p><p>de seus fâmulos domésticos, renunciam à soberania privada de suas</p><p>monarquias familiares e se unem em um exército. As contendas</p><p>agrárias terminam quando os pais cedem aos fâmulos a posse das</p><p>terras por meio da primeira lei agrária. A partir desse momento os</p><p>seres humanos dividem-se em duas ordens: os patrícios que governam</p><p>aristocraticamente seus inimigos plebeus.25</p><p>Dentro do estado aristocrático, os patrícios intentam conservar a</p><p>exclusividade dos laços institucionais e os plebeus lutam por transformar</p><p>seus laços naturais em laços institucionalmente reconhecidos. Essa</p><p>22 Sn44, §502-519.</p><p>23 Sn44, §561-566.</p><p>24 Sn44, §20.</p><p>25 Sn44, §590, 611, 688.</p><p>36 • Alberto Mario Damiani</p><p>contraposição de interesses motiva o conflito social que Vico denomina</p><p>contendas heroicas. O desenrolar desse conflito conduz a uma gradual</p><p>vitória dos plebeus, que obtêm sucessivamente o direito à propriedade</p><p>da terra, por meio da denominada segunda lei agrária, o direito a legar</p><p>e herdar propriedade, mediante o direito a contrair matrimônio e a</p><p>reconhecer sua descendência, e o direito a participar nas magistraturas</p><p>civis. Quando os plebeus adquirem direitos políticos e são reconhecidos</p><p>como cidadãos produz-se uma mudança na forma de Estado: da</p><p>república aristocrática à república popular.</p><p>O estabelecimento da república popular corresponde a uma</p><p>mudança na compreensão da natureza humana. Os plebeus reclamaram</p><p>a igualdade de direitos, porque se desiludiram do heroísmo vaidoso</p><p>com o qual os patrícios pretendiam legitimar sua aptidão natural</p><p>ao comando.26 O conceito racional de natureza comum a todos os</p><p>homens é, para Vico, um descobrimento dos plebeus descontentes</p><p>com os privilégios patrícios. Sobre esses conceitos assentam-se as</p><p>instituições da república popular, que igualam todos os membros da</p><p>comunidade política sob a obediência das leis civis. Essas leis articulam</p><p>juridicamente o conceito racional de natureza humana descoberto</p><p>pelos plebeus. Os filósofos jusnaturalistas dão, por suposto, esse</p><p>conceito sem atentar para as condições políticas do seu surgimento</p><p>e compreensão.27 As instituições republicanas produzem, portanto,</p><p>uma nova modificação da natureza humana. A igualdade de todos</p><p>os cidadãos ante a lei elimina a dualidade ontológica miticamente</p><p>justificada pelos nobres das repúblicas aristocráticas. Vico concebe a</p><p>monarquia como uma proteção dessa igualdade, contra os males que</p><p>podem afetar a república popular. A divisão em partidos e em facções</p><p>pode conduzir a um individualismo extremo que ponha em perigo a</p><p>unidade da república e a conservação do estado político. Vico apresenta</p><p>a monarquia como o primeiro remédio contra a desintegração social.</p><p>O monarca resguarda a igualdade jurídica quando já não pode ser</p><p>mantida por meio das instituições da república popular.</p><p>26 Sobre esta questão, ver: DAMIANI, A. M. Nosce te ipsum. Reflexión y política en</p><p>Vico. Cuadernos sobre Vico, Sevilla, n.23-24, p.133-150, 2009/2010.</p><p>27 Desenvolvi esta questão em: DAMIANI, A. M. La secolarizzazione politica nella</p><p>“Scienza Nuova”. Bolletino del centro di studi vichiani, Napoli, v.XXX, p.213-229, 2000.</p><p>A noção de sociabilidade natural em Vico • 37</p><p>A resposta de Vico ao problema da sociabilidade natural do</p><p>homem se apresenta, portanto, como a exposição de uma história</p><p>da natureza humana. Essa história contém as transformações</p><p>produzidas na estrutura interior do ser humano pelo estabelecimento</p><p>de determinadas instituições. Partindo das condições extremas do</p><p>estado selvagem, Vico relata a história da natureza humana como o</p><p>processo pelo qual a natureza selvagem é modificada sucessivamente</p><p>por distintos tipos de instituições. Em primeiro lugar, a natureza</p><p>primitiva do homem é domesticada pelas instituições pré-políticas,</p><p>ou econômicas, dependentes do governo patriarcal. Em segundo lugar,</p><p>as instituições da república aristocrática civilizam</p>
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